Em
discurso à Cúria Romana no encontro para as felicitações de Natal, no passado
dia 23, Francisco qualifica este ato como expressão da fraternidade e ensejo
para “reflexão e exame de consciência”,
para a luz do Verbo encarnado mostrar “quem somos e qual é a nossa missão”.
Considerando
o Natal o mistério de Deus que vem ao mundo pela via da humildade (a encarnação é a grande synkatábasis), lamentou que esta época tenha esquecido
a humildade ou a tenha limitado a uma forma de moralismo, esvaziando-a da sua força
incisiva.
Segundo o
Pontífice, “todo o mistério do Natal” se pode resumir na “humildade”. De facto, o Evangelho apresenta “um
cenário pobre, sóbrio, impróprio para acolher uma mulher que está para dar à
luz”. Contudo, o Rei dos reis vem ao mundo, sem dar nas
vistas, mas suscitando uma atração misteriosa nos corações de quantos sentem a
presença da novidade prestes a mudar a história. Assim pode dizer-se que “a
humildade foi a sua porta de entrada e convida-nos, a todos nós, a atravessá-la”,
pois, como ensina Santo Inácio, não se pode avançar sem ela.
E, para
realçar que a humildade “resulta duma mudança que o próprio Espírito realiza em
nós através da história que vivemos”, menciona o caso do general sírio Naaman,
famoso no tempo de Eliseu, que asilava, sob a capa do valor e das honras, o
terrível drama da lepra, que o revestia interiormente de “uma humanidade
frágil, ferida, doente”.
Naaman
compreende que “não se pode passar a vida escondendo-se atrás duma armadura,
duma função, duma consideração social”, vindo a chegar o momento em que se deseja
não viver sob a capa da glória deste mundo, mas na plenitude duma vida sincera,
sem armaduras e sem máscaras. Por isso, a partir da sugestão duma escrava,
judia prisioneira de guerra, que fala do Deus capaz de curar tais contradições,
sai à procura de quem o possa ajudar. E, munido de prata e ouro, chega assim à
porta do profeta Eliseu, que lhe pede “o gesto simples de se despir e banhar
sete vezes no rio Jordão”, pois, como vinca o Papa só a graça é que salva.
A Naaman tal
pedido parece banal, mas as palavras dos servos levam-no mudar de opinião:
“Mesmo
que o profeta te tivesse mandado uma coisa difícil, não a deverias fazer? Quanto
mais agora, ao dizer-te: ‘Lava-te e ficarás curado?’.” (2 Rs 5,13).
E Naaman, com
um gesto de humildade, tira a armadura, mergulha nas águas do Jordão “e a sua
carne tornou-se como a de uma criança e ficou limpo” (2 Rs 5,14). Sobressai a lição de que “a humildade de expor a própria
humanidade, segundo a palavra do Senhor”, obtém a cura.
A história de
Naaman sugere que o Natal é tempo da coragem de tirar a própria armadura da
importância do cargo, da consideração social, do brilho da glória deste mundo,
para assumirmos a nossa humildade. E o exemplo convincente e de maior
autoridade é “o do Filho de Deus, que não Se recusa à humildade de ‘descer’ à
história fazendo-Se homem”, o menino, frágil, envolto em panos e deitado numa
manjedoura” (cf Lc 2,7). De facto, como afirma o Papa, “todos
nós, somos leprosos que precisam de ser curados”, sendo o Natal “a memória viva
desta certeza”.
Esquecer a
nossa humanidade, viver das honras constitui “a tentação perigosa” do “mundanismo
espiritual”, “difícil de desmascarar”, porque está encoberta por tudo o que nos
tranquiliza: a função, a liturgia, a doutrina, a religiosidade. Jesus vinca a verdade
incómoda e desafiadora: “Que aproveita ao
homem ganhar o mundo inteiro, se perder a sua vida?” (Mc 8, 36). E o Santo Padre reitera o que escreveu na “Evangelii gaudium”:
“Alimenta-se
a vanglória de quantos se contentam com ter algum poder e preferem ser generais
de exércitos derrotados a simples soldados dum batalhão que continua a lutar.
Quantas vezes sonhamos planos apostólicos expansionistas, meticulosos e bem
traçados, típicos de generais derrotados! Assim negamos a nossa história de
Igreja, que é gloriosa por ser história de sacrifícios, de esperança, de luta
diária, de vida gasta no serviço, de constância no trabalho fadigoso, porque
todo o trabalho é ‘suor do nosso rosto’. Em vez disso, entretemo-nos vaidosos a
falar sobre ‘o que se deveria fazer’ – o pecado do ‘deveriaquismo’ – como
mestres espirituais e peritos de pastoral que dão instruções ficando de fora.
Cultivamos a nossa imaginação sem limites e perdemos o contacto com a dolorosa
realidade do nosso povo fiel.” (n.º 96).
Em vez de impormos aos outros o que entendemos o que eles devem fazer (ficando nós de fora) – “deveriaquismo” – temos de cultivar a humildade como capacidade de sabermos habitar, com realismo, alegria e esperança, “a nossa humanidade”, amada e abençoada pelo Senhor, compreendendo que “não devemos envergonhar-nos da nossa fragilidade”. Em contraste com a humildade vem a soberba. A este respeito, o Papa julga oportuno atentar no que escreveu o profeta Malaquias, que nos ajuda, por contraste, a compreender a diferença “entre o caminho da humildade e o da soberba:
“Todos
os soberbos e todos os que cometem a iniquidade serão como a palha; este dia
que vai chegar queimá-los-á – diz o Senhor do universo – e nada ficará deles:
nem raiz, nem ramos” (Ml 3,19).
E o profeta,
diz o Pontífice, “acerca da pessoa que se deixa levar pela soberba afirma que
se encontra privada do que temos de mais importante: as raízes e os ramos”:
aquelas sugerem a ligação vital com o passado, donde recebemos a seiva para
vivermos no presente; os ramos são o presente que não morre, mas se torna
amanhã e futuro. Presente sem raízes e sem ramos “significa viver o fim” e viver
“com o sabor amargo da tristeza estéril que se apodera do coração como “o mais
precioso elixir do demónio”. Ao invés, como assegura o Papa Bergoglio, “o
humilde deixa-se guiar constantemente por dois verbos: ‘recordar’ as raízes; e ‘gerar’ fruto das raízes e dos ramos,
vivendo assim a jubilosa abertura da fecundidade”.
E o Papa lembra que “recordar” é, etimologicamente, “trazer de novo ao coração”
a memória viva da Tradição, das raízes, isto é, “gesto interior por meio do
qual trazemos constantemente ao coração o que nos precedeu, que atravessou a
nossa história, que nos fez chegar até aqui”. Não é repetir, mas “arrecadar,
reavivar e, agradecidos, deixar que a força do Espírito Santo nos faça, como
aos primeiros discípulos, arder o coração” (cf Lc 24,32). Porém, para não nos tornarmos
cativos do passado, precisamos do verbo “gerar”. É o que visa o humilde, que tem a peito o futuro, porque sabe
olhar para diante e contemplar os ramos com a memória repleta de gratidão. Por
isso, “aceita ser posto em questão, abre-se ao novo”, porque se sente forte com
o que o precede, as suas raízes, a sua filiação. Assim, como preconiza o Santo
Padre, “todos nós somos chamados à humildade, porque somos chamados a recordar
e a gerar”, reencontrado “a justa relação com as raízes e com os ramos”. E Jesus,
vindo ao mundo pela via da humildade, “desbrava-nos o caminho, indica-nos um
estilo de vida, mostra-nos uma meta”, que passa pela humildade de procurar e
encontrar “o próximo, o irmão e a irmã que vivem ao nosso lado”.
***
A seguir,
Francisco evocou o percurso sinodal, iniciado a 17 de outubro e que ocupará a
Igreja nos próximos dois anos, para observar que “só a humildade é capaz de nos
colocar na justa condição para nos podermos encontrar e ouvir, para dialogar e
discernir, para rezar juntos”. Com efeito, se cada um permanece fechado nas próprias
convicções e na própria experiência, dificilmente dá espaço à experiência do
Espírito que – segundo o Apóstolo – está ligada à convicção de sermos filhos de
“um só Deus e Pai de todos, que reina
sobre todos, age por todos e permanece em todos” (Ef 4,6).
E, sob o
quantificador universal “todos”, o Papa escalpeliza a perversa tentação do
clericalismo, que se nos insinua a fazer pensar num Deus que fala só a alguns,
devendo os outros apenas escutar e cumprir. É o grande inimigo da caminhada
sinodal, a qual “procura ser a experiência de nos sentirmos, todos, membros dum
conjunto maior, o Santo Povo fiel de Deus”, enfim “discípulos que escutam” e,
escutando, compreendem a vontade de Deus, que Se manifesta de forma
imprevisível. E Francisco frisa que “a sinodalidade é estilo a que
os primeiros a converter-se” devem ser os que vivem “a experiência do serviço à
Igreja universal através do trabalho na Cúria Romana”, avisando que a Cúria “não
é apenas um instrumento logístico e burocrático para as necessidades da Igreja
universal, mas é o primeiro organismo chamado a dar testemunho”, pelo que,
assumindo os desafios da conversão sinodal, faz crescer “a sua credibilidade e
eficácia”, pois a organização a implementar é evangélica, não empresarial.
Ora, se a
Palavra de Deus recorda ao mundo o valor da pobreza e da justiça, os membros da
Cúria devem ser os primeiros a comprometer-se na conversão à sobriedade e a
procurar viver com transparência, sem favoritismos nem partidarismos; e, se a
Igreja palmilha a via sinodal, a Cúria deve converter-se a um estilo diferente
de trabalho, colaboração, comunhão, o que “só é possível pelo caminho da
humildade”.
Recordando as
três palavras-chave – participação, comunhão e missão – que usou na abertura da
assembleia sinodal, nascendo todas dum coração humilde, pois, “sem humildade
não se pode efetuar participação, nem comunhão, nem missão”, o Papa
apresenta-as como exigências de estilo de humildade a atingir na Cúria.
A participação
deve expressar-se pelo estilo de corresponsabilidade, embora na diversidade de
funções e ministérios, com responsabilidades diferentes, mas postulando o
envolvimento de cada um, “corresponsável no trabalho sem se limitar a viver a
experiência despersonalizante da execução dum programa estabelecido por outrem”.
Ao invés, a criatividade, não raro, manifesta-se “sobretudo onde há e se
encontra espaço para todos”, mesmo para quem parece ocupar um lugar marginal. Assim,
a autoridade torna-se serviço, quando compartilha e ajuda a crescer.
A comunhão
não se expressa com maiorias ou minorias, mas nasce da relação com Cristo, pelo
que não temos estilo evangélico, se não colocamos Cristo no centro. Muitos
trabalham juntos, “mas o que fortalece a comunhão é poderem também rezar
juntos, escutar juntos a Palavra, construir relações que vão além do simples
trabalho e reforçar os laços bons – os laços bons entre nós –, ajudando-nos uns
aos outros” – diz o Pontífice. Sem isto, somos estranhos, concorrentes e até
pessoas que fazem assentar as relações na cumplicidade ditada por interesses
pessoais, esquecendo-se da causa comum que nos mantém unidos e criando divisões
e fações. Já a colaboração “exige a grandeza de se aceitar como parcela e se
abrir ao trabalho em grupo, mesmo com quem não pensa como nós”, nunca
esquecendo as nossas raízes, o rosto concreto dos que foram os nossos primeiros
mestres na fé. A ótica da comunhão implica reconhecer “a diversidade que nos
habita como dom do Espírito Santo”, o espírito e a atitude e de serviço e a
magnanimidade e generosidade para “viver com alegria a multiforme riqueza do
Povo de Deus”.
E a missão
salva-nos do fechamento em nós mesmos, que faz olhar de cima e de longe,
rejeitando a profecia dos irmãos e fazendo ressaltar “os erros alheios” e viver
obcecado pela aparência. Quem se fecha, no dizer do Papa “circunscreveu os
pontos de referência do coração ao horizonte fechado da sua imanência e dos
seus interesses”, pelo que “não aprende com os seus pecados nem está
verdadeiramente aberto ao perdão” (os dois sinais da pessoa fechada). A missão, correspondente à chamada
de Deus, inclui sempre a paixão pelos pobres, pelos carentes em termos materiais,
espirituais, afetivos, morais. E a Igreja é convidada a ir ao encontro de todas
as pobrezas, porque é chamada a pregar o Evangelho a todos e porque se sente
carecida dos pobres. Por outro lado, a missão torna-nos vulneráveis, o que nos
faz recordar a nossa condição de discípulos e nos permite descobrir sempre de
novo a alegria do Evangelho.
Para expressar
que participação, missão e comunhão são os traços duma Igreja humilde, que se
põe à escuta do Espírito, o Papa cita Henri de Lubac, em “Meditações sobre a
Igreja, 352”:
“Aos
olhos do mundo a Igreja, à semelhança do seu Senhor, tem sempre o aspeto da
escrava. Aqui na terra existe sob a forma de serva. (...) Não é uma academia de
cientistas, nem um cenáculo de espirituais refinados, nem uma assembleia de
super-homens. (...) Aglomeram-se os aleijados, os deformados, os miseráveis de
toda a espécie; sobrepõem-se os medíocres (...); ao homem natural, enquanto não
acontecer nele uma transformação radical, é difícil, ou melhor impossível,
reconhecer neste facto o cumprimento da kenose salvífica, o
traço adorável da humildade de Deus.”.
O Papa desejou
a todos, incluindo-se a si próprio, a graça de se deixarem evangelizar pela
humildade do Natal, do presépio, da pobreza, essencialidade em que o Filho de
Deus entrou no mundo. E sublinha que até os Magos, vindos duma condição mais
abastada que a de Maria e José ou dos pastores de Belém, ao encontrarem-se ante
o Menino, prostram-se (cf Mt 2,11) em adoração e humildade. Põem-se à
altura de Deus, prostrando-se. E esta extraordinária kénôsis (esvaziamento) e synkatábasis (descida) é a que Jesus efetuará na última
noite da sua vida terrena, ao levantar-se da mesa, tirar o manto, tomar a
toalha e atá-la à cintura, para deitar água na bacia e lavar os pés aos
discípulos e a enxugá-los com a toalha” (cf Jo 13,4-5). Tal gesto provoca a perplexidade e
a reação de Pedro, mas Jesus dá aos discípulos a chave de justa interpretação:
“Vós
chamais-Me ‘o Mestre’ e ‘o Senhor’, e dizeis bem, porque o sou. Ora, se Eu, o
Senhor e o Mestre, vos lavei os pés, também vós deveis lavar os pés uns aos
outros. Na verdade, dei-vos exemplo, para que, assim como Eu fiz, vós façais
também.” (Jo 13,13-15).
Por fim,
exortou a que, lembrados da nossa lepra, evitando as lógicas do mundanismo que
nos privam de raízes e ramos, nos deixemos evangelizar pela humildade do Menino
Jesus, pois, só concebendo o trabalho como serviço, podemos ser verdadeiramente
úteis a todos. E explicitou:
“Estamos
aqui – a começar por mim – para aprender a ajoelhar e adorar o Senhor na sua
humildade, e não outros senhores na sua vã opulência. Sejamos como os pastores,
sejamos como os Magos, sejamos como Jesus. Eis a lição do Natal: a humildade é
a grande condição da fé, da vida espiritual, da santidade. Que o Senhor no-la
conceda em dom a partir da primordial manifestação do Espírito em nós: o
desejo. O que não temos, podemos ao menos começar a desejá-lo. Peçamos ao
Senhor a graça de conseguir desejar, de nos tornarmos homens e mulheres de
grandes desejos. E o desejo é já o Espírito a trabalhar dentro de cada um de
nós.”.
***
Como lembrança
de Natal, o Papa ofereceu alguns livros, mas para se lerem: “Converter Peter
Pan”, sobre o
destino da fé nesta sociedade da eterna juventude, livro provocatório
de Mons. Armando Matteo, Subsecretário da Doutrina da Fé, grande teólogo,
desconhecido porque muito humilde, que se debruça um pouco sobre um fenómeno
social e como provoca a ação pastoral; “A pedra descartada”, com o subtítulo “Quando os
esquecidos se salvam”, do Padre Luigi Maria Epicoco, sobre personagens
secundárias ou esquecidas da Bíblia, servindo para a meditação e oração; e um
livro do Núncio Apostólico Mons. Fortunatus Nwachukwu, que reflete sobre a
coscuvilhice, a qual faz com que se derreta ou dissolva a identidade.
***
É o Natal da humildade,
da conversão, da sinodalidade!
2021.12.28 – Louro de Carvalho
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