segunda-feira, 29 de outubro de 2018

Prestação de Contas ou ajuste de contas?



Não tive a sensação de que os livros que o Professor Cavaco Silva escreveu sobre a sua prestação como Ministro das Finanças e como Primeiro-Ministro tivessem gerado grande polémica entre os portugueses. Já o prefácio a um dos volumes dos seus Roteiros como Presidente da República criou algum tom crítico nos fãs de José Sócrates pelo facto de, a propósito de um determinado facto político da governação, o ter acusado de falta de lealdade democrática, o que não lhe ficou bem. E os dois volumes que deu à estampa sobre o seu exercício presidencial geraram polémica, mormente o segundo, que foi, há dias, apresentado.  
Diz o ex-Presidente que escreveu os 23 livros na linha do cumprimento da prestação de contas pela forma como exerceu os altos cargos públicos que lhe foram outorgados por eleição, algo comum sobretudo nos países de tradição anglo-saxónica. Porém, os críticos falam em ajuste de contas com os acontecimentos que lhe retiraram popularidade e com o rumo que outros imprimiram ao devir do país. E, enquanto o Professor refere que os portugueses têm o direito de saber o que, porque e como fez no exercício do múnus presidencial, bem como o que deixou de fazer e por que motivos, os críticos entendem que ele se serviu dos livros para desferir ataques pessoais e fazer juízos de valor negativo sobre personalidades que institucionalmente convieram com ele, bem como para justificar a sua baixa popularidade como Presidente da República. A isto responde que só faz elogios aos políticos que serviram ao tempo da sua suprema magistratura. Ora, como não temos a predita tradição (e a cultura não se nega), o Professor deveria usar dum comedimento que não levantasse suspeitas. Ademais, como é que fala em elogio se emprega expressões ambíguas e outras que denotam apoucamento, tais como encarar os problemas de Estado como se fossem trivialidades ou empurrar os problemas com a barriga para a frente?    
Sustenta a solidez das asserções feitas no livro com as notas que tirava por si ou por outrem nas reuniões (aprendeu na universidade a tirar notas com grande rapidez e, num encontro com qualquer pessoa, regista na totalidade palavra por palavra o que é dito) e não tanto com a sinceridade dos interlocutores. Deselegante, não? E a fiabilidade das anotações pessoais enquanto se ouve alguém é duvidosa.
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Todas as explicações foram vertidas nas abundantes declarações feitas à TSF, ao Expresso e à SIC, sendo que o mais surpreendente para Cavaco na atual solução política foi o modo como Bloco de Esquerda e PCP apoiam a redução do défice. O político que rejeitou o rótulo de político, mas foi quem venceu mais eleições em democracia, o político que raramente tinha dúvidas e nunca se enganava, enganou-se. Achou que a solução de Governo gerada pela “geringonça” (designação por si empregue alegadamente com simpatia), não resultaria, mas resultou. E apercebeu-se, logo em 2016 (mas só no-lo disse agora), de que resultaria, só porque o BE e o PCP se curvaram à necessidade de consolidação das contas públicas e porque Centeno, que começou mal, “entrou nos eixos”, a ponto de Cavaco o conseguir imaginar num governo socialdemocrata de direita. É demasiado!
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Já esperava, em certa medida, as críticas que este livro está a gerar, pois, ao invés dos outros políticos, que não prestam contas das ações que desenvolvem no desempenho de altos cargos públicos, começou a fazê-lo logo como Ministro das Finanças, em 1980, no Governo de Sá Carneiro. E, saído o volume II do que fez, atitudes que tomou no período 2006-1016, confessa:
Na totalidade, publiquei 23 livros de prestação de contas aos portugueses, uns maiores outros menores, descrevendo diferentes aspetos da minha atuação como político, como Ministro das Finanças, como Primeiro-Ministro e como Presidente da República”.
Quanto ao facto de a polémica decorrer da adjetivação demasiado colorida a caraterizar outros políticos portugueses, com os quem lidou institucionalmente, como a “inexperiência” de Passos, a “insegurança” de Seguro, “a arte” de Costa ou “a infantilidade” de Portas, reage com garbo:
Tenho em casa cerca de 50 biografias de grandes líderes políticos do mundo e é normal, nas memórias, os políticos exprimirem a sua opinião, o que colheram do contacto com outros protagonistas da política, as impressões que recolheram no momento em que os factos tiveram lugar. O que eu faço é exprimir os pensamentos que me atravessaram nos momentos em que os factos que estou a descrever tiveram lugar. Quem consulta biografias de outros políticos europeus verifica que é assim. Para a atuação de um político é importante saber como reage o outro político. Se é teimoso ou não, se se exalta, se é mais ou menos sensível àquilo que dizem dele. Tudo isso condiciona a forma como o Presidente da República o deve tratar. Eu não podia deixar de dar conhecimento aos portugueses daquilo que influenciou o que fiz e deixei de fazer.”.
Garantindo que as questões temperamentais dos interlocutores são decisivas para leitura política que faz da intervenção deles, discorre esquecendo que está a um passo do juízo pessoal:
Os portugueses têm o direito de saber como é que o Presidente reagiu, como é que dialogou com os outros políticos num dos períodos mais dramáticos da nossa democracia, em que foram impostos sacrifícios tão pesados aos portugueses na execução de um programa de assistência financeira ditado por entidades externas.”.
Assegura ser “bastante educado” (Devia esperar que fossem outros a dizê-lo!), ao invés do que outros políticos nacionais fizeram em relação à sua própria pessoa, e diz:
Faço avaliações de políticos, tendo presente o diálogo com eles mantido, procurando um rigor dos factos que seja difícil de desmentir”.
Referindo que fez reparos (diretos e indiretos) a alguns (o que acha normal e banal), lamenta que os políticos portugueses tenham medo de se submeter ao exame da consistência intertemporal das posições assumidas.
Não responde ao facto de Carlos César ter apontado quebra do dever de reserva (com razão), mas ufana-se do sucedido em relação aos Açores, nomeadamente ao facto de, apesar dos ataques que foram feitos nas eleições nos Açores, ter vencido em todas as ilhas, em todos os concelhos e em todas as freguesias. E, relativamente ao novo estatuto político e administrativo dos Açores, diz:
Quando as autoridades dos Açores submeteram à Assembleia da República uma proposta do novo estatuto político e administrativo dos Açores, eu lutei – e lutei muito – para que o diploma fosse submetido ao Tribunal Constitucional (TC). Porque entendia que feria os superiores interesses nacionais. E sabe o que aconteceu? Pela primeira vez na nossa democracia, o Tribunal Constitucional declarou 25 normas inconstitucionais. Como político, foi talvez um dos serviços que eu considerei mais importantes para a defesa do interesse nacional: conseguir impedir que as autoridades dos Açores levassem por diante uma proposta em que 25 normas foram declaradas inconstitucionais.”.
Quanto a divergências com o Governo de Passos, diz terem-se situado muito “no campo da distribuição dos sacrifícios pelos portugueses, embora reconhecendo que o Governo fez um trabalho com muita coragem para impedir um segundo resgate”, já que, por formação académica, entende que as famílias devem ser tributadas de acordo com o seu rendimento global. Por outro lado, refere que as medidas que foram objeto de divergência foram quase todas declaradas inconstitucionais pelo TC. E, se o Governo tivesse seguido outra via, teria sofrido menor desgaste perante a opinião pública. Porém, reconhece que o Governo de Passos conseguiu algo extraordinária para o país: evitar um segundo resgate e a continuação da austeridade.
Faltou-lhe referir que Eduardo Catroga o informava constantemente do estado das negociações do programa de resgate, que se atribui exclusivamente ao XVIII Governo Constitucional.  
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Diz que Portas deu um contributo importante para que Portugal tivesse uma saída limpa do programa de assistência financeira. Mas apresentou a demissão de Ministro dos Negócios Estrangeiros e publicou um comunicado lançando o país numa grave crise política a poucas horas da posse da Ministra das Finanças, pelo que lhe manifestou inteira discordância, sendo “muito direto e claro” na defesa dos interesses do país. Depois, veio a tentativa de juntar o PSD, o PS e o CDS no compromisso de salvação nacional. Após 6 reuniões frutuosas entre representantes do PS, do PSD e do CDS – convicto do acordo de longo prazo que assegurava a estabilidade política do país e permitia completar a execução do programa de assistência financeira, encontrou-se com Seguro, que foi pessoa sempre corretíssima e que revelou, em geral, grande sentido dos interesses do país. Porém, nessa reunião, ao invés do esperado, disse que não tinha condições para o acordo, porque haveria rutura no PS. E, apesar de, a pedido de Cavaco, ter dito ir tentar segurar o partido, apareceu na TV a denunciar o acordo – acordo que o Presidente achava a melhor saída para o país, subindo Seguro a Primeiro-Ministro (se ganhasse as eleições, como diziam, o que não dá para garantir ter perdido a oportunidade de ser Primeiro-Ministro, como Cavaco afirma). E, em nome da experiência, critica:
Quando se é líder – e eu tive experiências desse tipo dentro do meu partido –, em certos momentos é preciso enfrentar aqueles que se nos opõem. Ele não foi capaz. No fim da declaração dele na televisão, tinha um bloco na mão e escrevi a minha reação. Acho que os portugueses devem saber como reagiu o Presidente em situações difíceis. Eu quero ser totalmente transparente em relação aos portugueses.”.
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Questionado sobre qual destes ministros, Portas ou Relvas, lhe custou a aceitar, disse que o Presidente deve, em geral, aceitar as propostas de ministros e secretários de Estado que lhe são apresentados. Contudo, não quer dizer que, na troca de impressões com o Primeiro-Ministro, não tenha feito avaliação dalguns, só que no livro preferiu deixar de fora as questões pessoais, tal como deixou tudo o que possa ferir o superior interesse nacional. Por isso, as observações sobre os ministros propostos são contidas (mas viu logo que Azeredo Lopes era problemático e falava muito). E à PGR, que agora superlativizar, tinha-a superavaliado como tímida, discreta e honesta.
Considerou que a reiterada demissão de Passos induziria uma situação dramática no país numa quando o Governo estava a executar o programa de assistência económica e financeira que recebera das negociações feitas pelo Governo de Sócrates. Por isso, várias vezes atuou por forma a aguentar o Governo tentando o diálogo entre líderes dos dois partidos para evitar o que receava muito, um segundo resgate. Com efeito, o Governo de coligação foi chamado a executar um programa de assistência financeira com austeridade muito forte em tempo recessão profunda na Europa (incluindo a forte recessão em Espanha, que também atingiu Portugal) e da crise do Euro. Embora discordando dalgumas opções do Governo, reconhece que Passos e Portas encontraram e reencontraram o caminho e “tivemos uma saída limpa”. Foi mesmo?
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Sobre o facto de ter trabalhado com três primeiros-ministros em Belém, permite-se não fazer distinção, pois as suas reuniões com os primeiros-ministros eram reuniões de trabalho, em geral muito cordiais (foi assim com os três), ia bem preparado para elas e sabia tanto as perguntas que queria fazer como as opiniões que queria transmitir. Vê também aqui as coisas quase só pelo lado do seu mérito pessoal, até quando diz não “fazer comparações entre três pessoas com as quais trabalhei, procurando servir o país”, pois está convencido que, embora com posições diferentes, estavam em situação semelhante à minha” (a dele).
Respondeu às objeções de que no livro critica a Costa o estilo, a atitude descontraída com que encara problemas concretos e que o primeiro ano de Costa não foi bom para o país, mesmo sabendo que isso escapava ao período para que este livro remete, declarando:
Eu quero começar por dizer que as minhas reuniões com o Dr. António Costa foram sempre reuniões cordiais. Foram reuniões de trabalho e ele foi sempre muito cuidadoso a fornecer a informação que considerava que o Presidente da República deveria conhecer. Ou, quando eu lhe pedia alguma informação, ele era cuidadoso em enviar-me.”.
E adverte que não são críticas o que faz a Costa, mesmo quando diz que ele é “um artista na arte de nunca dizer não”, sustentando:
Quando eu trabalho com um primeiro-ministro, vou pensando como é que ele atua na prática, porque isso ajuda-me até a estabelecer o diálogo com ele próprio, para obter aquilo que eu penso que é melhor para o país. E, portanto, o dizer que ele é hábil – mas toda a gente diz que ele é hábil –, que ele tem um sorriso fácil – mas toda a gente nota isso –, que ele adia a resolução de alguns problemas – mas basta olhar para os jornais do dia a dia... Não penso que isso sejam críticas.”.
Esquece que o facto de muitos dizerem as mesmas coisas não abona per se em favor dos visados.
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A propósito do êxito da “geringonça”, refere que antecipou que a ideologia acabaria por ser derrotada pela realidade na parte económica (porque essa era, em grande parte, imposta a Portugal, vinda da interdependência dos países que são membros da zona do Euro), mas reconhece não ter antecipado que “o Bloco de Esquerda e o PCP se curvassem com tanta facilidade a essa realidade”, nomeadamente naquilo “com que anteriormente atacavam com grande violência” o Governo de Passos Coelho, “em particular em matéria orçamental ou, por exemplo, em cortes na área da saúde”. E observa:
Agora eles aceitam com toda a facilidade a imposição do Ministro das Finanças – corretamente – para respeitar aquilo que ele próprio procura impor no Eurogrupo aos outros países, nos mais variados domínios fiscais ou de despesas públicas. Basta comparar a atitude que esses dois partidos tomaram no Governo de Passos Coelho e aquela que tomam em relação às mesmas matérias agora, com este Governo.”.
Quanto a Centeno, disse que “o primeiro Orçamento dele foi como que rejeitado”, ou seja, quase rejeitado pela Comissão Europeia e “foi duramente criticado pelo Conselho de Finanças Públicas e pela Unidade Técnica de Apoio Orçamental da Assembleia da República”. Porém, “agora não teria dificuldade em dizer que ele pode fazer parte de um Governo socialdemocrata de direita”, até com a vantagem de ser mais hábil que Vítor Gaspar, que o Professor considerou não ter sido um político hábil, embora seja um bom economista. E sustenta:
Sim, penso que ele (Mário Centeno) se tem revelado no diálogo – em particular com o Bloco de Esquerda e com o PCP – e na firmeza demonstrada, uma pessoa hábil. Mas, acima de tudo um Ministro das Finanças precisa do apoio a 99% do Primeiro-Ministro. Isso aprendi eu, há muito muito tempo, olhando em particular aquilo que se passava na Alemanha. Esta afirmação que eu faço foi do chanceler Schmidt quando lhe perguntaram se ele apoiava o Ministro das Finanças em 50%, ele respondeu ‘não, a 50% não, a 99%’.”.
Revela no livro que Jerónimo de Sousa, logo após as eleições de outubro de 2015, entregara a Costa um documento com 9 pontos tidos como prioritários para um entendimento entre o PCP e o PS, mostrando-se o Partido Comunista disponível para assumir responsabilidades governativas. E diz que nos contactos que teve com o PCP ficara com a ideia de que poderiam não rejeitar participar no Governo, mas que percebera, desde o início, que António Costa não queria isso.
Assim, nunca foi confrontado com a possibilidade de o PCP participar no Governo e soube que António Costa considerava que um Governo minoritário, da parte do PS, era o que tinha melhor acolhimento nas instâncias internacionais e na sociedade portuguesa, em particular na sociedade empresarial. A questão que se colocava era saber se era assegurada a durabilidade do Governo durante 4 anos. A este respeito, Costa encontrou a expressão certa no documento de políticas conjuntas: “um governo credível e duradouro”. E Jerónimo de Sousa, quando Cavaco Silva o confrontou com a questão, disse mais ou menos isto: “O Governo durará tanto quanto mais servir os interesses dos trabalhadores”.
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Em suma, o livro é pública autojustificação, próxima do ajuste de contas (vêm as declarações subsequentes a dourar a pílula transformando algumas expressões mordazes ou dúbias em elogios) numa linha de protagonismo premonitório (Eu sabia, eu avisei…), magisterial, judicioso, retificante e profético – a contrariar a baixa popularidade atingida. Vaniloquos reiicio et despicientes. Talvez fosse melhor ter deixado a Historia fazer em tempo próprio o seu juízo soberano!
2018.10.28 – Louro de Carvalho

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