Podia ser, mas não estou a despedir-me de ninguém, até
porque ainda não chegámos à noite. Também se quisesse fazer (o que seria bom) uma reflexão sobre o dia
de amanhã, Solenidade de Todos os Santos, a que se
segue a Comemoração de Todos os Fiéis Defuntos, a 2 de
novembro – de que algumas celebrações se antecipam habitualmente para a véspera,
visto que o dia 2 não é feriado – com certeza não começaria com uma expressão
do tipo “Até amanhã se Deus quiser…”. Vem,
antes, isto a propósito de a jornalista Fernanda Câncio ter questionado no
Twitter a RTPN nos termos seguintes:
“Portugal em Direto, na RTPN, tem uma apresentadora que acha que pode
despedir-se com um ‘até segunda-feira se Deus quiser’. Isto é o quê, a TV da
paróquia?”.
Obviamente referia-se a Dina Aguiar, jornalista que apresenta o noticiário ‘Portugal em Direto’ na RTP1, devido à
expressão “Até amanhã se Deus quiser…”, que sempre usa para encerrar o programa – ao que Dina
Aguiar reagiu de imediato através do Facebook:
“God bless the Queen. God Bless America GOD BLESS PORTUGAL (digo
eu). GOD BLESS US. Até amanhã se Deus quiser (há 40 anos que o digo numa
empresa, a RTP, onde há liberdade de expressão). ISTO NÃO SÃO EXPRESSÕES
COMUNS?”.
E foi, neste aspeto, secundada por
uma série de colegas e de espectadores justamente em nome do uso de expressões
comuns.
Talvez não seja desajustado
insistir nisso. Câncio, se persistir no seu puritanismo laico, não dirá “oxalá” (queira Deus ou queira Alá), não deixará que um comerciante a
trate por “freguesa” (filia Ecclesiae – filha da Igreja), promoverá a revisão da
Constituição para acabar com as freguesias e criará clubes, por exemplo, e nem
dirá “bom dia”, “boa tarde” e “boa noite”,
muito menos “Ai, Jesus” (que ´Álvaro Cunhal disse) nem “Valha-me Deus”. Até
fugirá de Lisboa e de qualquer local do país ou do mundo, tão semeados que
estão de motivos religiosos cristãos ou de outras religiões. Não se lembra
certamente do papagaio que, durante a sua deambulação na praça, foi arrebatado
para as alturas por um milhafre. E, quando o milhafre in excelsis se preparava para devorar o papagaio, este bradou “Valha-me Deus”. O milhafre, assustado,
deixou-o cair. Quando se viu estatelado no chão, mas vivo e inteiro, o
papagaio, desabafou: “Porra! F…se. Olha se eu não era catódico!”. Linguagem de
papagaios, mas respeito pelas diversas religiões e por quem não tem
nenhuma…
Estudei a antiga religião
greco-romana como algo das antigas religiões da Lusitânia e não me considero
pagão; estudei a Bíblia hebraica e não sou judeu; li o Alcorão e não sou
muçulmano; estudei o fascismo e o comunismo e não me considero fascista nem
comunista. Virá Fernanda Câncio acusar-me de pagão, judeu, muçulmano, fascista,
comunista?! Aceito que ela não seja pagã, nem judia, nem cristã, nem árabe, mas
não posso deixar de recordar que ela, como eu, vive duma tradição judeo-cristã,
crescida a par duma cultura pagã e permeabilizada por uma civilização muçulmana
e agora com a interação de outras culturas, a menos que ela tenha vindo de
Marte ou da Lua!
Repare-se que os nomes dos dias da
semana em algumas línguas são tirados da mitologia greco-romana (em inglês, até o domingo – sontag). E, nem
por isso, os seus cidadãos professam qualquer obediência a algum deus pagão. Espanhóis
e italianos por tudo e por nada se fartam de proferir blasfémias contra Deus (incluindo a Eucaristia) Maria e os Santos. Em Portugal, apesar de muitos palavrões, a blasfémia
(asneira contra religião) não se diz porque a Inquisição cortava um pedacinho da língua a quem
fosse apanhado a proferir blasfémia. Daí a ameaça de adultos a crianças e
adolescentes que dissessem asneiras: “Olha
que eu corto-te a língua!”.
Quanto ao “bom dia” e expressões paralelas, devo referir que os estudantes de
alemão as colocam em acusativo, o caso do complemento direto. Por isso, muitos
locutores de rádio e de TV despedem-se com “Tenha
uma boa noite” e outras expressões do género para tarde e para dia. A este
propósito, é de recordar que a expressão completa era “Deus nosso Senhor te (nos, vos, lhe, lhes) dê bons dias!”, em alternativa a “Louvado seja
Nosso Senhor Jesus Cristo” (a que se respondia de forma breve “Para
sempre seja louvado” e de forma extensa “Para sempre seja louvado no Céu e na Terra e Sua mãe Maria Santíssima”). E, quando se passava no caminho e se avistava gente a trabalhar ou se
entrava numa propriedade para ajudar, a fórmula de saudação da parte de quem
saudava era “Nosso Senhor te (o, os, a, as, vos) ajude”, a que se respondia “Venha com Deus”. Por outro lado, quando
de um par de pessoas ou de um conjunto uma pessoa se ia embora, a recomendação
de despedida era “Vá com Deus” ou, se
a companhia dela estava a ser incómoda, a despedida era “Deus te faça ir com as pernas a bulir e por cada passo três tombos”.
***
Estamos num mundo que mantém na linguagem os resquícios da
tradição judeo-cristã e da tradição árabe, agora com entradas vocabulares
provindas de África, Ásia e Brasil, para já não falarmos dos abundantes castelhanismos,
galicismos, italianismos, germanismos e sobretudo anglicismos (muitos americanizados). E que
mal vem ao mundo por isso?
A propósito da génese e prática cristã do bom dia e outras
expressões semelhantes, conta-se que um sacerdote passava usualmente, pela
manhã, a pé duma paróquia para outra sempre pelo mesmo caminho.
Em três dias consecutivos encontrou no mesmo sítio uma
rapariga, a Maria, que era surda, a guardar o rebanho. O bom do abade não
saudava a mesma pessoa sempre da mesma maneira. Assim, num dos dias saudou
Maria com a fórmula “Deus Nosso Senhor te dê bons dias, Maria”, ao que
ela respondeu “Deus Nosso Senhor lhe dê os mesmos, senhor
Abade”.
No dia seguinte, o pároco saudou entrando à fala com “Tens
uns olhos muito lindos, Maria”. E ela, pensando na fórmula do
dia anterior, respondeu “Deus Nosso Senhor lhe dê
os mesmos, senhor Abade”.
E, no terceiro dia, o padre disse “Ó
Maria, tens ali um carneiro com uns cornos tão grandes!”. E ela,
pensando na fórmula do primeiro dia, retorquiu “Deus
Nosso Senhor lhe dê os mesmos, senhor Abade”.
Também a propósito do “se
Deus quiser”, recordo um episódio narrado pelo cónego José Cardoso
de Almeida num dos serões catequéticos no Salão Paroquial de Vila Cova à Coelheira.
Duma ocasião, disse o marido para a mulher à noite:
- Prepara lá a burra com as coisas que temos para vender,
que eu amanhã vou à fora.
E a mulher acrescentou:
- … Se Deus quiser.
E o marido, no seu ar arrogante e desabrido, retorquiu:
- Amanhã, quer Deus queira, quer não queira, vou
à feira com a burra.
No dia seguinte, o homem levantou-se e, montado na burra com
os objetos de venda, lá partiu. Entretanto, num ponto do percurso, burra e
homem caíram num lamaçal de que não conseguiam sair. Por isso, a um grupo de
feirantes mais madrugadores que já regressavam ele bradava:
- Por favor, alguém que tenha a bondade, se
Deus quiser, de ir minha casa, se
Deus quiser, dizer à minha Zefinha, se
Deus quiser, que peça a alguém, se
Deus quiser, que venha com ela, se
Deus quiser, tragam umas cordas, se
Deus quiser, e venham até aqui, se
Deus quiser, para nos tirarem daqui, se
Deus quiser, a minha burrinha e a mim, se
Deus quiser, para eu ir na minha burrinha à feira, se
Deus quiser.
Depois, já invocava Deus, provavelmente em vão, para tudo!
***
Como os crentes não devem levar ao extremo as linguagens
próprias na relações interpessoais e na comunicação social, não devendo
obviamente perder a obrigação de propor as suas ideias e de fazer os seus
apelos em coerência com aquilo em que acreditam e que professam, também os
laicos e os defensores legítimos do Estado não confessional não podem cair no
purismo de expurgar da linguagem comum, mesmo nos departamentos estatais, as
palavras que tenham vestígios de religião, mesmo da pagã, sob pena da negação
das raízes e da cultura como um todo – até porque, embora o Estado seja
confessional, a sociedade não o é nem tem de o ser, como não tem de ser
religiosa ou ateia. E o laicismo bem entendido abre, sem privilegiar, espaço a
todas as manifestações religiosas ou não religiosas enquanto expressão de
cultura e de desígnio pessoal e social, embora prudentemente deva ter em conta
o volume de expressão de cada uma.
Ademais, há o dever de tolerância, que leva a aceitar o que pensam,
dizem ou escrevem os outros, bem como o estilo de cada um. Calar uma voz ou
vetar um estilo e obrigar a um tipo de voz ou de estilo são formas capciosas de
ditadura próximas do ideário fascizante, que esperamos tenha sido abolido de
vez.
Nem beatismos, nem iconoclastias!
2018.10.31 – Louro de Carvalho
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