sábado, 4 de junho de 2022

O lado económico da guerra Rússia-Ucrânia

 

Uma guerra que o líder dos invasores julgava resolver-se em 72 duas horas já ultrapassa os 100 dias e sem que se lhe veja fim à vista. As negociações para um cessar-fogo e eventual regresso à tão desejada paz goraram-se a ponto de, pelo menos aparentemente, ninguém os pretender, uma vez que os dois contendores pensam na vitória como provável.

É óbvio que o principal responsável pela guerra é o invasor, que não tem desculpa, já que não há razão justa para a guerra, quando podia e devia ter funcionado a diplomacia. Contudo, não podemos esquecer que a Rússia e seus apoiantes quiseram impedir que Ocidente estendesse as suas ambições a leste; e os Estados Unidos da América (EUA) e a União Europeia (UE), bem como o bloco militar que diz sustentar a defesa do Atlântico Norte (NATO) têm ido longe de mais na extensão das suas ambições, com o agrado e o pedido de países vizinhos da Federação Russa.

É claro que as guerras, além das pugnas estritamente militares e seus desaires, têm os amargos efeitos ditos colaterais, na destruição de património, estruturas e haveres – públicos e privados, incluindo escolas, hospitais e templos – e na morte, mutilação, sequestro e fuga de civis.     

Como qualquer guerra, também esta se faz com armas convencionais, com novos tipos de armas (alguns de incalculáveis efeitos deletérios), com as useiras e as novas estratégias e táticas militares e, obviamente, com os indizíveis e inúteis boicotes económicos, eufemisticamente rotulados de sanções, decretados pelos países (Reino Unido e EUA) e por blocos de países (como a UE).

Entretanto, Vladímir Putin, perante as primeiras sanções de que russos (alguns são alvos seletivos) e a Rússia foram objeto, determinou que os produtos energéticos e os derivados dos combustíveis fósseis sejam pagos em rublos, o que alguns países aceitaram, outros rejeitam e outros acabam por prescindir do fornecimento russo.

A isto acrescenta-se a crise alimentar. Com efeito, o cereal acumulado na Rússia e na Ucrânia, dois dos grandes exportadores mundiais, está retido e está com séria dificuldade em passar para a Europa do Centro, do Sul e do Ocidente e para a África. E, por arrastamento, vem o aumento dos bens essenciais, como o leite e derivados, a carne e o peixe, o pão e as massas alimentícias.

Não é, pois, sem alguma razão que o Presidente russo diz que o Ocidente é responsável por uma crise alimentar global. Na verdade, a guerra deixou de ser – se é que alguma vez o foi – uma disputa entre David e Golias (Ucrânia e Rússia), para ser uma guerra, mais ou menos clara, entre a Rússia e o Ocidente (tem havido provocações recíprocas). E pode vir a ser uma guerra mundial como as duas do século passado. Basta que Japão, China e Índia se decidam por um bloco ou por outro. Em alternativa, o conflito mundial pode resultar dum incidente ocasional ou provocado por um dos blocos pouco interessados na paz mundial ou, mesmo, pela deflagração da componente nuclear da guerra.

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Voltando à componente económica, é de referir que a Itália anunciou o início da “guerra mundial do pão”. Efetivamente, o ministro italiano dos Negócios Estrangeiros, Luigi di Maio, disse, no dia 4 de junho que começou “a guerra mundial do pão”, com o bloqueio de cereais na Ucrânia e o consequente “risco de novos conflitos em África”. E enfatizou:

“A guerra mundial do pão já está em marcha e temos de a parar. Arriscamo-nos a ter instabilidade política em África, a haver proliferação de organizações terroristas, a ter golpes de Estado. É isto que pode produzir a crise dos cereais que estamos a viver.”

A Ucrânia era um dos maiores produtores mundiais de cereais e fertilizantes agrícolas, que exportava para todo o planeta, sendo estas produções fundamentais para a segurança alimentar em regiões como o Médio Oriente e o Norte de África. Mas o bloqueio dos produtos ucranianos por causa da guerra está a dificultar ou mesmo a impedir o acesso aos cereais por parte de países vulneráveis. Portanto, o ministro quer “um acordo de paz o mais depressa possível, que abranja os cereais” e diz que “estamos a trabalhar [Itália, Alemanha, Turquia, França e muitos outros países] para que a Rússia desbloqueie a exportação de trigo desde os portos ucranianos porque corremos o risco, neste momento, de estalarem guerras novas em África”.

Itália oferecera-se para desminar os portos ucranianos e criar “corredores marítimos” para o transporte de trigo, tendo o primeiro-ministro italiano, Mario Draghi, falado por telefone com o Presidente russo, para lhe pedir o desbloqueio da exportação de cereais a partir da Ucrânia, incluindo dos portos do Mar de Azov, como Mariupol, ocupados pela Rússia. E Putin respondeu que haverá exportação de cereais, se o Ocidente levantar as sanções que impôs à Rússia.

E a Agência das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) já alertou para as consequências desta guerra na segurança alimentar em todo o mundo, já que tanto a Rússia como a Ucrânia são dos maiores produtores de cereais do planeta.         

Entre nós, a ministra da Agricultura garante que o país tem reservas de cereais para um mês e que já foram encontradas alternativas à Ucrânia para continuar a fornecer o mercado nacional.

Em declarações transmitidas pela CNN Portugal a partir de Leiria, onde esteve na manhã do dia 4 de junho, a inaugurar o mercado municipal, a governante frisou que, “se não houver nenhuma alteração àquilo que está previsto e com o cumprimento dos contratos, [há] condições para poder garantir que não haverá falhas no abastecimento”.

E não só o que está em stock nos silos do país. Também os navios que estão a chegar e os contratos de fornecimento “são os necessários para garantir que esta reserva é suficiente para alimentar Portugal”, anotou Maria do Céu Antunes, que pormenorizou que, além de a “reserva estratégica [ser] maior do que a que tinha no início desta guerra e desta crise dos cereais”, o país também tem “a possibilidade de acompanhar (…) todos os contratos que estão feitos”, beneficiando dos “mercados alternativos que os importadores foram encontrando [no continente americano e na África do Sul] para substituir, nomeadamente, o mercado da Ucrânia na aquisição do milho”.

Cerca de 40% do milho consumido em Portugal era até agora importado da Ucrânia. Já no caso do trigo, o abastecimento é feito sobretudo a partir de França.

Portugal produz atualmente 18% dos cereais que consome. E apesar de “não ter condições naturais, de solo e de clima para poder ser competitivo com outras geografias, até ao nível da Europa”, a ministra lembra que há um plano para aumentar a autossuficiência até aos 38%, através de incentivos financeiros aos produtores para que invistam, “seja do ponto de vista da inovação, do desenvolvimento tecnológico, para melhorar a qualidade dos solos, que são pobres, seja para a disponibilização de água” para haver “cereais regados”.

Antes da guerra, a Ucrânia era um dos maiores exportadores mundiais de cereais e fertilizantes agrícolas, sendo os bens alimentares ali produzidos (trigo, milho, girassol, soja, colza ou cevada) considerados cruciais para a segurança alimentar de áreas como o Médio Oriente e o norte de África. A maioria destas mercadorias era expedida da antiga República Soviética para o resto do mundo através dos portos do Mar Negro. Por isso, foi com o objetivo de abrir uma passagem marítima nestes portos para a saída de cereais da Ucrânia que Martin Griffiths, responsável pela ajuda humanitária das Nações Unidas, foi a Moscovo. E, no dia 3 de junho, durante uma entrevista televisiva,  Putin disse que essa exportação “não é um problema”, sugerindo que o melhor seria fazê-lo através da Bielorrússia, levantando as sanções ocidentais a este país.

Na reunião realizada nos fins de maio e principais de junho, em Bruxelas, como resumiu o primeiro-ministro português, o Conselho Europeu manifestou todo o apoio para os esforços que as Nações Unidas e o seu secretário-geral têm vindo a desenvolver com vista a “poder assegurar-se a reabertura dos portos da Ucrânia e encontrar rotas de escoamento destas produções agrícolas, de forma a termos uma resposta global a esta situação”.

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Tudo isto me faz reler o livro de Aquilino Ribeiro “É a Guerra”, em que ganha proeminência a crítica ao que era na altura o ministro da Legação de Portugal em Paris, João Chagas. 

É o retrato pessoal e íntimo do autor sobre um dos mais importantes conflitos da História, a Primeira Grande Guerra. No momento da sua deflagração, a partir de Paris, onde vivia, Aquilino, que estava contra a guerra e contra a participação de Portugal nela, reflete sobre a sua aproximação e os momentos que lhe marcaram o início. É um testemunho essencial sobre a guerra e os valores a ela associados. Com efeito, como diz Mário Cláudio, no prefácio, “o ódio ao sectarismo, e o amor à liberdade, a empatia com o indivíduo, e a irritação com a turba, rasgando fundíssimos traços do seu caráter, revelar-se-iam em paralelo com um impagável espírito de humor”.

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Enfim, nunca mais a guerra! Mas os decisores parecem não saber fazer outra coisa…

2022.06.04 – Louro de Carvalho

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