quinta-feira, 4 de abril de 2024

Identificadas irregularidades no caso das gémeas luso-brasileiras

 

A Inspeção-Geral das Atividades em Saúde (IGAS) conclui pela identificação de várias irregularidades no caso das gémeas luso-brasileiras que tiveram acesso a um medicamento de cerca de quatro milhões de euros, pelo que envia o relatório segue para o Ministério Público (MP), que apurará se foi cometido algum crime no processo de tratamento.

Recorde-se que as crianças em causa receberam o referido tratamento em 2020 – caso que envolveu o filho e, à partida, o próprio Presidente da República (PR), que cedo se descartou da questão. O caso foi levantado pela TVI, em reportagem, nos princípios de novembro de 2023, focado numa alegada intervenção do PR. Contudo, as suspeitas de uma alegada cunha por parte de Marcelo Rebelo de Sousa foram sucessivamente negadas à TVI e à CNN Portugal.

Uma das falhas foi, desde logo, a marcação da primeira consulta, alegadamente, pela Secretaria de Estado da Saúde.

Nas conclusões do relatório, divulgadas a 4 de abril, a IGAS refere que “não foram cumpridos os requisitos de legalidade no acesso das duas crianças à consulta de neuropediatria”, uma vez que a marcação da consulta não cumpriu a portaria que regula o acesso dos utentes ao Serviço Nacional de Saúde (SNS), a Portaria n.º 147/2017, de 27 de abril. Porém, conclui que a prestação de cuidados de saúde às crianças decorreu “sem que tenham existido factos merecedores de qualquer tipo de censura”.

O caso das duas gémeas residentes no Brasil que adquiriram nacionalidade portuguesa e receberam em Portugal, em 2020, o medicamento Zolgensma, com um custo total de cerca de quatro milhões de euros, foi divulgado pela TVI, em novembro, e está ainda a ser investigado pela Procuradoria-Geral da República (PGR). 

O processo de inspeção encontra-se “na fase de acompanhamento destas recomendações”, acrescenta a IGAS, na nota adrede emitida. Com efeito, o relatório do processo inspetivo emite três recomendações dirigidas à Unidade Local de Saúde (ULS) de Santa Maria, ao Infarmed – Autoridade Nacional do Medicamento e Produtos de Saúde e à Secretaria-Geral do Ministério da Saúde, dando o prazo de 60 dias para a sua aplicação.

À ULS de Santa Maria, a IGAS recomenda que garanta o cumprimento, no acesso de utentes à primeira consulta de especialidade, dos requisitos previstos na lei (Lei n.º 15/2014, de 21 de março, com a redação que lhe foi dade pelo Decreto-Lei n.º 44/2017, de 20 de abril; e a portaria já referida), que define que o encaminhamento (referenciação) para primeira consulta de especialidade hospitalar pode ser feito a partir das unidades funcionais dos Agrupamentos de Centros de Saúde (ACES) ou por outros serviços hospitalares da mesma instituição ou de outra do SNS. Prevê ainda que a referenciação possa ser feita a partir do Centro de Contacto do SNS, das unidades e equipas da Rede Nacional de Cuidados Continuados Integrada (RNCCI) ou de entidades externas ao SNS. 

À Secretaria-Geral do Ministério da Saúde recomenda que “assegure que a documentação que lhe é encaminhada por parte dos gabinetes dos membros do governo, para tratamento, foi objeto de despacho pelo membro do governo, ou pela pessoa do gabinete na qual tenha sido delegada essa responsabilidade”.

Ao Infarmed, enquanto regulador do medicamento, recomenda que cumpra o circuito de submissão, avaliação e aprovação dos pedidos de autorização de utilização excecional (AUE), nos termos do previsto no regulamento sobre a AUE prevista no Estatuto do Medicamento.

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António Lacerda Sales, ex-secretário de Estado, especialmente visado, critica a IGAS, por ter dado menos valor à sua palavra do que à da sua secretária pessoal, que contactou o Hospital de Santa Maria para agendar a consulta das gémeas. “Qual o motivo para a inspeção-geral dar mais credibilidade ao depoimento da secretária pessoal do que ao do secretário de Estado da Saúde”, questiona Lacerda Sales, no contraditório que integra o relatório sobre o caso.

Na sua ação inspetiva, a IGAS concluiu pela ilegalidade do acesso à consulta de neuropediatria das gémeas que receberam, em Santa Maria, um medicamento de milhões de euros. “Não foram cumpridos os requisitos de legalidade no acesso das duas crianças à consulta de neuropediatria” uma vez que a marcação – feita através da Secretaria de Estado da Saúde – não cumpriu a portaria que regula o acesso dos utentes ao Serviço Nacional de Saúde (SNS), refere a IGAS.

Lacerda Sales contesta diversos pontos do documento e diz que, ao invés do afirmado pela sua secretária pessoal, nunca solicitou a marcação de qualquer consulta.

Lembra que a sua secretária pessoal tinha exercido funções no Centro Hospitalar Universitário Lisboa Norte (CHULN) – que pertencia ao Hospital de Santa Maria – e, por isso, poderia já ter conhecimento do caso das gémeas, cujos pedidos de ajuda começaram em setembro de 2019.

A IGAS refere que o ex-secretário de Estado teve conhecimento do caso das duas crianças gémeas, após reunião realizada, a 7 de novembro de 2019, com Nuno Rebelo de Sousa (filho do Presidente da República), na qual lhe foi solicitada a colaboração para a obtenção de tratamento com o medicamento Zolgensma. E escreve que, em data por apurar, “mas situada entre 7 e 20 de novembro de 2019”, o ex-secretário de Estado solicitou à sua então secretária pessoal que contactasse telefonicamente a Nuno Rebelo de Sousa, que pretendia que fosse marcada uma consulta para duas crianças no Hospital de Santa Maria, tendo-lhe fornecido o número telefónico para o efeito, informação que Lacerda Sales nega.

Na sequência deste contacto – diz a IGAS – a secretária pessoal, “obteve informação, que remeteu para o CHULN, EPE, de acordo com as orientações do SES [secretário de Estado da Saúde], quanto à identidade das crianças, data de nascimento, diagnóstico e datas em que os pais poderiam estar presentes no referido hospital”. E, “apesar de o então SES negar o seu envolvimento na obtenção de informação sobre as gémeas junto do Dr. Nuno Rebelo de Sousa e posterior encaminhamento para o CHULN, EPE, para marcação de consulta, não se descortina como a sua secretária pessoal, atento o seu grau de autonomia, poderia ter tido conhecimento do caso das duas crianças gémeas e da sua informação pessoal e comunicado com o CHULN, EPE, que não fosse através do modo e contactos referidos”, acrescenta a IGAS.

Sobre este contacto da sua secretária pessoal com o Santa Maria, Sales sublinha o facto de não constar ‘em CC’ (com conhecimento) no email e questiona: “Porque é que não existe qualquer indicação no mail de que o mesmo foi enviado a pedido do SES? Não seria prudente, considerando que a então secretária estava ali, no exercício das duas funções, há pouco mais de 15 dias?”

Lacerda Sales chega a abordar a forma como a secretária pessoal se dirige à diretora do departamento de pediatria (“Cara Prof. Isabel Lopes” e “Mais uma vez muito agradeço a sua preciosa ajuda”) questionando: “Qual o grau de intimidade entre as intervenientes? Já se conheciam anteriormente?”.

E, no final do contraditório, Lacerda Sales pergunta: “ Porque é que o projeto de relatório, considerando o vários contactos prévios ao email do dia 20 de novembro de 2019, não equaciona outra hipótese que fosse determinativa para o agendamento das consultas? Pela Casa Civil ou outros colegas ou outras instituições de saúde?”.

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Divulgado o teor do relatório da IGAS, o líder do Chega, André Ventura, veio, de imediato, a terreiro comunicar que o seu partido vai avançar com o pedido para a realização de uma comissão de inquérito parlamentar (CPI). “Tomei a decisão de pedir aos serviços técnicos do partido que avançassem com pedido de comissão de inquérito parlamentar ao caso das gémeas. Faço-o, porque entendo que é importante que haja escrutínio, independentemente dos decisores políticos envolvidos. Faço-o porque este caso implicou, para os contribuintes, um custo de vários milhões”, justificou André Ventura, em declaração aos jornalistas na Assembleia da República (AR), vincando que “esta comissão de inquérito não é contra ninguém”, mas “para apurar a verdade”  

De acordo com André Ventura, uma das conclusões do relatório “é [a] de que todos os intervenientes deste processo ou favoreceram ou cometeram irregularidades no acesso, no acompanhamento e no acesso ao tratamento das gémeas luso-brasileiras no sistema de saúde português”.

O relatório do IGAS, prossegue André Ventura, concluiu que “o acesso à primeira consulta” aconteceu “não cumprindo as regras habituais do SNS nesta matéria, mas sim através de um pedido da secretaria de Estado da Saúde, então ocupada por Lacerda Sales”. “Com o respeito que todos os protagonistas políticos merecem, é risível o argumento de que uma secretária por sua própria iniciativa ou vontade fosse marcar uma consulta para umas gémeas que vivem do outro lado do mundo”, comentou.

O presidente do Chega acrescentou que o “relatório vai mais longe e mostra que o diretor clínico do hospital, à altura, teve uma influência, também ela através de irregularidades, no processo que levou à consulta e depois à aplicação do medicamento”.

O líder do Chega disse que o “Infarmed mentiu a esta casa [AR], pois disse que todo o procedimento tinha sido normal e habitual”. Ora, “o relatório não deixa margem para dúvidas, o processo de atribuição do medicamento no Infarmed teve irregularidades, não seguiu a via normal, não foi solicitado através do sistema informático normal, mas através de um email”, frisou.

“Chegados a este ponto, é importante que o poder político não fique imune”, salientou Ventura. 

Além deste caso, o Chega quer que esta CPI apure também “se há casos parecidos em Portugal, noutras zonas do país, noutras áreas, que têm custado milhões aos cofres dos contribuintes”.

André Ventura revelou que vai contactar as bancadas do Partido Socialista (PS) e do Partido Social Democrata (PSD), para tentar que estes partidos apoiem a sua proposta, dizendo esperar um consenso sobre esta matéria. Porém, não for possível e a proposta for rejeitada em plenário, o Chega avançará com uma comissão potestativa, de caráter obrigatório.

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A IGAS identificou irregularidades no acesso à primeira consulta, não as detetando na aplicação do tratamento. Aliás, esta segunda parte nunca esteve em causa. Com efeito, as dúvidas que se levantaram diziam respeito à consecução recorde da nacionalidade portuguesa (os seus agentes, pelos vistos, são ignorados no relatório) e à marcação da primeira consulta, casos em que se criticava a eventual não observância da igualdade de oportunidades, bem como a alegada intervenção do PR, a pedido do filho, hipótese cujo descarte, da parte do Chefe de Estado, parece ter sido acolhida. É certo que também se criticava a administração do Zolgensma, pelo facto de poder ser incompatível, ou de pequeno efeito, com o tratamento a que as gémeas foram sujeitas no Brasil, bem como por ter havido casos em que o medicamento não terá sido dispensado gratuitamente a crianças com igual doença.

Por isso, entende-se que a IGAS faça recomendações ao hospital e ao Ministério da Saúde, mas não ao Infarmed. André Ventura assinala o facto de o medicamento não ter sido requisitado pela via informática normal do sistema, mas por email. Não me parece de todo censurável. Quando o sistema não responde, exploram-se outras vias. Conheci o caso de utente a quem devia ser ministrado, no hospital, um medicamento. Só ao chegar lá, lhe foi dito que não o podiam administrar, porque o médico não o requisitara à farmácia. Se calhar, era possível resolver o assunto na hora. Porém, o utente teve de voltar noutra ocasião.

Seja como for, o caso das gémeas foi visto pela IGAS, segue para o MP e deve ser discutido na AR. Porque implica detentores do poder político stricto sensu, não vale argumentar com o “à Justiça o que é da Justiça, à Política o que é da Política”. Entende-se que António Costa o tenha adotado para se demarcar de Sócrates e que, por coerência pessoal, se tenha demitido do cargo de primeiro-ministro, mas o aforismo não é doutrina, nem goza de validade universal. Tudo o que é política deve ser discutido politicamente.

2024.04.04 – Louro de Carvalho

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