quarta-feira, 29 de dezembro de 2021

Inacreditável atropelo à dignidade humana

 

Após buscas da PJ (Polícia Judiciária) e do DCIAP (Departamento Central de Investigação e Ação Penal), a 3 de novembro, na casa de Maria de Jesus Rendeiro, mulher de João Rendeiro, de Florêncio Almeida, ex-motorista do ex-presidente do BPP, e de seu pai, presidente da ANTRAL, Florêncio Plácido de Almeida, a mulher do ex-banqueiro, então foragido à justiça em parte incerta, foi detida no âmbito de um mandato de detenção do MP (Ministério Público) e, tendo passado a noite na cadeia de Tires, foi presente a juíza de instrução criminal para interrogatório e definição da medida de coação a que ficaria sujeita. Em causa estavam: falsificação e desaparecimento de obras de artes arrestadas pela Justiça, branqueamento de capitais e a aquisição de um imóvel a Rendeiro, abaixo do preço do mercado, em 2015.

Entretanto, soube-se que Maria de Jesus fora condenada em processo judicial, não processo-crime, “pela sua atuação excecionalmente grave e desconforme aos deveres a que ficou adstrita” (de fiel depositária dos objetos apreendidos a 11.11.2010), “no pagamento de multa processual em montante equivalente ao máximo legal de 10 unidades de conta. Além disso, o tribunal atribuiu-lhe o encargo das custas judiciais, “sendo a taxa de justiça no valor de 5 unidades de conta” (o atual valor da unidade de conta é de 102 euros).

Esta decisão do tribunal não dá seguimento ao pedido de arresto de bens por não se vislumbrar que possa ser atendido antes do trânsito em julgado do acórdão condenatório de maio de 2021, em que João Rendeiro foi condenado a 10 anos de prisão efetiva. Neste processo, a esposa de Rendeiro não é arguida, nem se trata de processo-crime. Contudo, foi extraída certidão para o MP com vista a eventual inquérito-crime.

De acordo com o DCIAP, “por se ter considerado existir um forte perigo de fuga, para a aquisição e conservação da prova e para a descoberta da verdade, contra uma suspeita foram emitidos e cumpridos mandados de detenção para ser apresentada, no prazo de 48 horas, a primeiro interrogatório judicial com vista à aplicação de medidas de coação adequadas”.

Dezenas de inspetores da UNCC (Unidade Nacional de Combate à Corrupção) da PJ e procuradores do DCIAP realizaram buscas na Quinta Patiño, em Cascais, na casa de Maria de Jesus Rendeiro, e nas habitações de Florêncio de Almeida, presidente da ANTRAL, a principal associação de taxistas, e do seu filho, com o mesmo nome, que foi motorista de Rendeiro durante alguns anos.

No total foram 9 mandados de busca domiciliária e de 8 mandados de busca não domiciliária. De acordo com a PJ, a ação desenvolveu-se em Lisboa, Oeiras, Estoril e Alcáçovas, contando com a participação de cerca de 50 inspetores e peritos da PJ.

As autoridades suspeitam que esteja em causa o crime de branqueamento de capitais e de descaminho, relacionados com fundos que se suspeita terem sido retirados do BPP (Banco Privado Português), bem como com as obras de arte apreendidas a Rendeiro no âmbito de processo no qual se encontra condenado, pelo que, segundo o DCIAP, a operação desencadeada “D’Arte Asas” visava “a recolha da prova dos factos e a recuperação de produto do crime”.

Segundo a TVI,  está em causa o facto de as autoridades suspeitarem que o ex-motorista de Rendeiro comprou um apartamento na Quinta Patino, em Cascais, junto à mansão do patrão, por 1,1 milhões de euros, a pronto pagamento, cedendo depois o seu usufruto à mulher de Rendeiro. Esta compra, que terá sido feita com o dinheiro de João Rendeiro, ocorreu apenas 7 dias depois de o mesmo motorista ter vendido uma outra casa em Lisboa, que também era de Rendeiro.

Assim, após interrogatório no TIC (Tribunal de Instrução Criminal), a 4 de novembro, Maria de Jesus ficou em prisão domiciliária com vigilância eletrónica, medida de privativa da liberdade por o TIC considerar existir perigo de fuga, perigo de perturbação do inquérito-investigação e perigo de continuação da atividade criminosa. Além disso, a suspeita viu ser-lhe aplicada como medida de coação a proibição de contactar com o presidente da Antral, Florêncio Plácido de Almeida e com o filho deste. Tudo isto, porque o tribunal confirma que a arguida é suspeita dos crimes de descaminho, desobediência branqueamento de capitais e falsificação de documento.

Sabe-se que Maria Rendeiro só não ficou em prisão preventiva porque no interrogatório colaborou com as autoridades ao revelar que o marido estava na África do Sul, o que parece abstruso, pois o diretor nacional da PJ, aquando da detenção de Rendeiro em Durban, disse Urbi et Orbi que a polícia já sabia, antes de a esposa o ter revelado, do paradeiro do foragido.

Não me parece que o referido processo de detenção da arguida e subsequente definição da medida de coação a que está sujeita tenha infirmado de irregularidades. Aliás, a verificarem-se, ter-se-iam as vozes quer do MP quer da defesa, pelas vias da reclamação e/ou do recurso.

Porém, o que sucedeu mais recentemente é deveras lamentável.

Como qualquer cidadão, a arguida tem direito à saúde e, no quadro da pandemia que perpassa o país, à vacinação contra a covid-19. Por isso, independentemente de quem foi a iniciativa – seja contacto do centro de vacinação respetivo, da ARS, da Saúde 24 ou da competente unidade local de saúde, seja autoagendamento ou casa aberta – Maria Rendeiro deslocou-se ao seu centro de vacinação, obviamente sob escuta policial, como requerido. Ao mesmo tempo, os serviços policiais encarregados da vigilância da arguida sujeita a prisão domiciliária controlada por pulseira eletrónica deram conhecimento à competente juíza de instrução criminal (JIC). Tudo em plena normalidade, pensava-se.

Todavia, a referida juíza, mal teve conhecimento do “desmando” (chamemos-lhe assim), proferiu douto despacho a censurar a deslocação da arguida para fora da sua residência e a mandar o ralhete à polícia cujo papel era supostamente vigiar o cumprimento da medida de coação e, se eventualmente o alarme disparasse por deslocação da arguida do raio de ação permitido pela pulseira, deveria atuar de imediato.

A meritíssima faz questão de assegurar que o seu poder se sobrepõe a tudo e a todos. Trata-se, a meu ver, dum absolutismo desadequado e desnecessário. Mais parece a saga televisiva de há tempos “Eu é que sou o presidente da junta”, a afirmação dos diretores de serviço que lembram a cada passo aos dirigidos “Eu é que sou o diretor” ou a postura de Marcelo ao dizer “A última palavra é a do Presidente”.  

O facto de a Constituição estipular que as decisões dos tribunais “prevalecem sobre as de quaisquer outras autoridades” (CRP, art.º 205.º) não dá aos juízes poder absoluto e inquestionável.

Com efeito, todo o ser humano, mesmo que recluso por via de sentença condenatória, é uma pessoa, pelo que não pode deixar de lhe ser reconhecida e respeitada a dignidade de pessoa humana, bem como de se lhe prover ao mínimo de bem estar-físico e psicológico. Já lhe basta a privação da liberdade. E, no caso vertente, não se trata de um condenado por crime, nem sequer duma acusação formalizada; trata-se apenas de uma arguida sujeita a medida de coação cuja proporcionalidade pode ser discutida, cujos motivos podem não corresponder à realidade dos factos ou das intenções e cujos móbeis de inquérito podem carecer de prova. Impedir ou censurar a ida da arguida à vacinação, significa desrespeito pela dignidade e saúde duma pessoa, desvalorização da segurança oferecida pela polícia ou capricho porque tal não decorreu de despacho prévio da JIC.

Originariamente, o papel da fase de instrução e, ao que parece, nos dias atuais, está atrelado ao exercício facultativo de controlo judicial da decisão tomada pelo MP de acusação ou arquivamento. Segundo o n.º 1 do art.º 286.º do CPP, “a instrução visa à comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento”. A fase de instrução é precedida pela investigação criminal dirigida pelo MP, que se manifesta acerca da existência do crime e da correspondente responsabilidade do investigado. Estas tarefas, da competência do MP, devem ser exercidas orientadas pelo princípio da legalidade, consoante o disposto nos n.os 1 e 2 do art.º 219.º e em observância a critérios de estrita objetividade, conforme o n.º 1 do art.º 53.º do CPP.

Ao juiz de instrução compete “proceder à instrução, decidir quanto à pronúncia e exercer todas as funções jurisdicionais até à remessa do processo para julgamento (cf CPP, art.º 17.º). Ora, o conceito de funções jurisdicionais abrange; o rigor processual na fase de investigação, promovendo a legalidade dos meios e circunstâncias, nomeadamente a discrição, garantindo a legitimidade da correta investigação (buscas, escutas, apreensão e análise de materiais…) e moderando, quer a inércia na investigação, quer a tendência do excesso investigatório; a justeza do inquérito, contra deficiências e excessos, desvios de interrogatório, junção de elementos que prejudiquem a prova, não junção de elementos que favoreçam a mesma; a fiabilidade da instrução pela rigorosa análise da acusação com vista à não pronúncia; e a defesa dos direitos dos arguidos e dos lesados.

Para tanto, há que evitar ao máximo a detenção e prisão para investigar. E, se uma medida de coação menos gravosa for suficiente para acautelar a investigação e o inquérito, não deve aplicar uma medida mais gravosa. Por outro, lado a prestação duma caução muito elevada pode constituir um ultraje a quem, não tendo dinheiro, pode ter de ficar em prisão preventiva, quando quem o tem pode continuar a fazer vida folgada.

Nunca, jamais, em tempo algum cabe ao JIC uma decisão absolutória ou condenatória. E nunca deveria permitir a justiça-espetáculo que induza a condenação na praça pública de quem quer que seja. Deverá, antes, zelar pela preparação da boa justiça e esperar que, a seu tempo, ela funcione com celeridade, imparcialidade e eficácia. Enfim, não lhe cabe julgar, não lhe cabe apenas apor o carimbo notarial aos pedidos do MP, não lhe cabe desautorizar o MP. Cabe-lhe, sim, um papel fiscalizador e moderador visando as legítimas garantias de arguidos e lesados.

Não pode o JIC deixar-se arrastar pelo capricho funcional que leve à discricionariedade de despacho. Deve ser o zeloso guardião da justiça e do direito “até à remessa do processo para julgamento”, incluindo a salvaguarda do segredo de justiça, sempre que este seja aplicável, para o que deve mandar investigar a origem das fugas de informação com vista à punição dos responsáveis.

Em suma, precisamos duma justiça com rosto e de olhos bem abertos.

2021.12.29 – Louro de Carvalho

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