A opinião de Daniel Cardoso no programa
“Prós e Contras” da RTP, no passado
dia 15 – que discutiu o #Metoo – gerou
uma série de críticas nas redes sociais que se constituíram numa espiral de
acusações e ódio. Hoje, dia 18, em entrevista ao DN, o professor justifica-se.
Daniel Cardoso, além de ativista da
diversidade sexual e de género, é doutorado em ciências da comunicação e
professor universitário, com mais de 30 publicações científicas, muitas delas
relacionadas com a sexualidade, de que se destacam os recentes artigos
científicos, um sobre o papel social da criança e outro sobre ativismo on line.
As frases em causa, na discussão sobre
o consentimento sexual, foram estas:
“É
preciso falar de educação de forma concreta. A educação é quando a avozinha ou
o avozinho vai lá a casa e a criança é obrigada a dar o beijinho à avozinha ou
ao avozinho. Isto é educação, estamos a educar para a violência sobre o corpo
do outro e da outra desde crianças. Obrigar alguém a ter um gesto físico de
intimidade com outra pessoa como obrigação coerciva é uma pequena pedagogia que
depois cresce.”.
***
Por mais polémica que seja em termos sociais e familiares, a tese exposta é consensual nos meios científicos e defendida mesmo por
instituições tão conservadoras como, por exemplo, os escuteiros
norte-americanos. E o professor, enfatizando que a sua opinião é muito comum,
atira:
“Qualquer
pessoa que vá comprar um livro sobre parentalidade positiva a uma grande
superfície vai encontrar indicações sobre não impor as coisas às crianças. Isto
está já ao nível do senso comum, nos manuais de como ser um bom pai ou uma boa
mãe…”.
Segundo ele, a dimensão do escândalo resulta do facto de ter usado “o exemplo do avô e da avó”, o que diz não ter feito por acaso, explanando:
“Usei
aquelas figuras a quem no nosso imaginário atribuímos (pelo respeito, pela
idade) uma série de poderes e direitos. É uma tradição muito arreigada, de tal
forma que já perdi a conta às vezes que vi uma mãe dizer ‘se não dás um
beijinho à avó, vais ver o que te acontece’ ou ‘dá um beijinho ao avô e ganhas
o brinquedo’. É contra este tipo de fenómeno que eu estou a falar e isto
perturba as pessoas, porque mexe com a sensação de pureza e da naturalidade das
relações familiares.”.
No seu entender, a criança não é encarada como “um sujeito com direitos e deveres”, mas
como “um objeto a ser administrado por
interesses superiores”, servindo de pretexto para as pessoas exercerem “a tirania dos pequenos poderes”. Com
efeito, por a criança precisar de “proteção
acrescida e de competências que ainda não adquiriu”, utiliza-se esse dever
parental para impor obrigações ultrapassam o “cumprimento desses direitos e
desses deveres” da boa educação.
Negando ter querido “sugerir a falta
de educação”, encarece “a questão do
respeito” como “uma condição mínima
fundamental das interações humanas”. E discorre:
“Se
ensinarmos às crianças que não se respeita um ‘não’ e – atenção a isto – que,
pela utilização da violência ou da coerção, ultrapassamos este ‘não’, estamos a
dar um exemplo. E é um exemplo que elas vão levar ao longo da vida toda. E esse
exemplo diz que, se tiveres poder suficiente, podes passar por cima do não do
outro.”.
Não está obviamente em causa a boa educação,
mas os termos do exercício do poder parental visto “como um último reduto de relações verticais de poder naturalizadas”,
o que é, desde há décadas, questionado na pedagogia e nas ciências da educação.
O hábito do
incentivo forçado ao beijinho aos avós (ou a outras venerandas personalidades,
acrescento eu) é uma tradição muito arreigada, sendo a obrigação não apenas física,
mas concretizada em ameaça de algo de mal ou promessa um bem, como: “se não dás um beijinho à avó, vais ver o que
te acontece” ou “dá um beijinho ao avô e ganhas o brinquedo”. Ora, o
investigador está “contra este tipo de fenómeno”, que “perturba as pessoas”,
por mexer “com a sensação de pureza e da naturalidade das relações familiares”.
É que é importante para o desenvolvimento saudável da criança a
sensibilização para os afetos e socialização, mas não pode valer tudo.
***
No referido programa, assumiu que há, no
sistema judicial “um movimento deliberado de desvalorização dos processos de
violação” – sistemático, não pontual. Na verdade, verificando que “fazer
a prova material duma violação é particularmente difícil”, diz que se usam “os mais variados argumentos para ‘plausivelmente’
levantar dúvidas”; depois, temos “uma
justiça lenta”, o que leva a que cheguem poucos casos destes a tribunal, a
que se junta o facto de “alguns dos que chegam” resultarem “em acórdãos
chocantes para a vítima”.
Admitindo que o #Metoo não será
apenas o produto de mau sistema judicial, assegura que “seria menos provável” num
mundo “com um sistema judicial célere e justo”.
Refere que alguns dos argumentos escutados nestas discussões e espelhados nalgumas decisões
judiciais recentes se baseiam na desvalorização do consentimento, o que se explica com a falta duma “literacia sobre o que é o consentimento” e dum “entendimento nem práticas
arreigadas sobre como dar e procurar consentimento”. E, entendendo que “a escola e o sistema educativo podem e devem fazer isso”, aduz que “tudo isto tem de começar na família”. E
adverte:
“Mas,
se os pais não têm esta sensibilização, então não vão transmitir estes
princípios aos filhos. A solução seguinte será que, com muito trabalho em ações
de sensibilização e na escola, este tipo de coisas comece a ser democratizado. Mas
há aqui um problema. As pessoas tratam o consentimento sexual como algo
diferenciado de tudo o resto e isso está errado.”.
E, sobre a índole do consentimento e
da necessidade da educação para ele, discorre:
“O
consentimento não é um ato, é um processo e uma dinâmica que é transversal a
todas as interações interpessoais na nossa vida. Não há uma consciência clara
disto. Como no sexo a questão é mais evidente, fala-se nisso. Mas o consentimento
precisa de ser visto como uma ‘soft-skill’ que tenho de usar em toda a minha
vida. Nós precisamos de uma educação sobre o consentimento muito mais alargada.”.
Confessando ter dificuldade “em colocar a responsabilidade nos movimentos contraculturais” (por não haver no movimento contracultural nada que
obrigue a cultura vigente a ser tão agressiva), assegura que “a
resposta da cultura vigente não depende nem pode depender da culpabilização dos
movimentos sociais”.
Sobre a alegada sua desvalorização das
redes sociais naquele programa televisivo por serem apenas o reflexo da sociedade,
referiu que, às vezes ouve na ART discursos com palavras mais caras, “mas em que o nível não é assim tão mais elevado do que o das redes
sociais” e anotou que, “muitas vezes,
vemos no Parlamento chalaças e trocadilhos que visam deitar abaixo o outro”.
Todavia, admite que “nas discussões nas
redes sociais é muito fácil descer ao ódio e ao discurso desumanizante”. E
diz que a questão da discussão nas redes sociais remete para a Hannah Arendt e
a sua Banalidade do Mal, livro que
reflete sobre a forma como a população alemã aceitou o discurso e aderiu a ele e
ao sistema de ódio propagado pelo nazismo, sendo que então “não havia redes sociais”. Por isso,
diz-se “contra estas visões tecnodeterministas
que veem na tecnologia a responsabilidade ou a solução seja do que for”. E
contrapõe:
“Nós
temos dinâmicas sociais que importamos para a tecnologia, que são moduladas por
ela, mas não nascem com ela. A banalidade do mal não está nas redes sociais,
está nas pessoas. Mas há um interesse direto destas empresas
tecnológicas na criação de emoções, porque há um ganho financeiro relevante na
mobilização das pessoas e no engajamento em discussões. Devo lembrar
que há empresas hoje respeitáveis que lucraram muito com a banalidade do
nazismo, portanto as coisas não são assim tão diferentes.”.
Relevando o discurso de ódio, em que
são usados os próprios estereótipos nós criticamos, sendo que muitos ataques
atingem o aspeto físico, o ativismo sexual, a carreira profissional, alerta:
“Se
a dinâmica do insulto pretende que o outro se sinta inferiorizado e nós usamos
para o inferiorizar as formas que essa pessoa tem para se empoderar, então é um
bocado inútil – é como querer matar alguém à fome dando-lhe um belo repasto”.
***
Acedendo a que não é a primeira vez
que se evidencia “nesta questão da
exposição pública nem na defesa de ideias que fogem de alguma forma à norma”,
não estranha que os ataques tenham ganho esta dimensão. E explica:
“Uma
parte de mim não sabe, porque eu já disse coisas potencialmente bem mais
chocantes... Mas volto à minha primeira resposta: isto mexe com valores muito
centrais para as pessoas, que são os valores do respeito pelos mais velhos e
pela família tradicional – que, se as pessoas pararem para ouvir, percebem que
são valores que eu nem sequer ataquei. Não ataquei nem o papel da família
tradicional nem a importância da boa educação.”.
Supôs estar “numa conversa com
pessoas informadas”, mas verificou:
“Essas
pessoas não sabem que mais de metade dos abusos sexuais de crianças se dá com
familiares ou com pessoas próximas da família. Por isso, quando criamos espaços
em que não há regras, estamos a criar espaço para os abusos. Já não sei a
quantidade de pessoas que vieram ter comigo desde o programa a contar que foram
obrigadas a dar o beijinho à pessoa que antes ou depois as molestou
sexualmente.”.
Ao facto de alguns meios de
comunicação o usarem para criar conteúdos com informação descontextualizada – o
que inspirará alguma reflexão sobre o estado do jornalismo, reage:
“Se
isto não é a definição de mau jornalismo de cópia, não sei o que é, até porque
erraram em coisas básicas como a minha idade. Em segundo lugar, eu não fui
contactado por nenhum órgão de comunicação antes da publicação daquelas peças,
só um deles me contactou depois para fazer outra peça.”.
E acrescenta:
“Diria
que a guerra dos cliques se junta à guerra da velocidade e ao jornalismo fácil
e irresponsável que não cumpre sequer os requisitos mínimos. É uma violação
básica da deontologia jornalística – o que é especialmente interessante tendo
em conta que neste semestre leciono direito da comunicação.”.
***
Por seu turno, a Notícias Magazine on
line, de hoje, 18 de outubro, publicou uma reportagem sob o título “As crianças têm direito a não dar beijinhos”,
de que se respigam alguns aspetos.
Ter filhos
pequenos dá para testemunhar que “frequentemente familiares, amigos e
conhecidos querem beijinhos dos miúdos quando os encontram” e que,
frequentemente, eles recusam.
Há, neste
aspeto, diferenças de personalidade, socialização e atitude perante manifestações
de afeto. Assim, enquanto um “escondia a
cabeça no meio das pernas dos pais quando era mais novo, continua tímido e
envergonhado e não dá beijos nem abraços a ninguém”, outro, com 5 anos, “ainda ninguém lhe pediu nada e já ele se
está a esticar para dar beijos e abraços” (cumprimenta e despede-se de toda a
gente, mesmo que seja ao entrar e sair dum elevador cheio de desconhecidos no
centro comercial) e outro tem
dias: ora expansivo e beijoqueiro, ora relutante.
Ora, é de explicar
que dar beijos não é obrigatório, mas ser bem-educado o é. Respeitam-se os
momentos e a personalidade de cada um, mas ensina-se-lhes que devem sempre
dizer algo de simpático às pessoas e que “devem
responder quando falam com eles, mas os beijinhos e abraços dão quando querem e
a quem querem, sem obrigações”. Com efeito, “um passou bem”, um “boa tarde”
ou mesmo um sorriso e um aceno dão testemunho de boa educação e simpatia.
De facto, as
crianças, como os adultos, têm diferentes níveis de tolerância ao contacto
físico por parte de pessoas que não lhes são próximas. A este respeito, a
psicóloga Carla Pacheco, defendendo o respeito pelos limites de cada um, vinca:
“O que para algumas crianças é prática comum para outras pode ser muito
incomodativo ou mesmo causar-lhes repulsa”.
Embora isto
pareça óbvio e de bom senso, há pais que se sentem incomodados face à recusa
dos filhos no atinente a cumprimentos físicos e adultos que interpretam tal
recusa como falta de educação. A este propósito, a psicóloga clínica Cláudia
Leal admite que, para os nossos padrões sociais, o cumprimento de beijinho faz
parte da socialização, mas importa que os pais percebam que educação, regras e
limites não devem chocar com o respeito pelos afetos dos filhos, embora eles
possam fazer escolhas que vão contra o socialmente esperado. Por isso, não tem
dúvidas:
“Os pais devem incutir-lhes a liberdade de poderem escolher a maneira
como saúdam as pessoas, conhecidas ou desconhecidas. Com um passou-bem, um “boa
tarde” ou simplesmente com um sorriso e um aceno continuam a ser educados e
simpáticos para com os outros, sem necessidade do beijo ou do abraço.”
Alguns pais,
ainda que não tenham tido reações negativas no círculo de amigos ou conhecidos,
admitem que é mais difícil com pessoas mais velhas, como os avós e as tias, que
não veem com tanta frequência. Por isso, vão fazendo junto dos filhos a
pedagogia dos mínimos e ante os adultos a explicação sobre o não significado de
desconsideração e sobre a necessidade e o sentido do respeito pelos ritmos de
crescimento de cada um.
Em todo o
caso, Cláudia Leal sustenta que “a sensibilização para os afetos é muito
importante para o desenvolvimento saudável de uma criança”, mas que “não pode
valer tudo”. E diz:
“Seja com os avós, tios, amigos ou até conhecidos, devemos sempre
incentivar a retribuição de um gesto carinhoso, de uma palavra doce. Podemos e
devemos promover o carinho, mas não podemos esquecer que o sentir não se impõe.
Ao forçar, cria-se um falso conceito de afeto.”.
Segundo a
psicóloga, algumas crianças aceitam, às vezes, cumprimentar dessa forma, mesmo não
gostando, com medo de castigo. Assim, é de questionar que liberdade de sentir se
lhes dá.
E Carla
Pacheco sublinha:
“É importante sensibilizá-las para os estados emocionais dos outros e
para o efeito das suas ações nelas, mas isto deve ser feito ‘sem
culpabilização, chantagem ou com vista a convencer a criança’, mas apenas com o
intuito de fomentar a empatia e lhe permitir ser ela própria a desenvolver
estratégias de retribuir o carinho e a atenção, nos seus próprios termos”.
Há quem
entenda que as imposições são perniciosas: ensina-lhes que devem submeter-se a
contacto físico não desejado, só porque esse é o desejo dos outros. A coach parental norte-americana Jennifer
Lehr criou celeuma quando, há dois anos, defendeu que este comportamento dos
pais leva a criança a percecionar como normal o uso do corpo para satisfazer os
desejos alheios. E, apesar de acusada por muitos de ser extremista, defendeu
que isso era meio caminho andado para a criança tolerar uma relação abusiva,
quer na infância quer na adolescência.
Carla
Pacheco confirma que é essencial respeitar o espaço pessoal da criança,
promovendo a noção de respeito por si própria e pelos seus afetos. E adverte:
“Ao forçarmos uma troca de afeto que não é sentida, estamos a
transmitir-lhe a ideia de que a sua vontade, no que respeita ao seu espaço
pessoal e aos seus afetos, poderá não ser tão válida como a de terceiros”.
A psicóloga
defende a importância de não se cair em extremismos (“Não vamos
traumatizar a criança por a forçar a dar um beijinho à tia que veio de longe”) e a relevância de se refletir na mensagem implícita
neste comportamento e nas nossas verdadeiras motivações para isso. E vinca:
“Enquanto pais, podemos sentir-nos melindrados, por receio de ver a
nossa competência parental posta em causa pelos outros. Mas importa ter em
mente que a criança é um indivíduo de direito próprio e que não existe para ir
ao encontro das necessidades ou expectativas de terceiros.”.
***
Porém, não
há dúvidas do cuidado em relação ao recém-nascido. Queira um batalhão de gente
ver, pegar e beijar o bebé nos primeiros dias (na maternidade ou em casa), tem de prudentemente, sem extremismos, haver alguma
salvaguarda. O bebé esteve 9 meses em ambiente perfeitamente estéril, protegido
do exterior e, ao nascer tem alguma imunidade devido aos anticorpos da mãe, mas
o seu sistema imunitário ainda é muito frágil e impreparado para lidar com os
milhões de microrganismos do ambiente (herpes,
mononucleose ou um simples vírus da gripe, que em crianças mais velhas ou em
adultos não costumam ter grande impacto na saúde, mas que podem, num
recém-nascido, provocar complicações). Por isso,
sobretudo no primeiro mês de vida, as visitas devem ter o cuidado de não pegar
no bebé se estiverem doentes e de lavar as mãos antes de lhe dar colo. Os
beijos devem ser limitados às pessoas mais próximas e dados na testa ou cabeça,
não na cara ou nas mãos.
2018.10.18 – Louro de Carvalho
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