Deu entrada
na Assembleia da República, no passado dia 4 de outubro, a Proposta de Lei n.º 150/XIII,
do Governo (adiante designada por Proposta), que pretende alterar “o regime do exercício da atividade de segurança privada e da
autoproteção”, através da alteração da Lei n.º 34/2013, de 16 de maio, que estabelece o
regime do exercício da atividade de segurança privada e procede à primeira
alteração à Lei n.º 49/2008, de 27 de agosto (Lei de Organização da
Investigação Criminal). A Proposta
foi admitida no dia 16, baixando à comissão
competente, no caso a Comissão de
Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias.
O documento, aprovado em Conselho de Ministros no verão
passado, vem instruído com os diversos pareceres das entidades cuja atividade
está de algum modo conexa com a matéria e anexa a ficha de “avaliação prévia de
impacto de género” (AIG) com a seguinte
anotação: “Sem impacto de género”.
Segundo o texto da Proposta,
“foi
ouvido o Conselho de Segurança Privada, para o qual foram convidados como membros
não permanentes a Secretária-Geral do Sistema de Segurança Interna, o Banco de
Portugal, a Imprensa Nacional-Casa da Moeda, S. A., a Associação Portuguesa de
Bancos, a Associação da Hotelaria, Restauração e Similares de Portugal, a
Associação Portuguesa de Centros Comerciais, a Associação Portuguesa de
Segurança e a Associação de Diretores de Segurança de Portugal”.
A norma que está suscitar polémica é a do art.º 19.º, cujo
teor vem respaldado na Exposição
de Motivos nos
termos seguintes:
“No que diz respeito às funções que podem
ser desempenhadas pelo pessoal de vigilância, repõe-se a possibilidade de
realização de revistas pessoais de prevenção e segurança por palpação e vistoria
dos bens transportados no acesso a recintos desportivos, a zonas restritas de
segurança de portos e aeroportos ou a outros locais que justifiquem proteção
reforçada e onde estas tenham sido autorizadas, desde que sob supervisão das
forças de segurança. Cientes da existência de determinados locais que exigem
especiais cuidados de segurança, prevê-se ainda a possibilidade de, em
situações excecionais, ser realizado um controlo de segurança com recurso a
meios técnicos à saída, contribuindo para a prevenção da prática de ilícitos
criminais.”.
O
teor do art.º 19.º, com a epígrafe “Revistas pessoais de
prevenção e segurança”, passará a ser:
“
1. Os assistentes de recinto desportivo, no controlo de
acesso aos recintos desportivos, bem como os assistentes de portos e
aeroportos, no controlo de acesso a zonas restritas de segurança de instalações
portuárias e aeroportuárias, podem efetuar revistas pessoais de prevenção e
segurança com o estrito objetivo de impedir a entrada de objetos e substâncias
proibidas ou suscetíveis de gerar ou possibilitar atos de violência.
2. Para efeitos do disposto no número anterior, o pessoal
de vigilância pode:
a) Recorrer ao uso de
raquetes de deteção de metais e de explosivos ou operar outros equipamentos de
revista não intrusivos com a mesma finalidade, previamente autorizados;
b) Realizar revistas
intrusivas por palpação e vistoria dos bens transportados pelos visados, devendo,
neste caso, estar sob a supervisão das forças de segurança territorialmente
competentes.
3. Por um período delimitado no tempo, e
mediante despacho do membro do Governo responsável pela área da administração
interna, podem ser autorizadas revistas pessoais de prevenção e segurança em
locais de acesso vedado ou condicionado ao público, que justifiquem proteção
reforçada, nos termos do número anterior.
4. A revista por palpação apenas pode ser
realizada por pessoal de vigilância do mesmo género que a pessoa controlada.
5. A supervisão das forças de segurança,
prevista na alínea b) do n.º 2, a
requerer pela entidade responsável pela gestão do espaço ou do evento, deve
atender ao número de seguranças privados a realizar revistas, ao número de
pessoas a ela sujeitos e a outros fatores e circunstâncias que contribuam para
a avaliação de risco.
6. A entidade autorizada a realizar revistas
pessoais de prevenção e segurança nos termos do n.º 3 promove a afixação da
autorização concedida, em local visível, junto dos locais de controlo de
acesso.
7. A
recusa à submissão a revista, realizada nos termos da presente lei, pode
determinar a impossibilidade de entrada no local controlado.”.
O teor acima descrito substitui o
curto art.º 19.º da Lei n.º 34/2013, de 16 de maio, mantendo-lhe epígrafe “Revistas pessoais de prevenção e segurança”, que é o seguinte:
“
1. Os assistentes de recinto desportivo, no controlo
de acesso aos recintos desportivos, bem como os assistentes de portos e
aeroportos, no controlo de acesso a zonas restritas de segurança de instalações
portuárias e aeroportuárias, podem efetuar revistas pessoais de prevenção e
segurança com o estrito objetivo de impedir a entrada de objetos e substâncias
proibidas ou suscetíveis de gerar ou possibilitar atos de violência, devendo,
para o efeito, recorrer ao uso de raquetes de deteção de metais e de explosivos
ou operar outros equipamentos de revista não intrusivos com a mesma finalidade,
previamente autorizados.
2. Por um período delimitado no tempo, e mediante
despacho do membro do Governo responsável pela área da administração interna,
podem ser autorizadas revistas pessoais de prevenção e segurança em locais de
acesso vedado ou condicionado ao público, que justifiquem proteção reforçada,
devendo o pessoal de vigilância devidamente qualificado utilizar meios técnicos
adequados, designadamente raquetes de deteção de metais e de explosivos ou
operar outros equipamentos de revista não intrusivos com a mesma finalidade,
previamente autorizados, bem como equipamentos de inspeção não intrusiva de
bagagem, com o estrito objetivo de detetar e impedir a entrada de pessoas ou
objetos proibidos e substâncias proibidas ou suscetíveis de gerar ou
possibilitar atos que ponham em causa a segurança de pessoas e bens.
3. A entidade autorizada a realizar revistas pessoais
de prevenção e segurança nos termos do número anterior promove a afixação da
autorização concedida, em local visível, junto dos locais de controlo de acesso.”.
***
No seu parecer,
o STAD (Sindicato
dos Trabalhadores de Serviços de Portaria, Vigilância, Limpeza, Domésticas e
Atividades Diversas) sugere que
“as
palpações só devem ocorrer por agentes da PSP com a participação dos trabalhadores
de segurança privada”.
Ou seja, limita-se a propor a inversão da ordem que está prevista na alínea b)
do n.º. 2.
Os pareceres
das demais entidades, a não ser o da IGAI, não relevam para este artigo.
***
Porém,
o parecer da IGAI (Inspeção-geral
da Administração Interna) ataca duramente
a Proposta por alegadamente a revista
por palpação levantar dúvidas sobre direitos constitucionais.
Como refere
o “Observador”, “a alteração mais
relevante do regime passa por abrir à segurança privada a possibilidade de ‘revistas
intrusivas por palpação’, embora vigiadas pela polícia, no acesso a recintos
desportivos, culturais, aeroportos e portos”.
O parecer da
IGAI pode ler-se no site do Parlamento
na data que regista a entrada da Proposta de Lei n.º 150/XIII (4 de outubro) e é tratado em artigo do “Diário de
Notícias”, que denomina a alteração proposta pelo Ministro da Administração
Interna, Eduardo Cabrita, de “impulso
legislativo”, que coloca várias dúvidas de base. Além disso, segundo a IGAI,
não esclarece:
“Em que circunstâncias concretas são tais
revistas admissíveis? Porque são de admitir? O que é que está mal hoje ou que
insuficiências há hoje no serviço prestado pela indústria da segurança privada
que, com as revistas pessoais intrusivas por palpação e a vistoria dos bens
transportados pelos visados, possa melhorar e ser mais eficiente?”.
Por outro
lado, aquele órgão inspetivo diz que o novo regime “pode confundir-se com uma medida de polícia, atribuindo a pessoal de
vigilância atribuições que a Constituição e a lei reservam exclusivamente para
a polícia” e critica a “ironia” de polícias a vigiar revistas da segurança
privada, apontando:
“Não deixaria de ser irónico que agora a
polícia tivesse de regressar a um domínio de que esteve afastada e que tivesse
de o fazer desviando agentes de funções mais consentâneas com os domínios mais
nobres da função policial para exercer controlo sobre o trabalho realizado por
pessoal de vigilância”.
O art.º 19.º
da Proposta determina que o pessoal
de vigilância passa a poder “realizar
revistas intrusivas por palpação e vistoria dos bens transportados pelos
visados, devendo, neste caso, estar sob a supervisão das forças de segurança territorialmente
competentes”. Ou
seja, acompanhados de polícias. E também estipula que tais revistas devem ser
feitas por pessoas do mesmo género (Não sei como é que os
corifeus da igualdade de género não contestam o ato discriminatório dessa
revista intrusiva só poder ser feita por agente do mesmo sexo que o revistado!). Ora, a lei em vigor só permitia a utilização, por parte dos seguranças, de raquetes
de deteção de metais e de explosivos ou outros equipamentos “não intrusivos”,
sendo proibido qualquer contacto físico entre o segurança e o revistado. E até agora, este tipo de revistas
era permitido no âmbito das leis de segurança para aeroportos e eventos
desportivos. Doravante, passarão a estar consagradas na lei de segurança
privada e são alargadas a festivais e concertos, e outros acontecimentos de
acesso restrito ao público.
Por isso,
com pertinência, questiona agora a IGAI:
“Quais os direitos constitucionalmente
protegidos cujo valor é tão mais elevado e intenso que se sobreponham,
justifiquem e comprimam direitos, liberdades e garantias dos cidadãos ao ponto
de os sujeitar à indignidade de uma revista pessoal intrusiva por palpação e à
vistoria dos bens que transporte na altura, simplesmente porque o cidadão se
encontra em alguns dos locais [recintos desportivos, aeroportos, portos] sem
que necessariamente recaia qualquer suspeita da prática de ato ilícito ou que
se prepare para o fazer?”.
Para o DN, o parecer da IGAI é arrasador para
a nova lei, que considera “pouco
ambiciosa”. E, as suas críticas são mais duras na análise da norma que
permite a “revista pessoal e intrusiva
por palpação e vistoria dos bens transportados por cidadãos” no acesso a
recintos desportivos, culturais, aeroportos e portos, por entender que a Proposta “não estabelece limites, apenas prevê e autoriza esta ação por parte dos
seguranças privados, pondo mesmo em causa os direitos constitucionais dos
cidadãos”.
O DN
sublinha que a IGAI é tão cáustica que não se inibe de dar uma lição de português ao Ministro da Administração Interna, apontando discordâncias
verbais entre orações, concluindo que o texto terá sido
redigido de forma “algo apressada e que
inclusive faltou oportunidade para a revisão final”.
Porém, neste aspeto, não sei se a
IGAI ou o DN têm razão, uma vez que a
redação final será a que resultar da aprovação parlamentar, onde há uma
comissão específica para a redação dos textos legislativos. Por outro lado,
nunca, jamais, em tempo algum é o Ministro que redige este tipo de textos e
este passou no Conselho de Ministros. Ademais, a IGAI teria muito que fazer se
pretendesse e se fosse a sua missão corrigir textos. Cada macaco no seu galho!
Mas a IGAI levanta uma outra questão
de semântica: o verbo “dever” foi substituído pelo verbo “poder”. E explica:
“Quando
se diz na lei atualmente em vigor ‘devendo, para o efeito, recorrer ao uso de
raquetes de deteção de metais e explosivos ou operar outros equipamentos de
revista não intrusivos’ substituindo-se ‘devendo’ por ‘podendo’ atenua-se o
caráter obrigatório que hoje resulta da lei”.
Ou seja, a forma verbal “podendo”,
segundo esta instância inspetiva:
“Não
impõe o dever de utilizar meios não intrusivos nas revistas pessoais, quanto
muito passa a possibilitar apenas a utilização de equipamentos não intrusivos,
o que abre a porta à contingência, critério e discricionariedade de quem
procede à revista, de decidir se utiliza, ou não, os meios não intrusivos”.
***
A IGAI critica ainda o facto da permissão
destas revistas a qualquer cidadão, independentemente de sobre
a pessoa recair qualquer suspeita da prática de ato ilícito ou
só por se encontrar num local classificado como recinto desportivo, porto ou
aeroporto. E a IGAI questiona:
“Quais
os direitos constitucionalmente protegidos cujo valor é tão mais elevado e
intenso que se sobreponham, justifiquem e comprimam direitos, liberdades e
garantias dos cidadãos ao ponto de os sujeitar à indignidade de uma revista
pessoal intrusiva por palpação e à vistoria dos bens que transporte na altura,
simplesmente porque o cidadão se encontra em alguns dos locais [recintos
desportivos, aeroportos, portos] sem que necessariamente recaia qualquer
suspeita da prática de ato ilícito ou que se prepare para o fazer?”.
Critica o facto de privados fazerem revistas
por apalpação sob a vigilância da polícia, frisando:
“Não
deixaria de ser irónico que agora a polícia tivesse de regressar a um domínio
de que esteve afastada e que tivesse de o fazer desviando agentes de funções
mais consentâneas com os domínios mais nobres da função policial para exercer
controlo sobre o trabalho realizado por pessoal de vigilância”.
E mais: diz não ser comparável este
controlo policial (estritamente
funcional) com o
controlo que é exercício sobre as medidas de polícia cujos atos policiais são objeto
de controlo judicial.
A IGAI, enquanto entende que a Proposta de lei de segurança privada
está “longe de conter uma disciplina rigorosa sobre o modo como deve ser
realizada a medida restritiva, não por polícia, mas por pessoal de vigilância”,
sustenta, em suma, que “a compressão” dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos deve
limitar-se ao necessário e na medida em que esteja em causa
proteger outros direitos ou interesses, mas sempre salvaguardando o princípio
da dignidade humana. Assim, as revistas por apalpação só devem ser permitidas,
quer através da lei quer através das autoridades competentes.
***
Devem, pois, os deputados atentar nas
críticas da IGAI e melhorar a Proposta
de modo que seja integralmente respeitado o exercício dos direitos constitucionalmente
protegidos. Porém, questiono-me se é a IGAI que deve, no quadro da sua missão,
velar pela constitucionalidade da lei e não apenas pelo seu cumprimento, bem
como pelo apuramento dos factos e dos responsáveis no caso de incumprimento,
com a respetiva sanção disciplinar e a participação ao Ministério Público no
caso de haver indícios de pratica de crime. E pergunto-me se da prevenção de ilícitos
criminais não será inimigo o excesso de garantismo ou a falta de vigilância,
até porque a simples suspeição não implica a intenção ou a prática de atos
ilícitos. Justificar-se-á ou não o incómodo do cidadão face ao bem da segurança?
É algo que apenas cabe ao Parlamento, enquanto órgão do poder legislativo, ponderar
e decidir, pois legislar em matéria limitativa dos direitos, liberdades e
garantias é competência da reserva relativa da Assembleia da República.
2018.10.22 – Louro de Carvalho
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