quarta-feira, 8 de dezembro de 2021

A palavra de Francisco partir de Roma a 8 de dezembro de 2021

 
Longe da multidão que usualmente se junta para o efeito na tarde de 8 de dezembro e sem texto formal recitado em voz alta ou declamado em coro, mercê da persistência da pandemia, Francisco esteve logo de manhã (às 6,15 horas) frente à estátua mariana no centro de Roma, Praça de Espanha (ou Praça Mignanelli), para um ato privado de veneração à Virgem Maria.
O Pontífice pediu à Senhora “o milagre da cura para os povos que sofrem severamente com as guerras e a crise climática” e “da conversão, para que Ela desfaça o coração de pedra dos que erigem muros para distanciarem de si mesmos a dor dos outros”. Logo a seguir, foi à Basílica de Santa Maria Maggiore, onde continuou a oração ante o ícone de Maria Salus Populi Romani.
O veículo com Francisco a bordo chegou à Praça Mignanelli – onde se ergue em frente da embaixada de Espanha o monumento dedicado à Imaculada Conceição – àquela matutina numa cidade eterna adormecida à temperatura de 4°C e um céu ainda tingido dum azul nebuloso. Havia somente a presença de bombeiros, de alguns comerciantes que levantavam as persianas e de um pequeno grupo de fotógrafos e fiéis, um dos quais quebrou o silêncio para gritar: “Papa Francisco, vemo-nos ao meio-dia na Praça de São Pedro”.
A passo lento, cabeça inclinada e com uma cesta de rosas brancas, o Santo Padre, mal saiu do carro, caminhou em direção à estátua da Virgem Maria, para Lhe prestar homenagem na Solenidade da Imaculada Conceição. Deteve-se ali por alguns momentos em oração, sozinho, de mãos postas, a rezar à Santa Mãe de Deus.
É uma tradição dos Papas que já dura 60 anos, a de o Pontífice ir aos pés da efígie mariana tão querida pelo povo de Roma e deter-se em oração. Todavia, a pandemia da covid-19 e as subsequentes restrições alteraram a evocativa celebração que sempre reuniu grandes multidões ao redor do Bispo de Roma. Em 2020, a fim de evitar multidões, o Papa anunciou que prestaria homenagem à Imaculada Conceição com uma celebração privada, mas depois, indo à praça ao alvorecer, deixou todos surpresos. E este ano, no contexto do número crescente de contágios, foi anunciado, em 27 de novembro, que o Papa não presidiria à cerimónia tradicional na Praça de Espanha, mas que faria “um ato privado de devoção, rezando a Nossa Senhora para proteger os romanos, a cidade em que eles vivem e os doentes que precisam de sua proteção materna no mundo inteiro”. Porém, nem desta feita, Francisco abriu mão da sua visita ao monumento dedicado a Nossa Senhora, cuja estátua mariana fica no alto da antiga coluna romana, a que, por tradição, todos os anos um polícia sobe com uma escada mecânica por cerca de 10 metros para colocar uma grinalda de flores no braço da Virgem. O Papa depôs rosas brancas aos pés da estátua, permanecendo em oração silenciosa com o olhar voltado para o alto. Menos de 10 minutos depois, dirigiu-se para a Basílica de Santa Maria Maggiore com a mesma discrição.
As poucas pessoas presentes na praça – algumas das quais chegaram por volta das 5,30 horas, lembradas da surpresa do ano passado – atrás das barreiras de proteção aplaudiram e tiraram fotos com telemóveis. E uma mulher bradou: “Papa Francisco, Santo Padre!”.
Francisco permaneceu à distância, mas, antes de entrar no carro, quis saudar a embaixadora espanhola junto à Santa Sé, María del Carmen de la Peña Corcuera, em frente à porta do Palácio Monaldeschi (sede da embaixada), e funcionários a quem explicou ter querido vir também este ano neste horário não habitual para evitar multidões e possível contágio.
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Desde o início de seu pontificado, seguindo os passos dos seus predecessores, Bergoglio tem demonstrado grande devoção ao monumento mariano criado pelo arquiteto Luigi Poletti e pelo escultor Giuseppe Obici, em homenagem ao dogma da Imaculada Conceição proclamado por Pio IX em 1854 com a constituição Ineffabilis Deus. Foi o próprio Papa Mastai que pretendeu erguer uma estátua em Roma para recordar o evento às gerações futuras. E escolheu o lugar tido por mais adequado e simbólico: a praça em frente à Embaixada da Espanha junto da Santa Sé, visto que foi no país ibérico que floresceu a mais profunda devoção à Imaculada Conceição. Foi então construída uma varanda no Palácio de Espanha para o Pontífice assistir à inauguração.
Foi utilizada para a escultura uma coluna romana: um pedaço de mármore de cerca de 12 metros de altura e 1,45 metros de diâmetro, encontrado em 1777 durante os trabalhos num edifício pertencente às monjas beneditinas de Santa Maria em Campomarzio. O trabalho foi financiado por Fernando II, Rei das Duas Sicílias, como gesto de reconciliação com a Igreja. A colocação da pedra fundamental ocorreu em 6 de maio de 1855, com a bênção do cardeal Giacomo Filippo Franzoni, prefeito de Propaganda Fide, cuja sede fica bem em frente ao monumento. Foram necessários 200 bombeiros para levantar a coluna na noite de 18 de dezembro de 1856 e, 8 meses depois, foi-lhe colocada em cima a estátua de bronze da Virgem.
O primeiro a prestar homenagem à estátua foi o Papa Venerável Pio XII, que enviou flores brancas na festa da Imaculada Conceição, e depois, em 8 de dezembro de 1953, para a abertura do Ano Mariano, foi pessoalmente à Praça de Espanha.
Contudo, o Ato de Veneração, como é conhecido foi ideia de São João XXIII que os Papas posteriores seguiram. O primeiro foi o seu direto sucessor São Paulo VI, que rezou aos pés da Virgem Maria no encerramento do Concílio Vaticano II, a 8 de dezembro de 1965, e que, durante a crise do petróleo, foi até ali numa carruagem. São João Paulo II e Bento XVI também nunca faltaram a esta visita, estruturando-a num breve rito: oração feita ante as autoridades da cidade, colocação de flores e leitura duma passagem da Sagrada Escritura. Esta tradição foi mantida por Francisco que, a esta etapa, acrescentou a visita a Santa Maria Maggiore, onde se mantém o ícone mariano da Salus Populi Romani, considerado a patrona e protetora de toda a Roma e que a tradição afirma ter sido pintado por São Lucas.
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Ao término da oração mariana do Angelus, na Solenidade da Imaculada Conceição de Maria, o Papa recordou a viagem apostólica a Chipre e à Grécia, de 2 a 6 deste mês – a sua 35.ª viagem apostólica internacional – e exortou a não nos deixarmos vencer pela indiferença diante dos irmãos que sofrem, mas não deixando de agradecer ao Senhor e a todas as pessoas que o acompanharam com as suas orações, bem como às populações dos dois países, suas autoridades civis e religiosas, pelo afeto e gentileza com que o receberam.
De Chipre disse que “é uma pérola no Mediterrâneo, uma pérola de rara beleza, mas carrega a ferida do arame farpado, a dor por um muro que a divide”. Lá sentiu-se em família, vendo irmãos e irmãs em todos, mas carrega “no coração cada encontro, em particular a Missa no estádio de Nicósia”. E confidenciou:
Fiquei emocionado com o meu querido irmão ortodoxo Chrysostomos, quando me falou da Igreja Mãe: como cristãos seguimos diferentes caminhos, mas somos filhos da Igreja de Jesus, que é Mãe e nos acompanha, nos protege, nos faz seguir adiante, todos irmãos. O meu desejo para Chipre é que seja sempre um laboratório de fraternidade onde o encontro prevaleça sobre o confronto, onde se acolhe o irmão, sobretudo quando pobre, descartado, emigrado. Repito que, diante da história, diante dos rostos daqueles que emigram, não nos podemos calar, não podemos olhar para o outro lado.”. 
O Santo Padre frisou que, em Chipre e em Lesbos, pôde olhar nos olhos este sofrimento. Por isso, apelou a que “olhemos nos olhos os descartados que encontramos”, nos deixemos provocar “pelos rostos das crianças, filhos de migrantes desesperados”, nos deixemos “comover pelo sofrimento deles para reagir à nossa indiferença” e olhemos para os seus rostos, para nos despertarmos do sono do hábito”.
Em seguida, o seu olhar voltou-se para a Grécia, segunda etapa desta viagem. Francisco disse pensar com gratidão no país helénico, onde também recebeu fraterno acolhimento. E explicitou:
Em Atenas senti-me imerso na grandeza da história, naquela memória da Europa: humanismo, democracia, sabedoria, fé. Também ali vivi a mística do estar juntos: no encontro com os irmãos bispos e a comunidade católica, na Missa festiva celebrada no Dia do Senhor, e depois com os jovens que vieram de tantos lugares, alguns de muito longe, para viver e compartilhar a alegria do Evangelho.
Em seguida, o Pontífice evocou o abraço ao querido arcebispo ortodoxo Ieronymos:
Primeiro, recebeu-me em sua casa e, no dia seguinte, veio visitar-me. Guardo no coração esta fraternidade. Confio à Santa Mãe de Deus as muitas sementes de encontro e de esperança que o Senhor espalhou nesta peregrinação. Peço-vos que continueis a rezar para que possam germinar na paciência e florescer na confiança.”.
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Por fim, o Pontífice salientou que este 8 de dezembro marca o encerramento do Ano dedicado a São José, Patrono universal da Igreja. E que, no dia 10 de dezembro, o Jubileu de Loreto chegará ao fim. Pelo que rogou em forma de oração:
Que a graça desses eventos continue a operar em nossas vidas e nas das nossas comunidades. Que a Virgem Maria e São José nos guiem no caminho da santidade!”.
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É, entretanto, de referir algo do teor da alocução papal antes da recitação do Angelus, em que Francisco perorou sobre a verdadeira humildade e a santidade na vida diária. Falando do anúncio a Maria, o Pontífice recordou que o anúncio “aconteceu dentro da casa em Nazaré, onde a pessoa se revela melhor que em qualquer outro lugar” e acrescentou que é “nessa intimidade doméstica que o Evangelho de Lucas (Lc 1,26-38) nos dá um detalhe que revela a beleza do coração de Maria”. Observou que o anjo A chamou de “cheia de graça” e isso significa “que Nossa Senhora não traz consigo o mal, está sem pecado, é Imaculada”. Ela, segundo o Papa, não só está surpresa, mas perturbada, pois “receber grandes saudações, honras e elogios, às vezes, traz o risco de provocar vanglória e presunção”. E Francisco adverte que “Jesus não é gentil com aqueles que procuram saudações nas praças, adulação, visibilidade”.
Maria, ao invés, não Se exalta, mas fica perturbada; em vez de sentir prazer, sente-Se maravilhada. A saudação do anjo parece maior do que Ela. Porquê? Porque Ela Se sente pequena por dentro. E esta pequenez, esta humildade atrai o olhar de Deus.”.
Refletindo sobre a atitude de Maria, o Papa disse:
Não atribui prerrogativas a Si mesma, não reivindica nada, não atribui nada a Si mesma. Não se lisonjeia, não se exalta. Porque, em sua humildade, sabe que recebe tudo de Deus. Portanto está livre de Si mesma, totalmente voltada para Deus e para os outros. Maria Imaculada não tem olhos para Si mesma. Esta é a verdadeira humildade: não ter olhos para si mesmo, mas para Deus e para os outros.”.
A seguir, observou que “naquela casinha em Nazaré batia o maior coração que qualquer criatura já teve”, o que “é uma notícia extraordinária para nós” e explicitou que “o Senhor, para realizar maravilhas, não precisa de grandes meios ou de nossas elevadas capacidades, mas de nossa humildade, de nossa abertura a Ele e aos outros”. E, neste ponto, Francisco esclareceu:
Hoje também Ele quer fazer grandes coisas connosco em nossa vida diária: na família, no trabalho, em nossos ambientes quotidianos. Ali, mais que nos grandes eventos da história, a graça de Deus gosta de agir. Mas acreditamos nisso? Ou pensamos que a santidade é utopia, algo para pessoas especiais, ilusão piedosa incompatível com a vida comum?”.
Depois, o Papa formulou uma exortação de prece a Maria:
Peçamos a Nossa Senhora uma graça: Ela nos liberte da ideia enganosa de que o Evangelho é uma coisa e a vida é outra; Ela nos ilumine com entusiasmo o ideal de santidade, que não é questão de santinhos e estátuas, mas de viver cada dia o que nos acontece com humildade e alegria, livres de nós mesmos, com os olhos voltados para Deus e para o próximo”.
E, por fim, encorajou-nos:
Não percamos a coragem, o Senhor deu-nos boa estrutura para construirmos a santidade na nossa vida diária! E, quando somos assaltados pela dúvida de não sermos bem-sucedidos, pela tristeza de sermos inadequados, deixemo-nos olhar pelos ‘olhos misericordiosos’ de Nossa Senhora, porque ninguém que tenha pedido a sua ajuda jamais foi abandonado!”.
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Também o Papa saudou, neste dia, a Basílica da Sagrada Família, em Barcelona, com uma videomensagem por ocasião da inauguração da torre da Virgem Maria e em que é acesa a estrela que, segundo o sonho do arquiteto Antoni Gaudí, coroa aquela torre da Basílica. E estendeu a saudação, de modo especial, aos mais pobres daquela grande cidade, aos enfermos, aos afetados pela pandemia de covid-19, aos idosos, aos jovens cujo futuro está comprometido por diferentes situações, às pessoas que passam tempos de provação. 
De facto Maria é a “estrela da nova evangelização”. Por isso, levantando os olhos para a estrela que coroa a torre, o Papa insta a contemplar a nossa Mãe, pois “cada vez que olhamos para Maria voltamos a acreditar no caráter revolucionário da ternura e do afeto” (EG).
Celebrando a solenidade da Imaculada, obra-prima em perfeita sintonia com o desígnio de Deus, vinca o Papa que a Virgem Se tornou “a santíssima, humilde, dócil e transparente diante de Deus” e frisou que Gaudí quis que este mistério coroasse o  portal da fé (o primeiro que edificou) para que, reescrevendo a oração à SS.ma Trindade, que reescreve em toda a basílica, aprendamos a ser, como Maria, o templo deste mistério e adorar a Deus em espírito e em verdade.
O Evangelho de Lucas refere-se a Maria como “cheia de graça” (Lc 1,28). Nós o replicamos em cada Ave-Maria que rezamos, sentindo sempre a sua presença materna e afetuosa. Ela está cheia da presença de Deus, que Se fez carne no seu seio. Por isso, Gaudí o coloca no centro do  portal da caridade, oferecendo-nos o Menino Jesus sob o olhar vigilante de José, para que possamos entrar na sua Igreja inflamada de amor a Deus e aos homens. E o Pontífice encoraja-nos a seguir o exemplo de Maria com gestos diários de amor e serviço, desejando que esta estrela que brilha desde hoje no cimo da Torre de Maria nos ilumine para que, desenrolando as contas do rosário, digamos ‘sim’ duma vez por todas à graça do Senhor e dêmos um sonoro ‘não’ ao pecado. 
Simultaneamente roga que Santa Maria proteja as famílias com a sua estrela luminosa. Ela, com o Menino Jesus e São José, viveu situações semelhantes às de tantas famílias de hoje. Gaudí representou-o no  portal da esperança exprimindo, no rosto dos trabalhadores, os sofrimentos e dificuldades que os põem em comunhão com os sofridos pela Sagrada Família, o exílio no Egito de tantos pobres que procuram um futuro melhor ou fogem do mal; a morte de tantos inocentes que se juntam aos de Belém; o descarte de tantos. Portanto, como quer o Papa, oremos para que a Virgem zele por suas casas, escolas, universidades, escritórios, lojas, hospitais e prisões; oremos pelos pobres e excluídos, pois estão no coração de Deus. E, se somos responsáveis ​​pela pobreza e exclusão, aproveitemos o ensejo para nos examinarmos sobre a responsabilidade que temos nisso. Com efeito, como irmãos, temos de cultivar a fraternidade em todas as vertentes, mostrando a todos a força da alegria do Evangelho e exercendo o ímpeto da caridade.
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Enfim, um dia repleto de mensagem!

2021.12.08 – Louro de Carvalho

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