Não tive a sensação de que os livros
que o Professor Cavaco Silva escreveu sobre a sua prestação como Ministro das
Finanças e como Primeiro-Ministro tivessem gerado grande polémica entre os
portugueses. Já o prefácio a um dos volumes dos seus Roteiros como Presidente da República criou algum tom crítico nos
fãs de José Sócrates pelo facto de, a propósito de um determinado facto
político da governação, o ter acusado de falta de lealdade democrática, o que
não lhe ficou bem. E os dois volumes que deu à estampa sobre o seu exercício
presidencial geraram polémica, mormente o segundo, que foi, há dias,
apresentado.
Diz o ex-Presidente que escreveu os 23
livros na linha do cumprimento da prestação de contas pela forma como exerceu
os altos cargos públicos que lhe foram outorgados por eleição, algo comum
sobretudo nos países de tradição anglo-saxónica. Porém, os críticos falam em
ajuste de contas com os acontecimentos que lhe retiraram popularidade e com o
rumo que outros imprimiram ao devir do país. E, enquanto o Professor refere que
os portugueses têm o direito de saber o que, porque e como fez no exercício do
múnus presidencial, bem como o que deixou de fazer e por que motivos, os
críticos entendem que ele se serviu dos livros para desferir ataques pessoais e
fazer juízos de valor negativo sobre personalidades que institucionalmente
convieram com ele, bem como para justificar a sua baixa popularidade como
Presidente da República. A isto responde que só faz elogios aos políticos que
serviram ao tempo da sua suprema magistratura. Ora, como não temos a predita
tradição (e a cultura
não se nega), o Professor deveria usar dum
comedimento que não levantasse suspeitas. Ademais, como é que fala em elogio se
emprega expressões ambíguas e outras que denotam apoucamento, tais como encarar
os problemas de Estado como se fossem trivialidades ou empurrar os problemas
com a barriga para a frente?
Sustenta a solidez das asserções feitas no livro com
as notas que tirava por si ou por outrem nas reuniões (aprendeu na universidade a tirar notas com grande rapidez e, num encontro
com qualquer pessoa, regista na totalidade palavra por palavra o que é dito) e não tanto com a sinceridade dos interlocutores. Deselegante, não? E a
fiabilidade das anotações pessoais enquanto se ouve alguém é duvidosa.
***
Todas as explicações foram vertidas
nas abundantes declarações feitas à TSF,
ao Expresso e à SIC, sendo que o mais surpreendente para Cavaco na atual solução
política foi o modo como Bloco de Esquerda e PCP apoiam a redução do défice. O político que rejeitou o rótulo de político, mas foi quem venceu mais
eleições em democracia, o político que raramente tinha dúvidas e nunca se
enganava, enganou-se. Achou que a solução de Governo gerada pela “geringonça” (designação por si empregue
alegadamente com simpatia), não resultaria, mas resultou. E
apercebeu-se, logo em 2016 (mas só no-lo disse agora), de que resultaria, só porque o BE
e o PCP se curvaram à necessidade de consolidação das contas públicas e porque
Centeno, que começou mal, “entrou nos eixos”, a ponto de Cavaco o conseguir
imaginar num governo socialdemocrata de direita. É demasiado!
***
Já esperava, em certa medida, as críticas que este livro está a gerar,
pois, ao invés dos outros políticos, que não prestam contas das ações que
desenvolvem no desempenho de altos cargos públicos, começou a fazê-lo logo como
Ministro das Finanças, em 1980, no Governo de Sá Carneiro. E, saído o volume II
do que fez, atitudes que tomou no período 2006-1016, confessa:
“Na totalidade, publiquei 23 livros de
prestação de contas aos portugueses, uns maiores outros menores, descrevendo
diferentes aspetos da minha atuação como político, como Ministro das Finanças,
como Primeiro-Ministro e como Presidente da República”.
Quanto ao facto de a polémica decorrer da adjetivação
demasiado colorida a caraterizar outros políticos portugueses, com os quem
lidou institucionalmente, como a “inexperiência” de Passos, a “insegurança” de
Seguro, “a arte” de Costa ou “a infantilidade” de Portas, reage com garbo:
“Tenho em casa cerca de 50 biografias de grandes
líderes políticos do mundo e é normal, nas memórias, os políticos exprimirem a
sua opinião, o que colheram do contacto com outros protagonistas da política,
as impressões que recolheram no momento em que os factos tiveram lugar. O que
eu faço é exprimir os pensamentos que me atravessaram nos momentos em que os
factos que estou a descrever tiveram lugar. Quem consulta biografias de outros
políticos europeus verifica que é assim. Para a atuação de um político é
importante saber como reage o outro político. Se é teimoso ou não, se se
exalta, se é mais ou menos sensível àquilo que dizem dele. Tudo isso condiciona
a forma como o Presidente da República o deve tratar. Eu não podia deixar de
dar conhecimento aos portugueses daquilo que influenciou o que fiz e deixei de
fazer.”.
Garantindo que as questões temperamentais dos
interlocutores são decisivas para leitura política que faz da intervenção deles,
discorre esquecendo que está a um passo do juízo pessoal:
“Os portugueses têm o direito de saber como
é que o Presidente reagiu, como é que dialogou com os outros políticos num dos
períodos mais dramáticos da nossa democracia, em que foram impostos sacrifícios
tão pesados aos portugueses na execução de um programa de assistência
financeira ditado por entidades externas.”.
Assegura ser “bastante educado” (Devia esperar
que fossem outros a dizê-lo!), ao invés do que outros políticos nacionais fizeram em relação à sua
própria pessoa, e diz:
“Faço avaliações de políticos, tendo
presente o diálogo com eles mantido, procurando um rigor dos factos que seja
difícil de desmentir”.
Referindo que fez reparos (diretos e
indiretos) a alguns (o que acha normal e banal), lamenta que os políticos portugueses tenham medo de se submeter ao exame
da consistência intertemporal das posições assumidas.
Não responde ao facto de Carlos César ter apontado quebra do dever de
reserva (com razão), mas
ufana-se do sucedido em relação aos Açores, nomeadamente ao facto de, apesar dos ataques
que foram feitos nas eleições nos Açores, ter vencido em todas as ilhas, em
todos os concelhos e em todas as freguesias. E, relativamente ao novo estatuto
político e administrativo dos Açores, diz:
“Quando as autoridades dos Açores
submeteram à Assembleia da República uma proposta do novo estatuto político e
administrativo dos Açores, eu lutei – e lutei muito – para que o diploma fosse
submetido ao Tribunal Constitucional (TC). Porque entendia que feria os
superiores interesses nacionais. E sabe o que aconteceu? Pela primeira vez na
nossa democracia, o Tribunal Constitucional declarou 25 normas
inconstitucionais. Como político, foi talvez um dos serviços que eu considerei
mais importantes para a defesa do interesse nacional: conseguir impedir que as
autoridades dos Açores levassem por diante uma proposta em que 25 normas foram
declaradas inconstitucionais.”.
Quanto a divergências com o Governo de Passos, diz terem-se situado muito “no campo da distribuição dos sacrifícios
pelos portugueses, embora reconhecendo que o Governo fez um trabalho com muita
coragem para impedir um segundo resgate”, já que, por formação académica,
entende que as famílias devem ser tributadas de acordo com o seu rendimento
global. Por outro lado, refere que as medidas que foram objeto de divergência
foram quase todas declaradas inconstitucionais pelo TC. E, se o Governo tivesse
seguido outra via, teria sofrido menor desgaste perante a opinião pública. Porém, reconhece que o Governo de
Passos conseguiu algo extraordinária para o país: evitar um segundo resgate e a
continuação da austeridade.
Faltou-lhe referir que Eduardo Catroga o informava constantemente do estado
das negociações do programa de resgate, que se atribui exclusivamente ao XVIII
Governo Constitucional.
***
Diz que Portas deu um contributo importante para que Portugal tivesse uma
saída limpa do programa de assistência financeira. Mas apresentou a demissão de
Ministro dos Negócios Estrangeiros e publicou um comunicado lançando o país numa
grave crise política a poucas horas da posse da Ministra das Finanças, pelo que
lhe manifestou inteira discordância, sendo “muito direto e claro” na defesa dos
interesses do país. Depois, veio a tentativa de juntar o PSD, o PS e o CDS no compromisso de salvação nacional. Após 6
reuniões frutuosas entre representantes do PS, do PSD e do CDS – convicto do acordo
de longo prazo que assegurava a estabilidade política do país e permitia
completar a execução do programa de assistência financeira, encontrou-se com
Seguro, que foi pessoa sempre corretíssima e que revelou, em geral, grande
sentido dos interesses do país. Porém, nessa reunião, ao invés do esperado, disse
que não tinha condições para o acordo, porque haveria rutura no PS. E, apesar
de, a pedido de Cavaco, ter dito ir tentar segurar o partido, apareceu na TV a
denunciar o acordo – acordo que o Presidente achava a melhor saída para
o país, subindo Seguro a Primeiro-Ministro (se ganhasse as
eleições, como diziam, o que não dá para garantir ter perdido a oportunidade de ser
Primeiro-Ministro, como Cavaco afirma). E, em
nome da experiência, critica:
“Quando se é líder – e eu tive experiências
desse tipo dentro do meu partido –, em certos momentos é preciso enfrentar aqueles
que se nos opõem. Ele não foi capaz. No fim da declaração dele na televisão,
tinha um bloco na mão e escrevi a minha reação. Acho que os portugueses devem
saber como reagiu o Presidente em situações difíceis. Eu quero ser totalmente
transparente em relação aos portugueses.”.
***
Questionado sobre qual destes ministros, Portas
ou Relvas, lhe custou a aceitar, disse que o Presidente deve, em geral, aceitar as propostas de ministros e
secretários de Estado que lhe são apresentados. Contudo, não quer dizer que, na
troca de impressões com o Primeiro-Ministro, não tenha feito avaliação dalguns,
só que no livro preferiu deixar de fora as questões pessoais, tal como deixou
tudo o que possa ferir o superior interesse nacional. Por isso, as observações sobre
os ministros propostos são contidas (mas viu logo
que Azeredo Lopes era problemático e falava muito). E à PGR, que agora superlativizar, tinha-a superavaliado como tímida, discreta e
honesta.
Considerou que a reiterada demissão de Passos
induziria uma situação dramática no país numa quando o Governo estava a
executar o programa de assistência económica e financeira que recebera das
negociações feitas pelo Governo de Sócrates. Por isso, várias vezes atuou por
forma a aguentar o Governo tentando o diálogo entre líderes dos dois partidos para
evitar o que receava muito, um segundo resgate. Com efeito, o Governo de
coligação foi chamado a executar um programa de assistência financeira com
austeridade muito forte em tempo recessão profunda na Europa (incluindo a forte recessão em Espanha, que também atingiu Portugal) e da crise do Euro. Embora
discordando dalgumas opções do Governo, reconhece que Passos e Portas encontraram
e reencontraram o caminho e “tivemos uma saída limpa”. Foi mesmo?
***
Sobre o facto de ter
trabalhado com três primeiros-ministros em Belém, permite-se não fazer distinção,
pois as suas reuniões com os primeiros-ministros eram reuniões de trabalho, em
geral muito cordiais (foi assim com os três), ia bem preparado para elas e
sabia tanto as perguntas que queria fazer como as opiniões que queria
transmitir. Vê também aqui as coisas quase só pelo lado do seu mérito pessoal,
até quando diz não “fazer comparações
entre três pessoas com as quais trabalhei, procurando servir o país”, pois
está convencido que, embora com posições diferentes, estavam em situação semelhante à minha” (a dele).
Respondeu às objeções de que no livro critica a
Costa o estilo, a atitude descontraída com que encara problemas concretos e que
o primeiro ano de Costa não foi bom para o país, mesmo sabendo que isso escapava
ao período para que este livro remete, declarando:
“Eu quero começar por dizer que as minhas
reuniões com o Dr. António Costa foram sempre reuniões cordiais. Foram reuniões
de trabalho e ele foi sempre muito cuidadoso a fornecer a informação que
considerava que o Presidente da República deveria conhecer. Ou, quando eu lhe
pedia alguma informação, ele era cuidadoso em enviar-me.”.
E adverte que não são críticas o que faz a Costa, mesmo quando diz que ele é “um artista na arte de nunca dizer não”, sustentando:
“Quando eu trabalho com um
primeiro-ministro, vou pensando como é que ele atua na prática, porque isso
ajuda-me até a estabelecer o diálogo com ele próprio, para obter aquilo que eu
penso que é melhor para o país. E, portanto, o dizer que ele é hábil – mas toda
a gente diz que ele é hábil –, que ele tem um sorriso fácil – mas toda a gente
nota isso –, que ele adia a resolução de alguns problemas – mas basta olhar
para os jornais do dia a dia... Não penso que isso sejam críticas.”.
Esquece que o facto de muitos dizerem as mesmas
coisas não abona per se em favor dos
visados.
***
A propósito do êxito da “geringonça”, refere que antecipou que a ideologia
acabaria por ser derrotada pela realidade na parte económica (porque essa era, em grande parte, imposta a Portugal, vinda da
interdependência dos países que são membros da zona do Euro), mas reconhece não ter
antecipado que “o Bloco de Esquerda e o
PCP se curvassem com tanta facilidade a essa realidade”, nomeadamente naquilo
“com que anteriormente atacavam com
grande violência” o Governo de Passos Coelho, “em particular em matéria orçamental ou, por exemplo, em cortes na área
da saúde”. E observa:
“Agora eles aceitam com toda a facilidade a
imposição do Ministro das Finanças – corretamente – para respeitar aquilo que
ele próprio procura impor no Eurogrupo aos outros países, nos mais variados
domínios fiscais ou de despesas públicas. Basta comparar a atitude que esses
dois partidos tomaram no Governo de Passos Coelho e aquela que tomam em relação
às mesmas matérias agora, com este Governo.”.
Quanto a Centeno, disse que “o primeiro
Orçamento dele foi como que rejeitado”, ou seja, quase rejeitado pela Comissão
Europeia e “foi duramente criticado pelo Conselho de Finanças Públicas e pela
Unidade Técnica de Apoio Orçamental da Assembleia da República”. Porém, “agora
não teria dificuldade em dizer que ele pode fazer parte de um Governo socialdemocrata
de direita”, até com a vantagem de ser
mais hábil que Vítor Gaspar, que o Professor considerou não ter sido um político
hábil, embora seja um bom economista. E sustenta:
“Sim, penso que ele (Mário Centeno) se tem
revelado no diálogo – em particular com o Bloco de Esquerda e com o PCP – e na
firmeza demonstrada, uma pessoa hábil. Mas, acima de tudo um Ministro das Finanças
precisa do apoio a 99% do Primeiro-Ministro. Isso aprendi eu, há muito muito
tempo, olhando em particular aquilo que se passava na Alemanha. Esta afirmação
que eu faço foi do chanceler Schmidt quando lhe perguntaram se ele apoiava o Ministro
das Finanças em 50%, ele respondeu ‘não, a 50% não, a 99%’.”.
Revela no livro que Jerónimo de Sousa, logo após
as eleições de outubro de 2015, entregara a Costa um documento com 9 pontos
tidos como prioritários para um entendimento entre o PCP e o PS, mostrando-se o
Partido Comunista disponível para assumir responsabilidades governativas. E diz que nos contactos que teve
com o PCP ficara com a ideia de que poderiam não rejeitar participar no
Governo, mas que percebera, desde o início, que António Costa não queria isso.
Assim, nunca foi confrontado com a possibilidade de o PCP participar no
Governo e soube que António Costa considerava que um Governo minoritário, da
parte do PS, era o que tinha melhor acolhimento nas instâncias internacionais e
na sociedade portuguesa, em particular na sociedade empresarial. A questão que
se colocava era saber se era assegurada a durabilidade do Governo durante 4
anos. A este respeito, Costa encontrou a expressão certa no documento de
políticas conjuntas: “um governo credível
e duradouro”. E Jerónimo de Sousa, quando Cavaco Silva o confrontou com a
questão, disse mais ou menos isto: “O
Governo durará tanto quanto mais servir os interesses dos trabalhadores”.
***
Em suma, o livro é pública autojustificação, próxima do ajuste de contas (vêm as declarações subsequentes a dourar a pílula transformando algumas
expressões mordazes ou dúbias em elogios) numa linha de protagonismo premonitório (Eu sabia, eu avisei…), magisterial, judicioso,
retificante e profético – a contrariar a baixa popularidade atingida. Vaniloquos reiicio et despicientes. Talvez
fosse melhor ter deixado a Historia fazer em tempo próprio o seu juízo soberano!
2018.10.28 –
Louro de Carvalho
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