segunda-feira, 15 de outubro de 2018

No ato de posse da PGR, a mensagem de continuidade das prioridades


Como anunciado, decorreu a 12 de outubro, no Palácio de Belém, a cerimónia da tomada de posse de Lucília Gago como Procuradora-Geral da República, em sucessão de Joana Marques Vidal, que assim cessou funções. O ato foi presidido pelo Presidente da República com a presença do Primeiro-Ministro e da Ministra da Justiça.
Lucília Gago, de 62 anos, é a segunda magistrada da área da família e menores a dirigir o Ministério Público (MP), tendo sido, até agora, responsável pelo gabinete de coordenação dos magistrados do MP para a área da Família, da Criança e do Jovem, depois de ter sido diretora do Departamento de Investigação e Ação Penal de Lisboa (DIAP de Lisboa).
Marcelo Rebelo de Sousa, no seu discurso, aproveitou o ensejo para delinear então o retrato da justiça portuguesa, que pretende seja ultrapassado pela aceitação dos desafios que se colocam face à situação complexa que vive a justiça portuguesa.
Começando pela clarividente verificação de que, “em pouco mais de 40 anos de democracia, aumentou significativamente a importância da justiça na sociedade portuguesa”, o Presidente da República desenvolveu:
As causas conhecemo-las bem: decisões que passaram da administração pública para a justiça; sociedade mais aberta e com mais conflitos (mais complexos); ciência e técnica a mudarem a vida das pessoas, grupos e comunidade; criminalidade mais sofisticada, criminalidade mais imaginativa, perigosa e blindada”.
E, depois de traçar o retrato da justiça portuguesa, que teve de navegar em águas pouco serenas com as crises internacionais e internas, o Chefe de Estado deixou um claro aviso para quem considere que a sucessão de Joana Marques Vidal para Gago representa uma alteração na forma de operar, atirando:
Se alguém distraído, equivocado ou persuadido de que há um espaço para a impunidade pensa que a passagem de testemunho nesta instituição implica a alteração de valores e princípios, desengane-se. Assim como não há justiça que aceite ser usada em campanhas pessoais ou políticas, não há também campanhas pessoais ou políticas que paralisem, parem ou condicionem a justiça que deva ser feita.”.
O Presidente, dirigindo-se à nova Procuradora-Geral da República, frisou:
É tempo de lhe dizer do muito que Vossa Excelência se espera e do muito com que pode contar para enfrentar tal esperança”.
E, esboçando o perfil de Lucília Gago, a Procuradora-Geral da República, vincou:
Revelou relevantes qualidades pessoais e profissionais no decurso de uma longa e diversificada carreira no Ministério Público, também ela atenta à investigação criminal. E integrou a Procuradoria-Geral da República. Encontra-se, pois, em situação privilegiada para receber e projetar o futuro o marcante legado deixado pela sua antecessora.”.
Depois, apontou a corrupção como uma prioridade nacional, discorrendo:
A justiça, tal como o direito, não pode quedar-se impotente de acompanhar o vertiginoso da mudança social já vivida ou a viver no futuro. No domínio da justiça, uma prioridade nacional é o combate sem tréguas à corrupção. Um combate sem medos, hesitações ou ambiguidades. Um combate que a todos envolva e a todos chegue. Um combate que não permita a ilusão de que há cidadãos de primeira, segunda e terceira. Todos, mas todos, devem ser igualmente tratados.”.
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Por seu turno, Lucília Gago, no seu discurso de tomada de posse, elogiou a qualidade do trabalho do DCIAP e a importância da articulação do MP com os órgãos de polícia criminal. Disse saber que, a partir de agora, passará a ser “objeto de permanente escrutínio político”, exigindo, porém, que “não se formulem juízos ancorados em preconcebidas teorias da conspiração originadas em notícias falsas”. E deixou uma palavra à sua antecessora, Joana Marques Vidal, “pela forma como exerceu o seu mandato e, designadamente, pelos visíveis avanços alcançados no âmbito da perseguição criminal, em especial no domínio económico-financeiro”.
Em termos das opções, assumiu que uma das “grandes prioridades” do seu mandato será o combate à criminalidade económico-financeira, propondo-se um “particular enfoque na corrupção, que se tornou um dos maiores flagelos susceptíveis de abalar os alicerces do Estado”.
Elogiando os níveis de “exigência e qualidade do trabalho desenvolvido pelo DCIAP”, dando como exemplo a Operação Marquês, a nova Procuradora-Geral da República reiterou a confiança no diretor do departamento, o Procurador-Geral adjunto Amadeu Guerra (nome que tem sido falado para número dois da PGR, o que significaria a continuação, de facto, das apostas de Joana Marques Vidal), e garantiu que o MP “acompanhará zelosamente a tramitação” do processo na fase de instrução, dirigida por um juiz.
E Lucília Gago salientou a “posição de relevo” da Polícia Judiciária (PJ), pelo “seu papel no combate à criminalidade complexa e altamente organizada”, reforçando a importância da “continuação de uma cooperação sã e leal em todos os domínios”.
Ao longo do seu discurso, Lucília Gago falou na necessidade de dotação de “imprescindíveis meios humanos e técnicos” (nomeadamente no âmbito do combate aos crimes económico-financeiros), até porque – disse – “é desse reforço que depende a própria celeridade processual, “condição de uma justiça pronta e eficaz” e “exigência da cidadania”. E, de entre esses meios, destacou o nível das perícias informáticas e contabilísticas-financeiras e o incremento da capacidade de resposta das entidades especializadas, entre as quais a PJ.
Foi igualmente abordado no discurso o fenómeno da cibercriminalidade, tendo Lucília Gago apelado a uma mais estreita articulação do MP com a Unidade Nacional de Combate ao cibercrime e criminalidade tecnológica da PJ.
Também a promoção dos direitos e a proteção das crianças e dos jovens – um desiderato fulcral da atividade do Ministério Público” – e a atenção ao “fenómeno alarmante da violência doméstica” foram alguns dos pontos mencionados como relevantes na atividade do MP.
E, reconhecendo que o perfil do Procurador-Geral da República (PGR) suscita uma enorme expectativa na sociedade, que, “não raras vezes, o encara como único responsável pelos sucessos e insucessos do Ministério Público e mesmo da própria Justiça”, sustentou que o mérito do PGR “não lhe deve ser exclusivamente imputado”, mas antes “a todos os órgãos e agentes do Ministério Público, cuja prestação tecnicamente irrepreensível concertada e leal é decisiva para levar a bom porto as atribuições que incumbem a esta magistratura”.
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No entanto, Lucília Gago herda vários casos mediáticos: o que envolve o ex-Primeiro-Ministro José Sócrates, o ex-banqueiro Ricardo Salgado (caso BES), o Benfica (e-Toupeira), o ex-Ministro Miguel Macedo (Vistos Gold), juízes (operação Lex) e os fogos de Pedrógão Grande.
Encontra também um Ministério Público com falta de recursos humanos. Dos 1592 magistrados, só 1465 estão em efetividade de funções e há muitos magistrados em idade de aposentação.
Na sua agenda estará obviamente também o Estatuto dos Magistrados do Ministério Público, que não foi atualizado ao mesmo tempo que a Lei da Organização do Sistema Judiciário.
Na mensagem que fez publicar na página web do MP, refere “o maior orgulho em encabeçar este projeto comum que é o Ministério Público, reiterando a convicção de que, para levar a bom porto as atribuições que incumbem a esta magistratura”, sendo “imprescindível a colaboração de todos os seus órgãos e agentes, mediante uma prestação tecnicamente irrepreensível, concertada e leal”. E porfiao respeito pelos grandes princípios que têm norteado esta magistratura, em especial o da autonomia, basilar num Estado de Direito Democrático e, em geral, todos os valores humanos, mormente os da Justiça, suportados no interesse da comunidade”. Com efeito, como sublinha, a construção do MP “como obra coletiva, assente em todo o património que foi sucessivamente construído no passado e, em particular, desde a implantação do regime democrático, pressupõe trabalho exigente, dedicação e dignidade, deixando expresso o compromisso de total empenho e transparência”.
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Não podem, entretanto, omitir-se as declarações da antecessora de Lucília Gago vertidas em entrevista à SIC e ao Expresso por ocasião do ato de posse da nova alta coordenadora do MP.
Marques Vidal diz concordar pessoalmente com o mandato único para o Procurador-Geral da República, embora mais longo (por forma a dar "maior liberdade de exercício ao PGR), mas não tem dúvidas de que a Constituição e a Lei não impediam a recondução, afirmando expressamente que a Constituição prevê a possibilidade de renovação do mandato. E dizem alguns observadores que a mulher que deixou, na passada sexta-feira, “a chefia do Ministério Público deita assim por terra argumentos formais utilizados pelo Governo e Presidente da República para a sua substituição”. Porém, lendo os instrumentos publicados que dão nota da proposta e da nomeação, verifica-se que nenhuma das entidades implicadas e acima mencionadas se escudou na Constituição ou na Lei para a não recondução da PGR.
Assim, o Presidente da República estriba-se na sua convicção pessoal ao referir:
      “Sempre defendeu a limitação de mandatos, em homenagem à vitalidade da Democracia, à afirmação da credibilidade das Instituições e à renovação de pessoas e estilos, ao serviço dos mesmos valores e princípios”.
E o Primeiro-Ministro apenas cita a Constituição para se apoiar na tramitação, mas, quanto à não renovação do mandato, justifica-se com o entendimento que o Governo faz da matéria, no que temos de convir que tem legitimidade, embora tenha gerido o processo político de forma equivoca. Assim, no atinente à proposta, António Costa, depois dum arrazoado preambular sobre a autónoma do MP ao longo dos últimos 40 anos, escreve:
Precisamente por isso, entendemos que, a benefício da autonomia do Ministério Público, o mandato do Procurador-Geral da República deve ser longo e único. Apenas deste modo pode ser exercido com plena liberdade relativamente a quem propõe, a quem nomeia e a quem possa influenciar a opinião de quem propõe ou nomeie”.
Depois, acomoda-se, não na Constituição ou na Lei, mas no entendimento expresso habitualmente por vários magistrados ou estruturas sindicais, na esteira da Comissão Europeia para a Democracia através do Direito, órgão consultivo do Conselho da Europa, que, em recomendação adotada em dezembro de 2010 sobre a independência do poder judicial, aponta para um mandato longo e único para o cargo de Procurador-Geral da República, como forma de reforçar a autonomia do Ministério Público evitando o condicionamento eterno do exercício do cargo”.
E ainda invoca a vantagem de a escolha recair numa personalidade do MP “com o estatuto de Procurador-Geral Adjunto e com experiência nas áreas de ação do MP, em particular a ação penal”.
Assim, Presidente da República e Governo não infringiram a norma nem a invocaram. Com efeito, a CRP tanto não proíbe expressamente a recondução do PGR como não impõe, recomenda ou permite explicitamente, como alguns o quiseram fazer crer. A possibilidade é dedutível apenas da interpretação restritiva que deve ser feita ao tratar-se de uma eventual limitação.  
Na aludida entrevista, Joana Marques Vidal fez, de modo informal, um balanço do seu mandato, a que aliás já tinha procedido e, confessando ter feito o “máximo que conseguia fazer” no cargo, revelou ter sabido que “não iria haver renovação” do mandato, em reunião com o Primeiro-Ministro e a Ministra da Justiça duas horas antes de ter sido anunciado o nome de Lucília Gago para lhe suceder. E o nome da sucessora foi-lhe comunicado por Francisca Van Dunem, uma hora antes do anúncio oficial de que a escolha recaía em Lucília Gago.
Marques Vidal, de 62 anos, referiu que vai de férias para compensar o descanso que “não teve” no cargo e, quando regressar – disse – “há vários lugares no Ministério Público que são próprios para uma procuradora-geral adjunta, provavelmente junto de um dos supremos tribunais. E garantiu que saía “em mágoa nenhuma” do cargo que exerceu durante seis anos, assegurando que o relacionamento institucional com o Presidente da República e com o primeiro-ministro “foi sempre saudável e cordial”. Frisou que o poder e os elogios são muito efémeros, dizendo crer que alguns elogios foram sinceros, mas outros não.
Afirmou já ter reunido com Lucília Gago para falarem dos dossiês e da dinâmica e atividade da Procuradoria, alegando não ser possível prever qual será o maior desafio da sucessora. Declarou que “isso é imprevisível”, pois “todos os dias somos surpreendidos”. Contudo, sublinhou que o MP tem um “passo muito importante” a dar, o da aprovação do seu estatuto, porque se trata dum “diploma estruturante do MP”.
Marques Vidal, cujo mandato ficou marcado por inquéritos como a Operação Marquês, caso Fizz e processo do BES, entre outros, admitiu que “amanhã podem aparecer casos ainda maiores”. E falou do esforço do MP no combate à violência doméstica, lamentando que este ainda não esteja devidamente organizado e eficaz nos tribunais administrativos, que têm competências importantes na defesa de interesses relevantes para os cidadãos.
É ainda de anotar que, na entrevista, explicou o modo como anuiu à saga dos processos, pedindo a certeza dos indícios, autorizando justificadamente a prorrogação de prazos ou pressionando a conclusão de processos que se arrastavam no tempo, insistindo na formação e promovendo ações de fiscalização, mas sempre dando a cara pela probidade do trabalho do MP, inclusive na justeza da acusação deduzida no caso da Operação Marquês, embora a porfiar, como fazem outros, não querer falar de processos em concreto.
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Enfim, não se pode negar a quantidade e a validade do trabalho do MP sob a batuta de Marques Vidal, mas também não se pode deduzir a sua, por muitos, quase alegada insubstituibilidade, pois, como ela própria reconhece, todos os dias somos surpreendidos pelos factos e o trabalho do MP é coletivo. Além disso, ela própria reconhece falhas.
Por outro lado, se os discursos do Presidente da nova PGR são óbvios no atinente à continuação do combate à corrupção e à criminalidade organizada, não se vê como Lucília Gago não poderia assegurar um exercício eficaz no cargo, a menos que a sua competência primasse pela fatuidade ou os operadores da PJ e/ou os do MP resolvessem baixar os braços – não é seguramente o caso. Aliás, seria bom que não houvesse necessidade de trabalho desta ordem. Seria lindo o país em que nos é dado viver!
2018.10.15 – Louro de Carvalho

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