quarta-feira, 31 de outubro de 2018

Até amanhã se Deus quiser…



Podia ser, mas não estou a despedir-me de ninguém, até porque ainda não chegámos à noite. Também se quisesse fazer (o que seria bom) uma reflexão sobre o dia de amanhã, Solenidade de Todos os Santos, a que se segue a Comemoração de Todos os Fiéis Defuntos, a 2 de novembro – de que algumas celebrações se antecipam habitualmente para a véspera, visto que o dia 2 não é feriado – com certeza não começaria com uma expressão do tipo “Até amanhã se Deus quiser…”. Vem, antes, isto a propósito de a jornalista Fernanda Câncio ter questionado no Twitter a RTPN nos termos seguintes:
Portugal em Direto, na RTPN, tem uma apresentadora que acha que pode despedir-se com um ‘até segunda-feira se Deus quiser’. Isto é o quê, a TV da paróquia?.
Obviamente referia-se a Dina Aguiar, jornalista que apresenta o noticiário ‘Portugal em Direto’ na RTP1, devido à expressão Até amanhã se Deus quiser…”, que sempre usa para encerrar o programa – ao que Dina Aguiar reagiu de imediato através do Facebook:
God bless the Queen. God Bless America  GOD BLESS PORTUGAL (digo eu). GOD BLESS US. Até amanhã se Deus quiser (há 40 anos que o digo numa empresa, a RTP, onde há liberdade de expressão). ISTO NÃO SÃO EXPRESSÕES COMUNS?”.
E foi, neste aspeto, secundada por uma série de colegas e de espectadores justamente em nome do uso de expressões comuns.
Talvez não seja desajustado insistir nisso. Câncio, se persistir no seu puritanismo laico, não dirá “oxalá” (queira Deus ou queira Alá), não deixará que um comerciante a trate por “freguesa” (filia Ecclesiae – filha da Igreja), promoverá a revisão da Constituição para acabar com as freguesias e criará clubes, por exemplo, e nem dirá “bom dia”, “boa tarde” e “boa noite”, muito menos “Ai, Jesus” (que ´Álvaro Cunhal disse) nem “Valha-me Deus”. Até fugirá de Lisboa e de qualquer local do país ou do mundo, tão semeados que estão de motivos religiosos cristãos ou de outras religiões. Não se lembra certamente do papagaio que, durante a sua deambulação na praça, foi arrebatado para as alturas por um milhafre. E, quando o milhafre in excelsis se preparava para devorar o papagaio, este bradou “Valha-me Deus”. O milhafre, assustado, deixou-o cair. Quando se viu estatelado no chão, mas vivo e inteiro, o papagaio, desabafou: “Porra! F…se. Olha se eu não era catódico!”. Linguagem de papagaios, mas respeito pelas diversas religiões e por quem não tem nenhuma…   
Estudei a antiga religião greco-romana como algo das antigas religiões da Lusitânia e não me considero pagão; estudei a Bíblia hebraica e não sou judeu; li o Alcorão e não sou muçulmano; estudei o fascismo e o comunismo e não me considero fascista nem comunista. Virá Fernanda Câncio acusar-me de pagão, judeu, muçulmano, fascista, comunista?! Aceito que ela não seja pagã, nem judia, nem cristã, nem árabe, mas não posso deixar de recordar que ela, como eu, vive duma tradição judeo-cristã, crescida a par duma cultura pagã e permeabilizada por uma civilização muçulmana e agora com a interação de outras culturas, a menos que ela tenha vindo de Marte ou da Lua!
Repare-se que os nomes dos dias da semana em algumas línguas são tirados da mitologia greco-romana (em inglês, até o domingo – sontag). E, nem por isso, os seus cidadãos professam qualquer obediência a algum deus pagão. Espanhóis e italianos por tudo e por nada se fartam de proferir blasfémias contra Deus (incluindo a Eucaristia) Maria e os Santos. Em Portugal, apesar de muitos palavrões, a blasfémia (asneira contra religião) não se diz porque a Inquisição cortava um pedacinho da língua a quem fosse apanhado a proferir blasfémia. Daí a ameaça de adultos a crianças e adolescentes que dissessem asneiras: “Olha que eu corto-te a língua!”.
Quanto ao “bom dia” e expressões paralelas, devo referir que os estudantes de alemão as colocam em acusativo, o caso do complemento direto. Por isso, muitos locutores de rádio e de TV despedem-se com “Tenha uma boa noite” e outras expressões do género para tarde e para dia. A este propósito, é de recordar que a expressão completa era “Deus nosso Senhor te (nos, vos, lhe, lhes) dê bons dias!”, em alternativa a “Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo” (a que se respondia de forma breve “Para sempre seja louvado” e de forma extensa “Para sempre seja louvado no Céu e na Terra e Sua mãe Maria Santíssima). E, quando se passava no caminho e se avistava gente a trabalhar ou se entrava numa propriedade para ajudar, a fórmula de saudação da parte de quem saudava era “Nosso Senhor te (o, os, a, as, vos) ajude”, a que se respondia “Venha com Deus”. Por outro lado, quando de um par de pessoas ou de um conjunto uma pessoa se ia embora, a recomendação de despedida era “Vá com Deus” ou, se a companhia dela estava a ser incómoda, a despedida era “Deus te faça ir com as pernas a bulir e por cada passo três tombos”.
***
Estamos num mundo que mantém na linguagem os resquícios da tradição judeo-cristã e da tradição árabe, agora com entradas vocabulares provindas de África, Ásia e Brasil, para já não falarmos dos abundantes castelhanismos, galicismos, italianismos, germanismos e sobretudo anglicismos (muitos americanizados). E que mal vem ao mundo por isso?
A propósito da génese e prática cristã do bom dia e outras expressões semelhantes, conta-se que um sacerdote passava usualmente, pela manhã, a pé duma paróquia para outra sempre pelo mesmo caminho.
Em três dias consecutivos encontrou no mesmo sítio uma rapariga, a Maria, que era surda, a guardar o rebanho. O bom do abade não saudava a mesma pessoa sempre da mesma maneira. Assim, num dos dias saudou Maria com a fórmula “Deus Nosso Senhor te dê bons dias, Maria”, ao que ela respondeu “Deus Nosso Senhor lhe dê os mesmos, senhor Abade”.
No dia seguinte, o pároco saudou entrando à fala com “Tens uns olhos muito lindos, Maria”. E ela, pensando na fórmula do dia anterior, respondeu “Deus Nosso Senhor lhe dê os mesmos, senhor Abade”.
E, no terceiro dia, o padre disse “Ó Maria, tens ali um carneiro com uns cornos tão grandes!”. E ela, pensando na fórmula do primeiro dia, retorquiu “Deus Nosso Senhor lhe dê os mesmos, senhor Abade”. 
Também a propósito do “se Deus quiser”, recordo um episódio narrado pelo cónego José Cardoso de Almeida num dos serões catequéticos no Salão Paroquial de Vila Cova à Coelheira.
Duma ocasião, disse o marido para a mulher à noite:
- Prepara lá a burra com as coisas que temos para vender, que eu amanhã vou à fora.  
E a mulher acrescentou:
- … Se Deus quiser.
E o marido, no seu ar arrogante e desabrido, retorquiu:      
- Amanhã, quer Deus queira, quer não queira, vou à feira com a burra.
No dia seguinte, o homem levantou-se e, montado na burra com os objetos de venda, lá partiu. Entretanto, num ponto do percurso, burra e homem caíram num lamaçal de que não conseguiam sair. Por isso, a um grupo de feirantes mais madrugadores que já regressavam ele bradava:
- Por favor, alguém que tenha a bondade, se Deus quiser, de ir minha casa, se Deus quiser, dizer à minha Zefinha, se Deus quiser, que peça a alguém, se Deus quiser, que venha com ela, se Deus quiser, tragam umas cordas, se Deus quiser, e venham até aqui, se Deus quiser, para nos tirarem daqui, se Deus quiser, a minha burrinha e a mim, se Deus quiser, para eu ir na minha burrinha à feira, se Deus quiser.
Depois, já invocava Deus, provavelmente em vão, para tudo!  
***
Como os crentes não devem levar ao extremo as linguagens próprias na relações interpessoais e na comunicação social, não devendo obviamente perder a obrigação de propor as suas ideias e de fazer os seus apelos em coerência com aquilo em que acreditam e que professam, também os laicos e os defensores legítimos do Estado não confessional não podem cair no purismo de expurgar da linguagem comum, mesmo nos departamentos estatais, as palavras que tenham vestígios de religião, mesmo da pagã, sob pena da negação das raízes e da cultura como um todo – até porque, embora o Estado seja confessional, a sociedade não o é nem tem de o ser, como não tem de ser religiosa ou ateia. E o laicismo bem entendido abre, sem privilegiar, espaço a todas as manifestações religiosas ou não religiosas enquanto expressão de cultura e de desígnio pessoal e social, embora prudentemente deva ter em conta o volume de expressão de cada uma.
Ademais, há o dever de tolerância, que leva a aceitar o que pensam, dizem ou escrevem os outros, bem como o estilo de cada um. Calar uma voz ou vetar um estilo e obrigar a um tipo de voz ou de estilo são formas capciosas de ditadura próximas do ideário fascizante, que esperamos tenha sido abolido de vez.
Nem beatismos, nem iconoclastias!
2018.10.31 – Louro de Carvalho    

Sem comentários:

Enviar um comentário