terça-feira, 28 de dezembro de 2021

Natal realiza-se na humildade e espantando o “deveriaquismo”

 

Em discurso à Cúria Romana no encontro para as felicitações de Natal, no passado dia 23, Francisco qualifica este ato como expressão da fraternidade e ensejo para “reflexão e exame de consciência”, para a luz do Verbo encarnado mostrar “quem somos e qual é a nossa missão”.

Considerando o Natal o mistério de Deus que vem ao mundo pela via da humildade (a encarnação é a grande synkatábasis), lamentou que esta época tenha esquecido a humildade ou a tenha limitado a uma forma de moralismo, esvaziando-a da sua força incisiva.

Segundo o Pontífice, “todo o mistério do Natal” se pode resumir na “humildade. De facto, o Evangelho apresenta “um cenário pobre, sóbrio, impróprio para acolher uma mulher que está para dar à luz”. Contudo, o Rei dos reis vem ao mundo, sem dar nas vistas, mas suscitando uma atração misteriosa nos corações de quantos sentem a presença da novidade prestes a mudar a história. Assim pode dizer-se que “a humildade foi a sua porta de entrada e convida-nos, a todos nós, a atravessá-la”, pois, como ensina Santo Inácio, não se pode avançar sem ela.

E, para realçar que a humildade “resulta duma mudança que o próprio Espírito realiza em nós através da história que vivemos”, menciona o caso do general sírio Naaman, famoso no tempo de Eliseu, que asilava, sob a capa do valor e das honras, o terrível drama da lepra, que o revestia interiormente de “uma humanidade frágil, ferida, doente”.

Naaman compreende que “não se pode passar a vida escondendo-se atrás duma armadura, duma função, duma consideração social”, vindo a chegar o momento em que se deseja não viver sob a capa da glória deste mundo, mas na plenitude duma vida sincera, sem armaduras e sem máscaras. Por isso, a partir da sugestão duma escrava, judia prisioneira de guerra, que fala do Deus capaz de curar tais contradições, sai à procura de quem o possa ajudar. E, munido de prata e ouro, chega assim à porta do profeta Eliseu, que lhe pede “o gesto simples de se despir e banhar sete vezes no rio Jordão”, pois, como vinca o Papa só a graça é que salva.

A Naaman tal pedido parece banal, mas as palavras dos servos levam-no mudar de opinião:

Mesmo que o profeta te tivesse mandado uma coisa difícil, não a deverias fazer? Quanto mais agora, ao dizer-te: ‘Lava-te e ficarás curado?’.” (2 Rs 5,13).

E Naaman, com um gesto de humildade, tira a armadura, mergulha nas águas do Jordão “e a sua carne tornou-se como a de uma criança e ficou limpo” (2 Rs 5,14). Sobressai a lição de que “a humildade de expor a própria humanidade, segundo a palavra do Senhor”, obtém a cura.

A história de Naaman sugere que o Natal é tempo da coragem de tirar a própria armadura da importância do cargo, da consideração social, do brilho da glória deste mundo, para assumirmos a nossa humildade. E o exemplo convincente e de maior autoridade é “o do Filho de Deus, que não Se recusa à humildade de ‘descer’ à história fazendo-Se homem”, o menino, frágil, envolto em panos e deitado numa manjedoura” (cf Lc 2,7). De facto, como afirma o Papa, “todos nós, somos leprosos que precisam de ser curados”, sendo o Natal “a memória viva desta certeza”.

Esquecer a nossa humanidade, viver das honras constitui “a tentação perigosa” do “mundanismo espiritual”, “difícil de desmascarar”, porque está encoberta por tudo o que nos tranquiliza: a função, a liturgia, a doutrina, a religiosidade. Jesus vinca a verdade incómoda e desafiadora: “Que aproveita ao homem ganhar o mundo inteiro, se perder a sua vida?” (Mc 8, 36). E o Santo Padre reitera o que escreveu na “Evangelii gaudium”:

Alimenta-se a vanglória de quantos se contentam com ter algum poder e preferem ser generais de exércitos derrotados a simples soldados dum batalhão que continua a lutar. Quantas vezes sonhamos planos apostólicos expansionistas, meticulosos e bem traçados, típicos de generais derrotados! Assim negamos a nossa história de Igreja, que é gloriosa por ser história de sacrifícios, de esperança, de luta diária, de vida gasta no serviço, de constância no trabalho fadigoso, porque todo o trabalho é ‘suor do nosso rosto’. Em vez disso, entretemo-nos vaidosos a falar sobre ‘o que se deveria fazer’ – o pecado do ‘deveriaquismo’ – como mestres espirituais e peritos de pastoral que dão instruções ficando de fora. Cultivamos a nossa imaginação sem limites e perdemos o contacto com a dolorosa realidade do nosso povo fiel.” (n.º 96).

Em vez de impormos aos outros o que entendemos o que eles devem fazer (ficando nós de fora)  “deveriaquismo” – temos de cultivar a humildade como capacidade de sabermos habitar, com realismo, alegria e esperança, “a nossa humanidade, amada e abençoada pelo Senhor, compreendendo que “não devemos envergonhar-nos da nossa fragilidade”. Em contraste com a humildade vem a soberba. A este respeito, o Papa julga oportuno atentar no que escreveu o profeta Malaquias, que nos ajuda, por contraste, a compreender a diferença “entre o caminho da humildade e o da soberba:

Todos os soberbos e todos os que cometem a iniquidade serão como a palha; este dia que vai chegar queimá-los-á – diz o Senhor do universo – e nada ficará deles: nem raiz, nem ramos” (Ml 3,19).

E o profeta, diz o Pontífice, “acerca da pessoa que se deixa levar pela soberba afirma que se encontra privada do que temos de mais importante: as raízes e os ramos”: aquelas sugerem a ligação vital com o passado, donde recebemos a seiva para vivermos no presente; os ramos são o presente que não morre, mas se torna amanhã e futuro. Presente sem raízes e sem ramos “significa viver o fim” e viver “com o sabor amargo da tristeza estéril que se apodera do coração como “o mais precioso elixir do demónio”. Ao invés, como assegura o Papa Bergoglio, “o humilde deixa-se guiar constantemente por dois verbos: ‘recordar as raízes; e ‘gerar fruto das raízes e dos ramos, vivendo assim a jubilosa abertura da fecundidade”.

E o Papa lembra que “recordar é, etimologicamente, “trazer de novo ao coração” a memória viva da Tradição, das raízes, isto é, “gesto interior por meio do qual trazemos constantemente ao coração o que nos precedeu, que atravessou a nossa história, que nos fez chegar até aqui”. Não é repetir, mas “arrecadar, reavivar e, agradecidos, deixar que a força do Espírito Santo nos faça, como aos primeiros discípulos, arder o coração” (cf Lc 24,32). Porém, para não nos tornarmos cativos do passado, precisamos do verbo “gerar. É o que visa o humilde, que tem a peito o futuro, porque sabe olhar para diante e contemplar os ramos com a memória repleta de gratidão. Por isso, “aceita ser posto em questão, abre-se ao novo”, porque se sente forte com o que o precede, as suas raízes, a sua filiação. Assim, como preconiza o Santo Padre, “todos nós somos chamados à humildade, porque somos chamados a recordar e a gerar”, reencontrado “a justa relação com as raízes e com os ramos”. E Jesus, vindo ao mundo pela via da humildade, “desbrava-nos o caminho, indica-nos um estilo de vida, mostra-nos uma meta”, que passa pela humildade de procurar e encontrar “o próximo, o irmão e a irmã que vivem ao nosso lado”.

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A seguir, Francisco evocou o percurso sinodal, iniciado a 17 de outubro e que ocupará a Igreja nos próximos dois anos, para observar que “só a humildade é capaz de nos colocar na justa condição para nos podermos encontrar e ouvir, para dialogar e discernir, para rezar juntos”. Com efeito, se cada um permanece fechado nas próprias convicções e na própria experiência, dificilmente dá espaço à experiência do Espírito que – segundo o Apóstolo – está ligada à convicção de sermos filhos de “um só Deus e Pai de todos, que reina sobre todos, age por todos e permanece em todos(Ef 4,6).

E, sob o quantificador universal “todos”, o Papa escalpeliza a perversa tentação do clericalismo, que se nos insinua a fazer pensar num Deus que fala só a alguns, devendo os outros apenas escutar e cumprir. É o grande inimigo da caminhada sinodal, a qual “procura ser a experiência de nos sentirmos, todos, membros dum conjunto maior, o Santo Povo fiel de Deus”, enfim “discípulos que escutam” e, escutando, compreendem a vontade de Deus, que Se manifesta de forma imprevisível. E Francisco frisa que “a sinodalidade é  estilo a que os primeiros a converter-se” devem ser os que vivem “a experiência do serviço à Igreja universal através do trabalho na Cúria Romana”, avisando que a Cúria “não é apenas um instrumento logístico e burocrático para as necessidades da Igreja universal, mas é o primeiro organismo chamado a dar testemunho”, pelo que, assumindo os desafios da conversão sinodal, faz crescer “a sua credibilidade e eficácia”, pois a organização a implementar é evangélica, não empresarial.

Ora, se a Palavra de Deus recorda ao mundo o valor da pobreza e da justiça, os membros da Cúria devem ser os primeiros a comprometer-se na conversão à sobriedade e a procurar viver com transparência, sem favoritismos nem partidarismos; e, se a Igreja palmilha a via sinodal, a Cúria deve converter-se a um estilo diferente de trabalho, colaboração, comunhão, o que “só é possível pelo caminho da humildade”.

Recordando as três palavras-chave – participação, comunhão e missão – que usou na abertura da assembleia sinodal, nascendo todas dum coração humilde, pois, “sem humildade não se pode efetuar participação, nem comunhão, nem missão”, o Papa apresenta-as como exigências de estilo de humildade a atingir na Cúria.

participação deve expressar-se pelo estilo de corresponsabilidade, embora na diversidade de funções e ministérios, com responsabilidades diferentes, mas postulando o envolvimento de cada um, “corresponsável no trabalho sem se limitar a viver a experiência despersonalizante da execução dum programa estabelecido por outrem”. Ao invés, a criatividade, não raro, manifesta-se “sobretudo onde há e se encontra espaço para todos”, mesmo para quem parece ocupar um lugar marginal. Assim, a autoridade torna-se serviço, quando compartilha e ajuda a crescer.

comunhão não se expressa com maiorias ou minorias, mas nasce da relação com Cristo, pelo que não temos estilo evangélico, se não colocamos Cristo no centro. Muitos trabalham juntos, “mas o que fortalece a comunhão é poderem também rezar juntos, escutar juntos a Palavra, construir relações que vão além do simples trabalho e reforçar os laços bons – os laços bons entre nós –, ajudando-nos uns aos outros” – diz o Pontífice. Sem isto, somos estranhos, concorrentes e até pessoas que fazem assentar as relações na cumplicidade ditada por interesses pessoais, esquecendo-se da causa comum que nos mantém unidos e criando divisões e fações. Já a colaboração “exige a grandeza de se aceitar como parcela e se abrir ao trabalho em grupo, mesmo com quem não pensa como nós”, nunca esquecendo as nossas raízes, o rosto concreto dos que foram os nossos primeiros mestres na fé. A ótica da comunhão implica reconhecer “a diversidade que nos habita como dom do Espírito Santo”, o espírito e a atitude e de serviço e a magnanimidade e generosidade para “viver com alegria a multiforme riqueza do Povo de Deus”.

E a missão salva-nos do fechamento em nós mesmos, que faz olhar de cima e de longe, rejeitando a profecia dos irmãos e fazendo ressaltar “os erros alheios” e viver obcecado pela aparência. Quem se fecha, no dizer do Papa “circunscreveu os pontos de referência do coração ao horizonte fechado da sua imanência e dos seus interesses”, pelo que “não aprende com os seus pecados nem está verdadeiramente aberto ao perdão” (os dois sinais da pessoa fechada). A missão, correspondente à chamada de Deus, inclui sempre a paixão pelos pobres, pelos carentes em termos materiais, espirituais, afetivos, morais. E a Igreja é convidada a ir ao encontro de todas as pobrezas, porque é chamada a pregar o Evangelho a todos e porque se sente carecida dos pobres. Por outro lado, a missão torna-nos vulneráveis, o que nos faz recordar a nossa condição de discípulos e nos permite descobrir sempre de novo a alegria do Evangelho.

Para expressar que participação, missão e comunhão são os traços duma Igreja humilde, que se põe à escuta do Espírito, o Papa cita Henri de Lubac, em “Meditações sobre a Igreja, 352”:

Aos olhos do mundo a Igreja, à semelhança do seu Senhor, tem sempre o aspeto da escrava. Aqui na terra existe sob a forma de serva. (...) Não é uma academia de cientistas, nem um cenáculo de espirituais refinados, nem uma assembleia de super-homens. (...) Aglomeram-se os aleijados, os deformados, os miseráveis de toda a espécie; sobrepõem-se os medíocres (...); ao homem natural, enquanto não acontecer nele uma transformação radical, é difícil, ou melhor impossível, reconhecer neste facto o cumprimento da kenose salvífica, o traço adorável da humildade de Deus.”.

O Papa desejou a todos, incluindo-se a si próprio, a graça de se deixarem evangelizar pela humildade do Natal, do presépio, da pobreza, essencialidade em que o Filho de Deus entrou no mundo. E sublinha que até os Magos, vindos duma condição mais abastada que a de Maria e José ou dos pastores de Belém, ao encontrarem-se ante o Menino, prostram-se (cf Mt 2,11) em adoração e humildade. Põem-se à altura de Deus, prostrando-se. E esta extraordinária kénôsis (esvaziamento)synkatábasis (descida) é a que Jesus efetuará na última noite da sua vida terrena, ao levantar-se da mesa, tirar o manto, tomar a toalha e atá-la à cintura, para deitar água na bacia e lavar os pés aos discípulos e a enxugá-los com a toalha” (cf Jo 13,4-5). Tal gesto provoca a perplexidade e a reação de Pedro, mas Jesus dá aos discípulos a chave de justa interpretação:

Vós chamais-Me ‘o Mestre’ e ‘o Senhor’, e dizeis bem, porque o sou. Ora, se Eu, o Senhor e o Mestre, vos lavei os pés, também vós deveis lavar os pés uns aos outros. Na verdade, dei-vos exemplo, para que, assim como Eu fiz, vós façais também.” (Jo 13,13-15).

Por fim, exortou a que, lembrados da nossa lepra, evitando as lógicas do mundanismo que nos privam de raízes e ramos, nos deixemos evangelizar pela humildade do Menino Jesus, pois, só concebendo o trabalho como serviço, podemos ser verdadeiramente úteis a todos. E explicitou:

Estamos aqui – a começar por mim – para aprender a ajoelhar e adorar o Senhor na sua humildade, e não outros senhores na sua vã opulência. Sejamos como os pastores, sejamos como os Magos, sejamos como Jesus. Eis a lição do Natal: a humildade é a grande condição da fé, da vida espiritual, da santidade. Que o Senhor no-la conceda em dom a partir da primordial manifestação do Espírito em nós: o desejo. O que não temos, podemos ao menos começar a desejá-lo. Peçamos ao Senhor a graça de conseguir desejar, de nos tornarmos homens e mulheres de grandes desejos. E o desejo é já o Espírito a trabalhar dentro de cada um de nós.”.

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Como lembrança de Natal, o Papa ofereceu alguns livros, mas para se lerem: “Converter Peter Pan”, sobre o destino da fé nesta sociedade da eterna juventude, livro provocatório de Mons. Armando Matteo, Subsecretário da Doutrina da Fé, grande teólogo, desconhecido porque muito humilde, que se debruça um pouco sobre um fenómeno social e como provoca a ação pastoral; “A pedra descartada, com o subtítulo “Quando os esquecidos se salvam”, do Padre Luigi Maria Epicoco, sobre personagens secundárias ou esquecidas da Bíblia, servindo para a meditação e oração; e um livro do Núncio Apostólico Mons. Fortunatus Nwachukwu, que reflete sobre a coscuvilhice, a qual faz com que se derreta ou dissolva a identidade.

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É o Natal da humildade, da conversão, da sinodalidade!

2021.12.28 – Louro de Carvalho

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