quinta-feira, 18 de outubro de 2018

As crianças têm direito a não dar beijinhos, pois não!


A opinião de Daniel Cardoso no programa “Prós e Contras” da RTP, no passado dia 15 – que discutiu o #Metoo – gerou uma série de críticas nas redes sociais que se constituíram numa espiral de acusações e ódio. Hoje, dia 18, em entrevista ao DN, o professor justifica-se.
Daniel Cardoso, além de ativista da diversidade sexual e de género, é doutorado em ciências da comunicação e professor universitário, com mais de 30 publicações científicas, muitas delas relacionadas com a sexualidade, de que se destacam os recentes artigos científicos, um sobre o papel social da criança e outro sobre ativismo on line.
As frases em causa, na discussão sobre o consentimento sexual, foram estas:
É preciso falar de educação de forma concreta. A educação é quando a avozinha ou o avozinho vai lá a casa e a criança é obrigada a dar o beijinho à avozinha ou ao avozinho. Isto é educação, estamos a educar para a violência sobre o corpo do outro e da outra desde crianças. Obrigar alguém a ter um gesto físico de intimidade com outra pessoa como obrigação coerciva é uma pequena pedagogia que depois cresce.”.
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Por mais polémica que seja em termos sociais e familiares, a tese exposta é consensual nos meios científicos e defendida mesmo por instituições tão conservadoras como, por exemplo, os escuteiros norte-americanos. E o professor, enfatizando que a sua opinião é muito comum, atira:
Qualquer pessoa que vá comprar um livro sobre parentalidade positiva a uma grande superfície vai encontrar indicações sobre não impor as coisas às crianças. Isto está já ao nível do senso comum, nos manuais de como ser um bom pai ou uma boa mãe…”.
Segundo ele, a dimensão do escândalo resulta do facto de ter usado o exemplo do avô e da avó”, o que diz não ter feito por acaso, explanando:
Usei aquelas figuras a quem no nosso imaginário atribuímos (pelo respeito, pela idade) uma série de poderes e direitos. É uma tradição muito arreigada, de tal forma que já perdi a conta às vezes que vi uma mãe dizer ‘se não dás um beijinho à avó, vais ver o que te acontece’ ou ‘dá um beijinho ao avô e ganhas o brinquedo’. É contra este tipo de fenómeno que eu estou a falar e isto perturba as pessoas, porque mexe com a sensação de pureza e da naturalidade das relações familiares.”.
No seu entender, a criança não é encarada como “um sujeito com direitos e deveres”, mas como “um objeto a ser administrado por interesses superiores”, servindo de pretexto para as pessoas exercerem “a tirania dos pequenos poderes”. Com efeito, por a criança precisar de “proteção acrescida e de competências que ainda não adquiriu”, utiliza-se esse dever parental para impor obrigações ultrapassam o “cumprimento desses direitos e desses deveres” da boa educação.
Negando ter querido “sugerir a falta de educação”, encarece “a questão do respeito” como “uma condição mínima fundamental das interações humanas”. E discorre:
Se ensinarmos às crianças que não se respeita um ‘não’ e – atenção a isto – que, pela utilização da violência ou da coerção, ultrapassamos este ‘não’, estamos a dar um exemplo. E é um exemplo que elas vão levar ao longo da vida toda. E esse exemplo diz que, se tiveres poder suficiente, podes passar por cima do não do outro.”.
Não está obviamente em causa a boa educação, mas os termos do exercício do poder parental visto “como um último reduto de relações verticais de poder naturalizadas”, o que é, desde há décadas, questionado na pedagogia e nas ciências da educação.
O hábito do incentivo forçado ao beijinho aos avós (ou a outras venerandas personalidades, acrescento eu) é uma tradição muito arreigada, sendo a obrigação não apenas física, mas concretizada em ameaça de algo de mal ou promessa um bem, como: “se não dás um beijinho à avó, vais ver o que te acontece” ou “dá um beijinho ao avô e ganhas o brinquedo”. Ora, o investigador está “contra este tipo de fenómeno”, que “perturba as pessoas”, por mexer “com a sensação de pureza e da naturalidade das relações familiares”. É que é importante para o desenvolvimento saudável da criança a sensibilização para os afetos e socialização, mas não pode valer tudo.
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No referido programa, assumiu que há, no sistema judicial “um movimento deliberado de desvalorização dos processos de violação” – sistemático, não pontual. Na verdade, verificando que fazer a prova material duma violação é particularmente difícil”, diz que se usam “os mais variados argumentos para ‘plausivelmente’ levantar dúvidas”; depois, temos “uma justiça lenta”, o que leva a que cheguem poucos casos destes a tribunal, a que se junta o facto de “alguns dos que chegam” resultarem “em acórdãos chocantes para a vítima”.
Admitindo que o #Metoo não será apenas o produto de mau sistema judicial, assegura que “seria menos provável” num mundo “com um sistema judicial célere e justo”.
Refere que alguns dos argumentos escutados nestas discussões e espelhados nalgumas decisões judiciais recentes se baseiam na desvalorização do consentimento, o que se explica com a falta duma “literacia sobre o que é o consentimento” e dum entendimento nem práticas arreigadas sobre como dar e procurar consentimento”. E, entendendo que “a escola e o sistema educativo podem e devem fazer isso”, aduz que “tudo isto tem de começar na família”. E adverte:
Mas, se os pais não têm esta sensibilização, então não vão transmitir estes princípios aos filhos. A solução seguinte será que, com muito trabalho em ações de sensibilização e na escola, este tipo de coisas comece a ser democratizado. Mas há aqui um problema. As pessoas tratam o consentimento sexual como algo diferenciado de tudo o resto e isso está errado.”.
E, sobre a índole do consentimento e da necessidade da educação para ele, discorre:
O consentimento não é um ato, é um processo e uma dinâmica que é transversal a todas as interações interpessoais na nossa vida. Não há uma consciência clara disto. Como no sexo a questão é mais evidente, fala-se nisso. Mas o consentimento precisa de ser visto como uma ‘soft-skill’ que tenho de usar em toda a minha vida. Nós precisamos de uma educação sobre o consentimento muito mais alargada.”.
Confessando ter dificuldade “em colocar a responsabilidade nos movimentos contraculturais” (por não haver no movimento contracultural nada que obrigue a cultura vigente a ser tão agressiva), assegura que “a resposta da cultura vigente não depende nem pode depender da culpabilização dos movimentos sociais”.
Sobre a alegada sua desvalorização das redes sociais naquele programa televisivo por serem apenas o reflexo da sociedade, referiu que, às vezes ouve na ART discursos com palavras mais caras, “mas em que o nível não é assim tão mais elevado do que o das redes sociais” e anotou que, “muitas vezes, vemos no Parlamento chalaças e trocadilhos que visam deitar abaixo o outro”. Todavia, admite que “nas discussões nas redes sociais é muito fácil descer ao ódio e ao discurso desumanizante”. E diz que a questão da discussão nas redes sociais remete para a Hannah Arendt e a sua Banalidade do Mal, livro que reflete sobre a forma como a população alemã aceitou o discurso e aderiu a ele e ao sistema de ódio propagado pelo nazismo, sendo que então “não havia redes sociais”. Por isso, diz-se “contra estas visões tecnodeterministas que veem na tecnologia a responsabilidade ou a solução seja do que for”. E contrapõe:  
Nós temos dinâmicas sociais que importamos para a tecnologia, que são moduladas por ela, mas não nascem com ela. A banalidade do mal não está nas redes sociais, está nas pessoas. Mas há um interesse direto destas empresas tecnológicas na criação de emoções, porque há um ganho financeiro relevante na mobilização das pessoas e no engajamento em discussões. Devo lembrar que há empresas hoje respeitáveis que lucraram muito com a banalidade do nazismo, portanto as coisas não são assim tão diferentes.”.
Relevando o discurso de ódio, em que são usados os próprios estereótipos nós criticamos, sendo que muitos ataques atingem o aspeto físico, o ativismo sexual, a carreira profissional, alerta:
Se a dinâmica do insulto pretende que o outro se sinta inferiorizado e nós usamos para o inferiorizar as formas que essa pessoa tem para se empoderar, então é um bocado inútil – é como querer matar alguém à fome dando-lhe um belo repasto”.
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Acedendo a que não é a primeira vez que se evidencia “nesta questão da exposição pública nem na defesa de ideias que fogem de alguma forma à norma”, não estranha que os ataques tenham ganho esta dimensão. E explica:
Uma parte de mim não sabe, porque eu já disse coisas potencialmente bem mais chocantes... Mas volto à minha primeira resposta: isto mexe com valores muito centrais para as pessoas, que são os valores do respeito pelos mais velhos e pela família tradicional – que, se as pessoas pararem para ouvir, percebem que são valores que eu nem sequer ataquei. Não ataquei nem o papel da família tradicional nem a importância da boa educação.”.
Supôs estar “numa conversa com pessoas informadas”, mas verificou:
Essas pessoas não sabem que mais de metade dos abusos sexuais de crianças se dá com familiares ou com pessoas próximas da família. Por isso, quando criamos espaços em que não há regras, estamos a criar espaço para os abusos. Já não sei a quantidade de pessoas que vieram ter comigo desde o programa a contar que foram obrigadas a dar o beijinho à pessoa que antes ou depois as molestou sexualmente.”.
Ao facto de alguns meios de comunicação o usarem para criar conteúdos com informação descontextualizada – o que inspirará alguma reflexão sobre o estado do jornalismo, reage:
Se isto não é a definição de mau jornalismo de cópia, não sei o que é, até porque erraram em coisas básicas como a minha idade. Em segundo lugar, eu não fui contactado por nenhum órgão de comunicação antes da publicação daquelas peças, só um deles me contactou depois para fazer outra peça.”.
E acrescenta:
Diria que a guerra dos cliques se junta à guerra da velocidade e ao jornalismo fácil e irresponsável que não cumpre sequer os requisitos mínimos. É uma violação básica da deontologia jornalística – o que é especialmente interessante tendo em conta que neste semestre leciono direito da comunicação.”.
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Por seu turno, a Notícias Magazine on line, de hoje, 18 de outubro, publicou uma reportagem sob o título “As crianças têm direito a não dar beijinhos”, de que se respigam alguns aspetos.
Ter filhos pequenos dá para testemunhar que “frequentemente familiares, amigos e conhecidos querem beijinhos dos miúdos quando os encontram” e que, frequentemente, eles recusam.
Há, neste aspeto, diferenças de personalidade, socialização e atitude perante manifestações de afeto. Assim, enquanto um “escondia a cabeça no meio das pernas dos pais quando era mais novo, continua tímido e envergonhado e não dá beijos nem abraços a ninguém”, outro, com 5 anos, “ainda ninguém lhe pediu nada e já ele se está a esticar para dar beijos e abraços” (cumprimenta e despede-se de toda a gente, mesmo que seja ao entrar e sair dum elevador cheio de desconhecidos no centro comercial) e outro tem dias: ora expansivo e beijoqueiro, ora relutante.
Ora, é de explicar que dar beijos não é obrigatório, mas ser bem-educado o é. Respeitam-se os momentos e a personalidade de cada um, mas ensina-se-lhes que devem sempre dizer algo de simpático às pessoas e que “devem responder quando falam com eles, mas os beijinhos e abraços dão quando querem e a quem querem, sem obrigações”. Com efeito, “um passou bem”, um “boa tarde” ou mesmo um sorriso e um aceno dão testemunho de boa educação e simpatia.
De facto, as crianças, como os adultos, têm diferentes níveis de tolerância ao contacto físico por parte de pessoas que não lhes são próximas. A este respeito, a psicóloga Carla Pacheco, defendendo o respeito pelos limites de cada um, vinca:
O que para algumas crianças é prática comum para outras pode ser muito incomodativo ou mesmo causar-lhes repulsa”.
Embora isto pareça óbvio e de bom senso, há pais que se sentem incomodados face à recusa dos filhos no atinente a cumprimentos físicos e adultos que interpretam tal recusa como falta de educação. A este propósito, a psicóloga clínica Cláudia Leal admite que, para os nossos padrões sociais, o cumprimento de beijinho faz parte da socialização, mas importa que os pais percebam que educação, regras e limites não devem chocar com o respeito pelos afetos dos filhos, embora eles possam fazer escolhas que vão contra o socialmente esperado. Por isso, não tem dúvidas:
Os pais devem incutir-lhes a liberdade de poderem escolher a maneira como saúdam as pessoas, conhecidas ou desconhecidas. Com um passou-bem, um “boa tarde” ou simplesmente com um sorriso e um aceno continuam a ser educados e simpáticos para com os outros, sem necessidade do beijo ou do abraço.”
Alguns pais, ainda que não tenham tido reações negativas no círculo de amigos ou conhecidos, admitem que é mais difícil com pessoas mais velhas, como os avós e as tias, que não veem com tanta frequência. Por isso, vão fazendo junto dos filhos a pedagogia dos mínimos e ante os adultos a explicação sobre o não significado de desconsideração e sobre a necessidade e o sentido do respeito pelos ritmos de crescimento de cada um.
Em todo o caso, Cláudia Leal sustenta que “a sensibilização para os afetos é muito importante para o desenvolvimento saudável de uma criança”, mas que “não pode valer tudo”. E diz:
Seja com os avós, tios, amigos ou até conhecidos, devemos sempre incentivar a retribuição de um gesto carinhoso, de uma palavra doce. Podemos e devemos promover o carinho, mas não podemos esquecer que o sentir não se impõe. Ao forçar, cria-se um falso conceito de afeto.”.
Segundo a psicóloga, algumas crianças aceitam, às vezes, cumprimentar dessa forma, mesmo não gostando, com medo de castigo. Assim, é de questionar que liberdade de sentir se lhes dá.
E Carla Pacheco sublinha:
É importante sensibilizá-las para os estados emocionais dos outros e para o efeito das suas ações nelas, mas isto deve ser feito ‘sem culpabilização, chantagem ou com vista a convencer a criança’, mas apenas com o intuito de fomentar a empatia e lhe permitir ser ela própria a desenvolver estratégias de retribuir o carinho e a atenção, nos seus próprios termos”.
Há quem entenda que as imposições são perniciosas: ensina-lhes que devem submeter-se a contacto físico não desejado, só porque esse é o desejo dos outros. A coach parental norte-americana Jennifer Lehr criou celeuma quando, há dois anos, defendeu que este comportamento dos pais leva a criança a percecionar como normal o uso do corpo para satisfazer os desejos alheios. E, apesar de acusada por muitos de ser extremista, defendeu que isso era meio caminho andado para a criança tolerar uma relação abusiva, quer na infância quer na adolescência.
Carla Pacheco confirma que é essencial respeitar o espaço pessoal da criança, promovendo a noção de respeito por si própria e pelos seus afetos. E adverte:
Ao forçarmos uma troca de afeto que não é sentida, estamos a transmitir-lhe a ideia de que a sua vontade, no que respeita ao seu espaço pessoal e aos seus afetos, poderá não ser tão válida como a de terceiros”.
A psicóloga defende a importância de não se cair em extremismos (“Não vamos traumatizar a criança por a forçar a dar um beijinho à tia que veio de longe”) e a relevância de se refletir na mensagem implícita neste comportamento e nas nossas verdadeiras motivações para isso. E vinca:
Enquanto pais, podemos sentir-nos melindrados, por receio de ver a nossa competência parental posta em causa pelos outros. Mas importa ter em mente que a criança é um indivíduo de direito próprio e que não existe para ir ao encontro das necessidades ou expectativas de terceiros.”.
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Porém, não há dúvidas do cuidado em relação ao recém-nascido. Queira um batalhão de gente ver, pegar e beijar o bebé nos primeiros dias (na maternidade ou em casa), tem de prudentemente, sem extremismos, haver alguma salvaguarda. O bebé esteve 9 meses em ambiente perfeitamente estéril, protegido do exterior e, ao nascer tem alguma imunidade devido aos anticorpos da mãe, mas o seu sistema imunitário ainda é muito frágil e impreparado para lidar com os milhões de microrganismos do ambiente (herpes, mononucleose ou um simples vírus da gripe, que em crianças mais velhas ou em adultos não costumam ter grande impacto na saúde, mas que podem, num recém-nascido, provocar complicações). Por isso, sobretudo no primeiro mês de vida, as visitas devem ter o cuidado de não pegar no bebé se estiverem doentes e de lavar as mãos antes de lhe dar colo. Os beijos devem ser limitados às pessoas mais próximas e dados na testa ou cabeça, não na cara ou nas mãos.
2018.10.18 – Louro de Carvalho

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