sexta-feira, 2 de novembro de 2018

Na Solenidade de Todos os Santos de 2018

O cântico de entrada proposto pelo respetivo grupo coral para a celebração em que participei tem música do Padre Mário Silva e o seu estribilho é:
Exulto de alegria no Senhor
E minha alma rejubila no meu Deus,
Pois com a veste da salvação me revestiu
E com o manto da justiça me envolveu
Qual esposa adornada de suas joias” (cf Is 61,10).
O texto é o cântico da Filha de Sião que reconhece com alegria a benevolência de Deus para com ela e as maravilhas que fez nela e por ela. Aplicado liturgicamente à Virgem Maria, o versículo de Isaías encima a liturgia da Imaculada Conceição de Maria, pois Ela, como filha de Deus Pai, mãe de Deus Filho e esposa de Deus Espírito Santo, concebida sem pecado, é o maior e mais dinâmico repositório humano da graça divina e, como tal, o protótipo da Igreja também ela filha de Deus, esposa de Cristo, mãe de imensa plêiade de filhos (fregueses – filii Ecclesiae – filhos da Igreja) e instrumento do Espírito Santo que a guia para salvação da humanidade.
Por isso, se a Igreja peregrina experimenta as agruras do caminho e os seus membros que militam neste mundo têm de entoar o cântico penitencial, por via das suas debilidades, erros e pecados, e o cântico do lamento, mercê das perseguições de que é objeto e que acarretam cruéis destruições nas comunidades cristãs, jovens ou vetustas, a Igreja triunfante – tanto a que mora já nos Céus como a que se alimenta e sacia do banquete eucarístico, confortada pelo sacrifício redentor de Cristo – tem fortes motivos para cantar, como a Filha de Sião, a alegria e o cântico do louvor de Maria pela misericórdia do Senhor, que grandes coisas em si faz o Deus das maravilhas (cf Lc 1,46-55) como é seu timbre de geração em geração ou porque, tendo escondido os mistérios do Reino aos sábios e aos inteligentes, os revelou aos pequeninos (cf Lc 10,21).  
O livro do Apocalipse (Ap 7,2-4.9-14) testifica as perseguições às primeiras comunidades cristãs, que o risco de desaparecimento ameaça. As visões do profeta neotestamentário são portadoras da mensagem de esperança em tempo de tribulação. Em linguagem simbólica, que sugere Roma como perseguidora aplicando-lhe o designativo de Babilónia, proclama em tom paradoxal a vitória do Cordeiro, o Cordeiro que foi imolado, mas que é o Cordeiro da Páscoa definitiva, o Ressuscitado. Com efeito, na Última Ceia, instituiu a Eucaristia no mistério do Seu Corpo entregue por nós e do Seu Sangue derramado por todos nós em remissão dos pecados, a nós dados em alimento de peregrinos para fortalecimento da alma e cimentação da Igreja que, recebendo a força do Alto, está de segura de que pode e deve sair em missão; instituiu o mandamento do amor que apresenta como novidade a bitola do amor ao próximo, já não a medida com que nos amamos a nós mesmos, mas a medida com que Jesus amou e assim ensinou; e passou a chamar os discípulos de amigos e não servos (cf Jo 15,15). Porém, depois da Ressurreição, passa a considera-los irmãos (cf Jo 20,17), pois, com a sua glorificação pela morte de cruz e pela sua confirmação pela Ressurreição, mereceu que passássemos a filhos com Ele.     
Ele transformou o caminho de morte em caminho de vida para todos aqueles que O seguem pelo martírio, pela prática heroica das virtudes, pela oferta integral da vida ou pela vida de santidade diária. Todos, mesmo que não sido ou não venham a ser declarados santos pela autoridade eclesiástica, participam no triunfo Cristo no eterno festim. Uns servem de modelo; outros primam pela discrição. Todos branquearam as túnicas no sangue do Cordeiro. Por isso, constituem a geração dos que procuram o Senhor, como reza o salmista (Sl 24/23) ao proclamar as condições de entrada no “Templo de Deus” e ao enunciar a bem-aventurança dos corações límpidos. Nós todos constituímos a plêiade imensa compaginadora do povo que marcha ao encontro do Deus santo, povo de filhos Deus como nos garante São João (cf 1Jo 3,1-3). Esta esperançosa mensagem joânica da filiação divina responde às nossas interrogações sobre o destino futuro desta nossa caminhada na terra. Na verdade, se Deus, no seu imenso amor, faz de nós seus filhos – filiação que Jesus nos mereceu na Cruz e que nós assumimos pelo Batismo –, não nos pode abandonar. Ao invés, em Jesus, nosso Cordeiro pascal que tira o pecado do mundo, vemos o futuro de sonho e de eternidade a que nos conduz a pertença à família divina: seremos semelhantes a Deus. E, embora O vejamos de modo nubloso neste momento, vê-lo-emos claramente na parusia. Assim esta Solenidade é festa da família por excelência.
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Por sua vez, a passagem do Evangelho de Mateus (Mt 5,1-12) que nos abre os olhos do coração para o futuro que Deus preparou para os seus filhos, enuncia os parâmetros da verdadeira bem-aventurança. Depois referir o ser e a missão de Jesus, o evangelista apresenta – com palavras e com gestos – aos discípulos e às multidões o “Reino” e a sua lógica, vindo à cabeça do Sermão da Montanha as nove bem-aventuranças. Enfatiza a relevância dos ditos do Senhor, que distribui por cinco longos discursos (cf Mt 5-7; 10; 13; 18; 24-25), em que recolhe ensinamentos proferidos por Jesus em várias ocasiões e contextos. São discursos da nova Lei, que retoma a Lei dada ao Povo por meio de Moisés e inscrita no Pentateuco para a aperfeiçoar e lhe dar um novo sentido de maior profundidade, largueza e interioridade.
A perícopa das bem-aventuranças oferece, pois, à comunidade cristã um novo código ético, que assume e supera a antiga Lei que guiava o Povo de Deus para o advento do Messias. A localização geográfica do discurso é significativa: transporta os ouvintes à montanha (como no Sinai), onde Deus, revelando-Se, deu ao Povo a Lei. Também agora Jesus, numa montanha, oferece ao novo Povo a nova Lei que o deve guiar para a plenitude do Reino dos Céus, que anunciou como próximo, misterioso, dinâmico crescente e com categorias diferentes das do mundo. Mateus põe na boca do Mestre bem-aventuranças diferentes das enunciadas em Lucas (cf Lc 6,20-26). Enuncia nove bem-aventuranças, ao passo que Lucas apresenta quatro, a que vai contrapor quatro “maldições”, ausentes do texto mateano. Por outro lado, a versão mateana frisa a espiritualização (os “pobres” de Lucas são, para Mateus, os “pobres em espírito”) e a aplicação dos “ditos” de Jesus à vida da comunidade e ao comportamento dos crentes. O texto lucano será mais fiel à tradição original enquanto o texto de Mateus terá sido mais trabalhado.
As fórmulas de bem-aventuranças são frequentes na tradição bíblica. Surgem em anúncios proféticos de futura alegria (cf Is 30,18; 32,20; Dn 12,12), em ações de graças pela alegria presente (cf Sl 32,1-2; 33,12; 84,5.6.13) e nas exortações à vida sábia, refletida e prudente (cf Pr 3,13; 8,32.34; Sir 14,1-2.20; 25,8-9; Sl 1,1; 2,12; 34,9). Porém, as “bem-aventuranças” evangélicas surgem no contexto da pregação do “Reino” e constituem os critérios de pertença ao seu ser e dinamismo.
São bem-aventurados os débeis e pobres, porque Deus, ao instaurar o Reino muda radicalmente a situação destes pobres que aderem ao Reino, pois, na fragilidade, debilidade e dependência, estão disponíveis para acolher a salvação e libertação que Deus oferece em Jesus (a proposta do “Reino”). Nisto se diferenciam dos apegados ao espírito mundano, que estabelece como critérios de felicidade a riqueza, o prazer, o prestígio, a fama, a supremacia, o domínio.
As quatro primeiras bem-aventuranças mateanas (vv 3-6) relacionam-se entre si. Elegem os pobres (as 2.ª, 3.ª e 4.ª são desenvolvimentos da primeira, que proclama: bem-aventurados os pobres em espírito) e enaltecem a felicidade dos que se entregam confiadamente nas mãos de Deus e procurando fazer a sua vontade, dos que, de modo consciente, deixam de confiar e esperar nos bens, no poder, no êxito, nos homens e dos que, renunciando ao egocentrismo, aceitam despojar-se de si e estar disponíveis para Deus e para o próximo. Os pobres em espírito renunciam livremente aos bens, ao orgulho e à autossuficiência, para se colocarem incondicionalmente nas mãos de Deus, para servirem os irmãos e partilharem tudo com eles. Os mansos – não sendo os medrosos e fracos, que aturam passivamente as injustiças ou anuem às violências orquestradas pelos poderosos – são os que recusam a violência, são tolerantes e pacíficos, mesmo que sejam vítimas dos abusos e prepotências. A sua atitude humilde, pacífica e tolerante torna-os membros de pleno direito do Reino, possuidores da Terra e filhos de Deus. Os que choram são quem vive na dor, aflição, sofrimento por causa da injustiça, miséria e egoísmo. O advento do Reino levará a sua situação a transformar-se em consolo e alegria. A fome e sede de justiça, entendidas em sentido bíblico, significam a fidelidade total aos compromissos assumidos para com Deus e para com os irmãos. Por isso, os que delas são dotados verão saciada a sua sede na fidelidade no Reino que já está entre nós e que se consumará no fim dos tempos.
Enquanto este primeiro grupo de bem-aventuranças é definidor de estatuto e situações do crente, o segundo (vv 7-11) estabelece as bases dos comportamentos cristãos, decorrentes dos valores e atitudes que os discípulos devem assumir. Assim, os misericordiosos terão um coração capaz de compaixão e de amor sem limites, deixam-se tocar pelos sofrimentos e alegrias dos outros e são capazes de ir ao encontro dos irmãos e estender-lhes a mão, mesmo quando eles falham. Os puros de coração terão um coração honesto e leal, que não pactua com a duplicidade e o engano. Os promotores da paz recusam a violência e a lei do mais forte na regência das relações humanas e procuram ser – com o risco da própria vida – instrumentos de reconciliação entre os homens. Os perseguidos por causa da justiça lutarão pela instauração do Reino e são desautorizados, humilhados, agredidos, marginalizados por parte de quem pratica a injustiça, fomenta a opressão, constrói a morte. A todos estes assegura que o mal não os vencerá e que, no términus do caminho, os espera a vitória, a vida em abundância.
A última bem-aventurança (v 11), aplicação concreta da oitava, configura uma exortação aos membros da comunidade que têm a experiência da perseguição por causa de Jesus convidando-os a resistir ao sofrimento e adversidade – exortação válida e atual para os crentes futuros.
Enfim, as bem-aventuranças são a mensagem de Jesus como esperança e alento para os pobres e débeis; garantem que Deus os ama e que está do lado deles; asseguram a proximidade da libertação, que traz mudanças radicais; e confirmam que eles vivem já na dinâmica deste Reino onde encontram a felicidade e a vida em plenitude em resultado das moções do Espírito Santo.
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Este ano é a primeira vez que a Solenidade de Todos os Santos ocorre desde a publicação da exortação apostólica “Gaudete et exsultate”. Na linha do capítulo V da Lumen Gentium do Vaticano II – que, no âmbito da vocação de todos à santidade na Igreja, ensina que “todos na Igreja, quer pertençam à Hierarquia quer por ela sejam pastoreados, são chamados à santidade, segundo a palavra do Apóstolo: ‘esta é a vontade de Deus, a vossa santificação’.” (1Ts 4,3; cf Ef 1,4) – Francisco clarifica que Deus nos quer “santos e espera que não nos resignemos com uma vida medíocre, superficial e indecisa” (n.º 1), que “os santos, que já chegaram à presença de Deus, mantêm connosco laços de amor e comunhão” (n.º 4) e que “o Espírito Santo derrama a santidade, por toda a parte, no santo povo fiel de Deus, porque aprouve a Deus salvar e santificar os homens, não individualmente, excluída qualquer ligação entre eles, mas constituindo-os em povo que O conhecesse na verdade e O servisse santamente” (n.º 6).
Assim, nesta Solenidade, faz-se memória não só dos canonizados, beatificados e declarados veneráveis, mas também e sobretudo de todos aqueles e aquelas que viveram segundo o código das bem-aventuranças como santos e santas de ao pé da porta, com o diz o Papa (Ge n.º 6), ou mesmo na discrição e quase anonimato.  

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E, neste dia, o Papa propôs, antes da recitação do Angelus, a escolha do caminho das Bem-aventuranças e disse que “os santos estão próximos a nós, aliás, são os nossos verdadeiros irmãos e irmãs”. É a família dos filhos de Deus!
O Pontífice sublinhou que a 1.ª Leitura desta liturgia, “nos fala do céu e nos coloca diante de uma grande multidão, incalculável, de nações, tribos, povos e línguas”. E discorreu:
São os santos. O que fazem lá em cima? Cantam juntos, louvam a Deus com alegria. Seria bonito ouvir o canto deles! Podemos imaginá-lo: sabem quando? Durante a missa, quando cantamos ‘Santo, Santo, Santo, Senhor Deus do universo...’. É um hino, diz a Bíblia, que vem do céu, que se canta lá: um hino de louvor. Então, cantando o ‘Santo’, não só pensamos nos santos, mas fazemos o que eles fazem: naquele momento, na missa, estamos unidos a eles mais do que nunca.”.
Segundo o Papa, “estamos unidos a todos os santos, não só aos mais conhecidos, do calendário, mas também aos ‘da porta ao lado’, aos nossos familiares e conhecidos que agora fazem parte daquela grande multidão”. Por isso, frisou:
Hoje, então, é a festa da família. […]. Os santos estão próximos de nós, aliás, são os nossos verdadeiros irmãos e irmãs. Eles entendem-nos, amam-nos, sabem qual é o nosso verdadeiro bem, ajudam-nos e esperam por nós. São felizes e querem-nos felizes com eles no paraíso.”.
Mais disse que os santos “nos convidam ao caminho da felicidade, indicada no Evangelho de hoje, tão bonito e conhecido: Felizes os pobres em espírito (...). Felizes os mansos (...). Felizes os puros de coração...”. E, face ao Evangelho, que diz “felizes os pobres, os mansos, os puros” e o mundo, que diz “felizes os ricos, os prepotentes, os espertos e os que buscam prazer”, os crentes têm de optar. O caminho das bem-aventuranças, da santidade, parece conduzir à derrota, mas os santos trazem “palmas nas mãos”, isto é, os símbolos da vitória. Venceram e exortam-nos a escolher a sua parte, “a de Deus que é Santo”, pois o Senhor “pede tudo, e o que Ele oferece é a vida verdadeira. Oferece tudo, oferece a felicidade para a qual fomos criados”.
“Em síntese, disse o Pontífice, ou a santidade ou nada!”. Mas “faz-nos bem deixarmo-nos ser provocados pelos santos, que aqui não tiveram meias medidas e do além ‘torcem’ por nós, para que escolhamos Deus, a humildade, a mansidão, a misericórdia, a pureza, para que nos apaixonemos pelo céu antes que pela terra”.
E concluiu dizendo:
Hoje, nossos irmãos e irmãs não nos pedem para ouvir de novo um belo Evangelho, mas para colocá-lo em prática, para seguir o caminho das bem-aventuranças. […]. Não se trata de fazer coisas extraordinárias, mas de seguir esse caminho todos os dias que nos leva ao céu, para a família e para casa. Hoje, nós entrevemos o nosso futuro e celebramos aquilo para o qual nascemos: nascemos para nunca mais morrer, nascemos para desfrutar da felicidade de Deus!”.
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Seja então Deus bendito nos seus anjos, que nos guardam, e nos seus santos, que partiram de ao pé de nós; e que todos os santos e santas de Deus intercedam por nós, que somos da sua família!

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