quarta-feira, 4 de janeiro de 2023

Está em marcha a 8.ª Revisão da Constituição

 

 

Com a tomada de posse, a 4 de janeiro, da Comissão Eventual de Revisão (CER), a Assembleia da República (AR) assume poderes constituintes, 18 anos após a última revisão constitucional.

A Constituição da República Portuguesa (CRP) resultou da discussão e saiu da pena dos deputados da Assembleia Constituinte, eleita a 25 de abril de 1975, na que foi a mais participada eleição da democracia. Foram às urnas escolher 250 deputados 91,7% dos eleitores portugueses. Entre os constituintes eleitos, contavam-se, por exemplo, Mário Soares, Manuel Alegre, António Arnaut, Sophia de Mello Breyner, Francisco Sá Carneiro, Francisco Pinto Balsemão, Jorge Miranda, Álvaro Cunhal, Jerónimo de Sousa, Diogo Freitas do Amaral ou Adelino Amaro da Costa (embora Cunhal, por exemplo, não tenha exercido o mandato, enquanto Soares saiu e voltou). Os trabalhos prolongaram-se por dez meses, após o que a Assembleia Constituinte se dissolveu. A CRP – aprovada e promulgada, a 2 de abril de 1976, e em vigor, desde 25 de abril, dia das primeiras eleições legislativas – obteve os votos favoráveis do Partido Socialista (PS), do Partido Social Democrata (PSD), do Partido Comunista Português (PCP), do Movimento Democrático Português / Comissão Democrática Eleitoral (MDP/CDE), da União Democrática Popular (UDP) e da Associação de Defesa dos Interesses de Macau (ADIM). Só o Partido do Centro Democrático Social (CDS) votou contra.

A CRP organiza-se em Princípios fundamentais e 4 partes – Direitos e Deveres Fundamentais, Organização Económica, Organização do Poder Político e Garantia e Revisão da Constituição – e sofreu sete revisões: em 1882, em 1989, em 1992, em 1997, em 2011, em 2004 e em 2005.

Em 1982, é concluído primeiro processo de alteração do texto originário, na que se considera a revisão constitucional de maior alcance: desmilitarizou o regime e limitou os poderes do Presidente da República (PR). Foi extinto o Conselho de Revolução (CR) e surgiu, no seu lugar, o Conselho de Estado, como órgão consultivo do PR, e o Tribunal Constitucional (TC), para apreciar a constitucionalidade dos diplomas legislativos. O CR perdeu poderes para a AR e a demissão do Governo pelo chefe de Estado só é admitida para assegurar o “regular funcionamento das instituições democráticas”. Esta revisão deu também maior espaço à iniciativa privada.

Em 1989, consolidou-se o rumo para a liberalização económica, que se iniciara em 1982. Com Aníbal Cavaco Silva como líder da primeira maioria absoluta do PSD, a segunda revisão constitucional pôs fim à irreversibilidade das nacionalizações do pós-25 de Abril, abrindo caminho às reprivatizações. Foi atenuado o domínio estatal da economia e terminou a Reforma Agrária. Por outro lado, esta revisão introduziu na Lei Fundamental a possibilidade de referendo.

O ano de 1992, três anos após a última revisão ordinária, trouxe uma revisão extraordinária, com vista a adaptar o texto da CRP ao Tratado de Maastricht e a estipular que o Banco de Portugal (BdP), “como banco central nacional, colabora na definição e execução das políticas monetária e financeira e emite moeda, nos termos da lei”, ficando sem o monopólio da emissão de moeda.

Em 1997, procedeu-se a nova revisão constitucional, para adaptar o texto a novo tratado europeu, agora o Tratado de Amesterdão. Mas a quarta revisão constitucional consagrou também outras alterações, nomeadamente no sistema eleitoral: admite a criação de círculos uninominais e a redução do número de deputados até aos 180 (o que não se verificou até agora); cria a figura da iniciativa legislativa dos cidadãos e a possibilidade de candidaturas independentes às autarquias; os emigrantes votam nas eleições para a Presidência da República; e introduz-se a obrigatoriedade do referendo para regionalização.

O ano de 2001 trouxe a quinta revisão constitucional (extraordinária), com o objetivo de permitir a ratificação, por Portugal, da Convenção que cria o Tribunal Penal Internacional (TPI), alterando as regras de extradição. A revisão foi aprovada por PS, PSD e CDS, com os votos contra do PCP, do Bloco de Esquerda (BE) e do Partido Ecológico “Os Verdes”, a que se somaram, na bancada do PS, três votos contra (Manuel Alegre, José Medeiros Ferreira e António Marques Júnior) e uma abstenção (Helena Roseta).

Em 2004, procedeu-se à revisão que consagra o princípio da não discriminação em função da orientação sexual e que alarga o princípio da limitação dos mandatos dos titulares de cargos políticos executivos. Esta revisão traduz-se também em maior autonomia político-administrativa dos Açores e da Madeira, que veem aumentados os poderes das suas Assembleias Legislativas. É eliminado o cargo de Ministro da República, que é substituído pelo de Representante da República. Porém, o motivo da revisão foi a adequação ao quadro da União Europeia (UE).

Por fim, em 2005​, foi concluída a 7.ª revisão constitucional (extraordinária), que se traduziu no aditamento de novo artigo, permitindo a realização de referendo sobre a aprovação de futuros tratados que visem a construção e o aprofundamento da UE. A alteração visava a Constituição Europeia, assinada em Roma, a 24 de outubro de 2004, mas que não chegou a ser referendada.

Em 2010, foi aberto novo processo de revisão, que não foi concluído, dada a demissão do Governo, em março de 2011, e posterior dissolução da AR.

***

A CER, ora em funções, que vai discutir a 8.ª revisão constitucional, debate-se com oito projetos de revisão, apresentados por todos os partidos com assento parlamentar que, no conjunto, alterariam mais de metade da Constituição, se fossem todos aprovados. A maioria das propostas ficará, provavelmente, pelo caminho, mas há pontos de convergência entre o PS e o PSD que abrem portas a entendimento. Com efeito, há 14 artigos com propostas de alteração comum entre o PS e o PSD. E, embora nem todas sejam convergentes, há espaço para um entendimento entre socialistas e socialdemocratas, podendo figurar como primeiro grande acordo desde 2005

O processo de revisão em curso foi lançado, em outubro, pelo Chega, iniciativa que recebeu críticas da esquerda à direita. Porém, como o PSD também avançou, todos os outros partidos apresentaram propostas, com o secretário-geral do PS a vincar que “não interessa como começa” o processo, mas “interessa como acaba”. Para já, a CER terá um período de trabalho de 90 dias, que pode ser prorrogado.

O partido que avança com a proposta de revisão mais alargada é o PSD, que propõe alterar 71 artigos da Lei Fundamental, acrescentando cinco novos. O PCP quer alterar 68. O Chega pretende alterar 63 pontos. O Bloco de Esquerda (BE) avança com 40 alterações e com dois artigos novos. A Iniciativa Liberal (IL) propõe a alteração de 35 artigos e dois aditamentos. O Partido Pessoas, Animais e Natureza (PAN) quer mudar 23 artigos. O Livre 20 quer também mudar 20 artigos e acrescentar dois novos. E o PS avança com 20 propostas de alteração e com um aditamento.

São vários os partidos que avançam com a eliminação total de artigos da CRP, mas há um que se destaca: a IL quer retirar 13 artigos e umas quantas alíneas de mais uma dezena de pontos. O Chega e o PCP propõem a eliminação de cinco, dois deles comuns. O Chega quer a reprivatização de bens nacionalizados depois de 25 de Abril de 1974. O PCP quer a incriminação e o julgamento dos agentes e responsáveis da PIDE/DGS e a eliminação do artigo que possibilita o referendo sobre tratados europeus. O PSD propõe a eliminação de cinco artigos. E o PS é o que pretende a revisão mais minimalista.

Há um artigo da CRP que praticamente todos querem alterar. Só o Livre é que não tem proposta de alteração. É o artigo 64.º, dedicado à Saúde. Há uma mudança praticamente certa, tal é o espetro alargado das propostas: onde a Constituição institui que “incumbe prioritariamente ao Estado garantir o acesso de todos os cidadãos, independentemente da sua condição económica, aos cuidados da medicina preventiva, curativa e de reabilitação”, todas as propostas acrescentam a medicina paliativa, e algumas a medicina reprodutiva e a saúde mental. As demais alterações são divergentes, com a direita a sublinhar o papel dos privados no sistema de saúde e a esquerda a propor o contrário. Outro que recolhe quase o pleno, com exceção da IL, é o artigo 66.º, dedicado ao ambiente e à qualidade de vida. Com formulações diferentes, os objetivos são comuns, pelo que também aqui é admissível um acordo. E o mesmo se diga do artigo 35.º, em que os partidos querem incluir o direito ao esquecimento digital. E há um item que faz o pleno na oposição: o artigo 149.º, que define os círculos eleitorais. O PSD propõe a alteração mais minimalista, sustentando que o número de deputados eleitos por círculo plurinominal deve levar em conta a “representação equilibrada de todo o território”. O Chega e o Livre querem um círculo nacional de compensação. IL, PCP, BE e PAN retiram a consagração constitucional do método de Hondt, mas os comunistas e os bloquistas querem retirar os círculos uninominais, introduzidos na CRP em 1997. Mas, como o PS está alheio ao tema, o mais provável é que o artigo fique na mesma.

Há 14 artigos com propostas de alteração quer do PS, quer do PSD. Embora não haja total convergência, é sobretudo nestes pontos que estará a chave desta revisão. Estão aqui dois temas fulcrais: a obrigatoriedade de confinamento em caso de doença infeciosa grave; e o acesso aos metadados das telecomunicações por parte dos serviços de informação. Neles insistem, com a nota de urgência, observadores, constitucionalistas e o próprio presidente da AR, Santos Silva.

No primeiro caso, os dois partidos alteram o artigo da CRP (artigo 27.º) que elenca as situações em que se permite a privação de liberdade dos cidadãos, somando a possibilidade de internamento ou confinamento por razões de saúde pública – ponto polémico, pois o confinamento pode ser decretado pela autoridade de saúde, com “garantia de recurso urgente à autoridade judicial”, segundo o PS, ou “decretado ou confirmado por autoridade judicial”, segundo o PSD. Quanto aos metadados, o PS quer permitir (artigos 34.º e 35.º) o “acesso, mediante autorização judicial, pelos serviços de informações, a dados de base, de tráfego e de localização de equipamento, bem como a sua conservação”, sendo permitido para “salvaguarda da defesa nacional, da segurança interna de prevenção de atos de sabotagem, espionagem, terrorismo, proliferação de armas de destruição maciça e criminalidade altamente organizada”. O PSD propõe que a lei possa “autorizar o acesso do sistema de informações da República aos dados de contexto resultantes de telecomunicações, sujeito a decisão e controlo judiciais”.

Dos 296 artigos da CRP, há 129 sem propostas de alteração. Assim, há a pretensão, certamente gorada, de rever mais de metade da Constituição. Ficará intocável a generalidade das alterações ao sistema político, nomeadamente no respeitante à proposta do PSD de definir um mandato único de sete anos para o PR. António Costa disse não querer alterar o sistema político e institucional.

***

Penso que a CRP deveria estipular um mínimo de deputados (três ou quatro) por círculo eleitoral e alterar a composição e o mandato do TC. De resto, que siga o cortejo, com o maior consenso.

2022.01.04 – Louro de Carvalho

Sem comentários:

Enviar um comentário