Como anunciado, decorreu a 12 de outubro, no Palácio de Belém, a cerimónia
da tomada de posse de Lucília Gago como Procuradora-Geral da República, em
sucessão de Joana Marques Vidal, que assim cessou funções. O ato foi presidido
pelo Presidente da República com a presença do Primeiro-Ministro e da Ministra
da Justiça.
Lucília
Gago, de 62 anos, é a segunda magistrada da área da família e menores a dirigir
o Ministério Público (MP), tendo sido, até agora, responsável
pelo gabinete de coordenação dos magistrados do MP para a área da Família, da
Criança e do Jovem, depois de ter sido diretora do Departamento de Investigação
e Ação Penal de Lisboa (DIAP
de Lisboa).
Marcelo Rebelo de Sousa, no seu discurso, aproveitou o ensejo para delinear
então o retrato da justiça portuguesa, que pretende seja ultrapassado pela
aceitação dos desafios que se colocam face à situação complexa que vive a
justiça portuguesa.
Começando pela clarividente verificação de que, “em pouco mais de 40 anos
de democracia, aumentou significativamente a importância da justiça na
sociedade portuguesa”, o Presidente da República desenvolveu:
“As causas conhecemo-las bem: decisões que
passaram da administração pública para a justiça; sociedade mais aberta e com
mais conflitos (mais complexos); ciência e técnica a mudarem a vida das pessoas,
grupos e comunidade; criminalidade mais sofisticada, criminalidade mais
imaginativa, perigosa e blindada”.
E, depois de traçar o retrato da justiça portuguesa, que teve de navegar em
águas pouco serenas com as crises internacionais e internas, o Chefe de Estado deixou
um claro aviso para quem considere que a sucessão de Joana Marques Vidal para
Gago representa uma alteração na forma de operar, atirando:
“Se alguém distraído, equivocado ou
persuadido de que há um espaço para a impunidade pensa que a passagem de
testemunho nesta instituição implica a alteração de valores e princípios,
desengane-se. Assim como não há justiça que aceite ser usada em campanhas
pessoais ou políticas, não há também campanhas pessoais ou políticas que
paralisem, parem ou condicionem a justiça que deva ser feita.”.
O Presidente, dirigindo-se à nova Procuradora-Geral da República, frisou:
“É tempo de lhe dizer
do muito que Vossa Excelência se espera e do muito com que pode contar para
enfrentar tal esperança”.
E, esboçando o perfil de Lucília Gago, a Procuradora-Geral da República,
vincou:
“Revelou relevantes qualidades pessoais e
profissionais no decurso de uma longa e diversificada carreira no Ministério
Público, também ela atenta à investigação criminal. E integrou a Procuradoria-Geral
da República. Encontra-se, pois, em situação privilegiada para receber e
projetar o futuro o marcante legado deixado pela sua antecessora.”.
Depois, apontou a corrupção como uma prioridade nacional, discorrendo:
“A justiça, tal como o direito, não pode
quedar-se impotente de acompanhar o vertiginoso da mudança social já vivida ou
a viver no futuro. No domínio da justiça, uma prioridade nacional é o combate
sem tréguas à corrupção. Um combate sem medos, hesitações ou ambiguidades. Um
combate que a todos envolva e a todos chegue. Um combate que não permita a
ilusão de que há cidadãos de primeira, segunda e terceira. Todos, mas todos, devem
ser igualmente tratados.”.
***
Por seu turno, Lucília Gago, no seu discurso de tomada de posse, elogiou a
qualidade do trabalho do DCIAP e a importância da articulação do MP com os
órgãos de polícia criminal. Disse saber que, a partir de agora, passará a ser “objeto de permanente escrutínio político”,
exigindo, porém, que “não se formulem
juízos ancorados em preconcebidas teorias da conspiração originadas em notícias
falsas”. E deixou uma palavra à sua antecessora, Joana Marques Vidal, “pela forma como exerceu o seu mandato e,
designadamente, pelos visíveis avanços alcançados no âmbito da perseguição
criminal, em especial no domínio económico-financeiro”.
Em termos das opções, assumiu que uma das “grandes prioridades” do seu
mandato será o combate à criminalidade económico-financeira, propondo-se um “particular
enfoque na corrupção, que se tornou um dos maiores flagelos susceptíveis de
abalar os alicerces do Estado”.
Elogiando
os níveis de “exigência e qualidade do trabalho desenvolvido pelo DCIAP”, dando
como exemplo a Operação Marquês, a nova Procuradora-Geral da República reiterou
a confiança no diretor do departamento, o
Procurador-Geral adjunto Amadeu Guerra (nome que tem sido falado para
número dois da PGR, o que significaria a continuação, de facto, das apostas de
Joana Marques Vidal), e
garantiu que o MP “acompanhará zelosamente a tramitação” do processo na fase de
instrução, dirigida por um juiz.
E Lucília Gago salientou a “posição de relevo” da Polícia Judiciária (PJ), pelo “seu
papel no combate à criminalidade complexa e altamente organizada”,
reforçando a importância da “continuação
de uma cooperação sã e leal em todos os domínios”.
Ao longo do seu discurso, Lucília Gago falou na necessidade de dotação de
“imprescindíveis meios humanos e técnicos” (nomeadamente no âmbito do combate aos crimes
económico-financeiros), até
porque – disse – “é desse reforço que
depende a própria celeridade processual, “condição de uma justiça pronta e eficaz” e “exigência da cidadania”. E, de entre esses meios, destacou o nível das perícias informáticas
e contabilísticas-financeiras e o incremento da capacidade de resposta das
entidades especializadas, entre as quais a PJ.
Foi igualmente abordado no discurso o fenómeno da
cibercriminalidade, tendo Lucília Gago apelado a uma mais estreita articulação
do MP com a Unidade Nacional de Combate ao cibercrime e criminalidade tecnológica da PJ.
Também a promoção dos direitos e a proteção das crianças e dos jovens – “um desiderato fulcral da atividade do Ministério Público” – e a atenção ao “fenómeno
alarmante da violência doméstica” foram alguns dos pontos mencionados como
relevantes na atividade do MP.
E, reconhecendo que o perfil do Procurador-Geral da República (PGR) suscita uma enorme expectativa na sociedade, que, “não
raras vezes, o encara como único responsável pelos sucessos e insucessos do
Ministério Público e mesmo da própria Justiça”, sustentou que o mérito do PGR
“não lhe deve ser exclusivamente imputado”, mas antes “a todos os órgãos e
agentes do Ministério Público, cuja
prestação tecnicamente irrepreensível concertada e leal é decisiva para levar a
bom porto as atribuições que incumbem a esta magistratura”.
***
No entanto, Lucília
Gago herda vários casos mediáticos: o que envolve o ex-Primeiro-Ministro José
Sócrates, o ex-banqueiro Ricardo Salgado (caso BES), o Benfica (e-Toupeira), o ex-Ministro
Miguel Macedo (Vistos Gold), juízes (operação Lex) e os fogos de
Pedrógão Grande.
Encontra também
um Ministério Público com falta de recursos humanos. Dos 1592 magistrados, só
1465 estão em efetividade de funções e há muitos magistrados em idade de
aposentação.
Na sua agenda
estará obviamente também o Estatuto dos Magistrados do Ministério Público, que
não foi atualizado ao mesmo tempo que a Lei da Organização do Sistema
Judiciário.
Na mensagem que
fez publicar na página web do MP,
refere “o maior orgulho em encabeçar este projeto comum que é
o Ministério Público, reiterando a convicção de que, para levar a bom porto as
atribuições que incumbem a esta magistratura”, sendo “imprescindível
a colaboração de todos os seus órgãos e agentes, mediante uma prestação
tecnicamente irrepreensível, concertada e leal”. E porfia “o respeito
pelos grandes princípios que têm norteado esta magistratura, em especial o da
autonomia, basilar num Estado de Direito Democrático e, em geral, todos os
valores humanos, mormente os da Justiça, suportados no interesse da comunidade”.
Com efeito, como sublinha, a construção do MP “como obra coletiva, assente em todo o património que foi sucessivamente
construído no passado e, em particular, desde a implantação do regime
democrático, pressupõe trabalho exigente, dedicação e dignidade, deixando
expresso o compromisso de total empenho e transparência”.
***
Não
podem, entretanto, omitir-se as declarações da antecessora de Lucília Gago
vertidas em entrevista à SIC e ao Expresso por ocasião do ato de posse da nova
alta coordenadora do MP.
Marques Vidal diz concordar pessoalmente com o mandato único para o Procurador-Geral da República, embora mais longo (por forma a dar "maior liberdade de exercício ao PGR), mas não tem dúvidas de que a Constituição e a Lei não impediam a recondução, afirmando expressamente que a Constituição prevê a possibilidade de renovação do mandato. E dizem alguns observadores que a mulher que deixou, na passada sexta-feira, “a chefia do Ministério Público deita assim por terra argumentos formais utilizados pelo Governo e Presidente da República para a sua substituição”. Porém, lendo os instrumentos publicados que dão nota da proposta e da nomeação, verifica-se que nenhuma das entidades implicadas e acima mencionadas se escudou na Constituição ou na Lei para a não recondução da PGR.
Assim, o Presidente da República estriba-se na sua convicção pessoal ao referir:
“… Sempre defendeu a limitação de mandatos, em homenagem à vitalidade da Democracia, à afirmação da credibilidade das Instituições e à renovação de pessoas e estilos, ao serviço dos mesmos valores e princípios”.
E o Primeiro-Ministro apenas cita a Constituição para se apoiar na tramitação, mas, quanto à não renovação do mandato, justifica-se com o entendimento que o Governo faz da matéria, no que temos de convir que tem legitimidade, embora tenha gerido o processo político de forma equivoca. Assim, no atinente à proposta, António Costa, depois dum arrazoado preambular sobre a autónoma do MP ao longo dos últimos 40 anos, escreve:
Marques Vidal diz concordar pessoalmente com o mandato único para o Procurador-Geral da República, embora mais longo (por forma a dar "maior liberdade de exercício ao PGR), mas não tem dúvidas de que a Constituição e a Lei não impediam a recondução, afirmando expressamente que a Constituição prevê a possibilidade de renovação do mandato. E dizem alguns observadores que a mulher que deixou, na passada sexta-feira, “a chefia do Ministério Público deita assim por terra argumentos formais utilizados pelo Governo e Presidente da República para a sua substituição”. Porém, lendo os instrumentos publicados que dão nota da proposta e da nomeação, verifica-se que nenhuma das entidades implicadas e acima mencionadas se escudou na Constituição ou na Lei para a não recondução da PGR.
Assim, o Presidente da República estriba-se na sua convicção pessoal ao referir:
“… Sempre defendeu a limitação de mandatos, em homenagem à vitalidade da Democracia, à afirmação da credibilidade das Instituições e à renovação de pessoas e estilos, ao serviço dos mesmos valores e princípios”.
E o Primeiro-Ministro apenas cita a Constituição para se apoiar na tramitação, mas, quanto à não renovação do mandato, justifica-se com o entendimento que o Governo faz da matéria, no que temos de convir que tem legitimidade, embora tenha gerido o processo político de forma equivoca. Assim, no atinente à proposta, António Costa, depois dum arrazoado preambular sobre a autónoma do MP ao longo dos últimos 40 anos, escreve:
“Precisamente
por isso, entendemos que, a benefício da autonomia do Ministério Público, o mandato
do Procurador-Geral da
República deve ser longo e único. Apenas deste modo pode ser exercido com plena
liberdade relativamente a quem propõe, a quem nomeia e a quem possa influenciar
a opinião de quem propõe ou nomeie”.
Depois, acomoda-se, não na Constituição
ou na Lei, mas no entendimento expresso
habitualmente por vários magistrados ou estruturas sindicais, na esteira da
Comissão Europeia para a Democracia através do Direito, órgão consultivo do
Conselho da Europa, que, em recomendação adotada em dezembro de 2010 sobre a
independência do poder judicial, aponta para um mandato longo e único para o
cargo de Procurador-Geral da República, como
forma de reforçar a autonomia do Ministério
Público evitando o condicionamento eterno do
exercício do cargo”.
E ainda invoca a vantagem de a escolha
recair numa personalidade do MP “com o estatuto de Procurador-Geral Adjunto e
com experiência nas áreas de ação do MP, em particular a ação penal”.
Assim, Presidente da República e Governo
não infringiram a norma nem a invocaram. Com efeito, a CRP tanto não proíbe
expressamente a recondução do PGR como não impõe, recomenda ou permite
explicitamente, como alguns o quiseram fazer crer. A possibilidade é dedutível apenas
da interpretação restritiva que deve ser feita ao tratar-se de uma eventual
limitação.
Na aludida entrevista, Joana Marques
Vidal fez, de modo informal, um balanço do seu mandato, a que aliás já tinha
procedido e, confessando ter feito o “máximo que conseguia fazer” no cargo, revelou
ter sabido que “não iria haver renovação”
do mandato, em reunião com o Primeiro-Ministro e a Ministra da Justiça duas
horas antes de ter sido anunciado o nome de Lucília Gago para lhe suceder. E o
nome da sucessora foi-lhe comunicado por Francisca Van Dunem, uma hora antes do
anúncio oficial de que a escolha recaía em Lucília Gago.
Marques Vidal, de 62 anos, referiu que
vai de férias para compensar o descanso que “não teve” no cargo e, quando
regressar – disse – “há vários lugares no Ministério Público que são próprios
para uma procuradora-geral adjunta, provavelmente junto de um dos supremos
tribunais. E garantiu que saía “em mágoa
nenhuma” do cargo que exerceu durante seis anos, assegurando que o
relacionamento institucional com o Presidente da República e com o
primeiro-ministro “foi sempre saudável e
cordial”. Frisou que o poder e os elogios são muito efémeros, dizendo crer
que alguns elogios foram sinceros, mas outros não.
Afirmou já ter reunido com Lucília Gago
para falarem dos dossiês e da dinâmica e atividade da Procuradoria, alegando
não ser possível prever qual será o maior desafio da sucessora. Declarou que
“isso é imprevisível”, pois “todos os dias somos surpreendidos”. Contudo, sublinhou
que o MP tem um “passo muito importante” a dar, o da aprovação do seu estatuto,
porque se trata dum “diploma estruturante do MP”.
Marques Vidal, cujo mandato ficou
marcado por inquéritos como a Operação Marquês, caso Fizz e processo do BES,
entre outros, admitiu que “amanhã podem
aparecer casos ainda maiores”. E falou do esforço do MP no combate à
violência doméstica, lamentando que este ainda não esteja devidamente
organizado e eficaz nos tribunais administrativos, que têm competências
importantes na defesa de interesses relevantes para os cidadãos.
É ainda de anotar que, na entrevista,
explicou o modo como anuiu à saga dos processos, pedindo a certeza dos
indícios, autorizando justificadamente a prorrogação de prazos ou pressionando
a conclusão de processos que se arrastavam no tempo, insistindo na formação e promovendo
ações de fiscalização, mas sempre dando a cara pela probidade do trabalho do MP,
inclusive na justeza da acusação deduzida no caso da Operação Marquês, embora a
porfiar, como fazem outros, não querer falar de processos em concreto.
***
Enfim, não se pode negar a quantidade e
a validade do trabalho do MP sob a batuta de Marques Vidal, mas também não se
pode deduzir a sua, por muitos, quase alegada insubstituibilidade, pois, como
ela própria reconhece, todos os dias somos surpreendidos pelos factos e o
trabalho do MP é coletivo. Além disso, ela própria reconhece falhas.
Por outro lado, se os discursos do
Presidente da nova PGR são óbvios no atinente à continuação do combate à
corrupção e à criminalidade organizada, não se vê como Lucília Gago não poderia
assegurar um exercício eficaz no cargo, a menos que a sua competência primasse
pela fatuidade ou os operadores da PJ e/ou os do MP resolvessem baixar os
braços – não é seguramente o caso. Aliás, seria bom que não houvesse
necessidade de trabalho desta ordem. Seria lindo o país em que nos é dado
viver!
2018.10.15 – Louro de Carvalho
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