sexta-feira, 1 de setembro de 2017

Nem a apologia do politicamente correto nem, por sistema, a do contrário

A 31 de agosto pp, o Observador publicava um artigo de Gabriel Mithá Ribeiro sob o título “O enjoo do antipoliticamente correto”, em que verbera “o uso e abuso do termo eduquês”, que, segundo o colunista, “por leviandade, ignorância ou falta de coragem” acaba por responsabilizar “os críticos” por alegadamente “terem deixado escapar uma rara oportunidade histórica de mudar o destino coletivo”.
Refere ainda o ilustre colunista que podem alguns “pequenos troféus linguísticos” arvorar-se em sintomas das razões “de não conseguirmos sair do pântano cultural e civilizacional em que nos atolamos”. E atribui particular relevo elucidativo às analogias existentes entre o que hoje acontece com o antipoliticamente correto e o passado recente do antieduquês”.
Não vejo, pessoalmente, que estejamos atolados em “qualquer pântano cultural e civilizacional”, a menos que se pretenda classificar de pântano a desenfreada ambição do poder financeiro ou a prepotência dos mandachuvas do poderio económico ou a inépcia dos decisores políticos em tomarem medidas a sério, mas em se refugiarem na escola do pensamento único.
Com efeito, enquanto houver o pluralismo do debate, a liberdade de expressão, o regular funcionamento das instituições democráticas, a articulação dos poderes, a vigência da leis e a sua aplicação pela justiça, não temos pântano. O que se pede, para que o país não estagne nem seja pasto de bicharada incómoda e pestilenta, é que o Parlamento legisle o suficiente e fiscalize a ação governativa, o Governo execute as leis e faça a necessária regulamentação e superintenda com eficácia na administração pública, a segurança fique garantida e a justiça funcione. Quanto ao mais, que os cidadãos intervenham com a força da sua consciência e o poder da sua crítica denunciadora, construtiva e comprometida.  
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Ao invés do eminente articulista, não vamos atribuir às Ciências da Educação, que não têm o condão de “milagrar” o sistema educativo nem o sistema social, os males de que todos somos culpados em parte, como a indisciplina nas salas de aula, a violência em contexto escolar ou a violência no namoro. São efetivamente “fenómenos em si reveladores de falhanços cívicos coletivos”, mas também nenhum deles “é consequência inevitável da massificação do acesso ao ensino”. Não são produtos de qualquer pântano ou de turbação de consciências, mas da “ação de instituições, indivíduos e ideologias concretas” que, à revelia da Constituição, da Lei e dos costumes, “tutelam” a educação e o ensino e, indiretamente, a vida social na sua globalidade.
Autoproclamam-se doutrinadores da pessoa e da sociedade alguns iluminados que pensam ter descoberto a pólvora nos domínios da psicologia, da sociologia e da economia e tentam fazer da escola a cobaia das suas ideias, ora facilitistas ora rigoristas, conforme a onda e os interesses. Por outro lado, a sociedade, com o beneplácito dos decisores políticos, tenta condicionar a escola e comercializá-la. Para o efeito, exige dela tudo o que quer e acusa-a de não responder; e, como ela não responde a muitos dos interesses exigidos, querem tirá-la da alçada do Estado, que alegadamente gere mal, mas a quem tentam sugar recursos. Inventam-se rankings, afunila-se o sistema nos exames e inventam-se atividades paralelas que entretêm em vez de estimularem o debate, que satisfazem mais o comércio que a cidadania e denigre-se a ideologia (certas ideologias, como se a condução da sociedade não decorra sempre de ideologia) em nome duma suposta realidade avessa a ideologias. E, agora, está visto: o ataque é a flexibilização curricular!
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Mithá Ribeiro tem, entretanto, o mérito de sistematizar os núcleos que afetam o sistema educativo, mas encurrala-os na sua perspetiva.
Assim, releva “os ataques concertados à função social dos professores”. Neste âmbito, diz que, as universidades, “ao conferirem estatuto ‘científico’ a utopias de génese revolucionária”, passaram a ser “fertilizantes exímias do terreno intelectual de onde germinam catadupas de crendices”. E os professores das nossas escolas formatam-se no pressuposto de que “não são eles quem ensina, antes são os alunos que aprendem”. De facto, tenta vingar a teoria de que o professor é um dinamizador dos saberes, que os alunos hão de adquirir e desenvolver, restando ao professor o múnus de acompanhar e fornecer sínteses complementares.
Pensa, a meu ver, erradamente o analista quando infere que tais pressupostos são deriva das novas ciências da educação – e menos das teorias psicológicas do desenvolvimento e da aprendizagem – ou do sindicalismo que, eivado de marxismo cultural, impera nos decisores políticos. Por mim, não creio que tenha sido Karl Marx a ditar que as regras escolares e de aula “devem ser negociadas com os alunos (como se entrar a horas, trazer o material necessário e estar quieto e calado fossem regras complexas)” ou que não devem ser os professores “quem deve avaliar” e que impôs a autoavaliação do aluno como peça exclusiva para a avaliação. E nem esta consta assim tout curt na lei. Diga-se, em abono da formação, que a autocrítica é mesmo necessária!  
E poderia ter referido o ataque aos professores feito por alguns governos à proa ou à toa de alguns setores da sociedade, sendo óbvio que os resultados se têm espelhado “numa persistente erosão da função institucional e social dos professores, arrastando a qualidade e dignidade global do seu trabalho”, como aponta muito bem.
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Também o inefável colunista hostiliza é sistema de classificação dos resultados escolares, considerando as “décadas de sociopatia legislativa que aniquilou o significado social da escala de 0 a 20 valores”, que atribui à “tempestade marxista” de que, segundo esta ilustre pena, “sobra uma selva anárquica”. O comentador não sabe que a escala de 1 a 5 foi iniciada no ano letivo de 1975/76 num Governo de Pinheiro de Azevedo, passada que fora a onda dita de radicalismo e sendo que o Secretário de Estado da Orientação Pedagógica ao tempo seria tudo menos marxista. Mais: quem introduziu a colheita nos níveis de 1 a 5 a partir do sistema de percentagens não foram os marxistas, mas os que resolveram governar o país pelas famigeradas folhas excel. As percentagens eram aplicadas, como ainda o são, em provas de exame ou nas antigas “provas globais” e não no regime da avaliação contínua de pendor formativo, progressivo e globalizante. No regime de frequência, a avaliação sumativa, expressa em níveis globais, resulta da avaliação descritiva e/ou das menções insuficiente, suficiente, bom e muito bom ou, como até há relativamente pouco tempo, nas de não satisfaz, satisfaz, satisfaz bem e satisfaz plenamente. E, não está em causa o desprezo pela escala clássica de 0 a 20, mais diferenciada quando precisamos de proceder a graduação seletiva. Mas, num ensino básico, entendeu-se não se dever proceder a espartilho seletivo tão acentuado, sem qualquer benefício.
Só tem razão quando se exige ao professor que justifique de forma entediante a atribuição de classificação negativa, que habitualmente se justificaria por si mesma, ou quando a pressão de inspetores, diretores, pais e outros vem no sentido de passar o aluno a qualquer preço. Mas não são os marxistas que pontificam nesse facilitismo. São outros, os interessados em tapar o sol com a peneira, os serventuários de caprichos e interesses.  
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Outro dos dislates apontados é o da “imposição às escolas da gestão inevitavelmente anárquica do tempo de aula”: ora de 90 minutos (aprenderam com os organizadores da peregrinação das crianças a Fátima – cada atividade no máximo de 90 minutos, mas cada grupo de 15 crianças com 2 acompanhantes e sempre em ação), ora de 45 minutos, por vezes na mesma semana de uma única disciplina. Assim, na verdade, “o tempo de aula deixou de ser um referente-chave de racionalidade e de estabilidade da vida escolar” com inquestionável impacto “no agravamento da desregulação de atitudes e comportamentos em contexto escolar”. Agora, até se tem dado às escolas a possibilidade de optar por tempos letivos de 50 minutos ou de 45, mas o quadro minutário das cargas horárias semanárias por disciplina não permite sempre a divisão com quociente inteiro nem por 50 nem por 45 – o que implica sempre um irritante sistema de compensação de minutos,    
Porém, tudo isto nada tem a ver com quaisquer “engenharias progressistas” nem se pode dizer que os agentes sociais (psicólogos, sociólogos, professores, pais…) não tenham sido fautores da indisciplina quando atribuíam às crianças e aos adolescentes todos os direitos, sem cuidarem dos deveres, e a capacidade de codefinirem regras de procedimentos – levando-os até a papaguear: “Isso não está no Regulamento Interno!”. Provavelmente no Regulamento Interno não consta a proibição de mentir, roubar e matar; e não quer dizer que isso se possa fazer.
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Depois, vem a crítica à “estrutura curricular”. Diz o analista que remonta “ao final dos anos 90, pela mão da ala radical” do PS (atribuindo a germinação do Bloco de Esquerda à relação dos socialistas ao longo de décadas com o ensino). E denuncia “o vício do sacrifício de horas destinadas a disciplinas de estudo em prol disciplinas ou atividades progressistas tão absurdas quanto financeiramente desastrosas”. Tinha que vir à colação o aspeto economicista. Critica a introdução da “Área de Projeto”, “Estudo Acompanhado” e “Formação Cívica”. Porém, esquece que as disciplinas tinham de ceder horas do seu plano curricular à “Área-Escola”, que vem de 1989 (governo de Cavaco Silva – esse perigoso marxista!), cujo plano de estudos, não alterado (nem os programas o foram) em 2001, também determinava um complemento curricular (Que fizeram dele?) e uma disciplina de Desenvolvimento Pessoal e Social, em alternativa à opcional Educação Moral e Religiosa Católica – a que praticamente não se deu importância embora se tenham ainda formado docentes para o efeito. Vieram, depois, as arremetidas de David Justino e as de Lurdes Rodrigues, a que se sucedeu Isabel Alçada. E ergueu-se a estátua do “eduquês”. E um dos críticos do eduquês virou a Ministro da Educação. E que fez? Manteve basicamente a estrutura curricular de Teixeira dos Santos (o Ministro das Finanças que mandava na educação); fez cessar o ensino por competências, como se estas derivassem da pena de perigosos esquerdistas como Durão Barroso e Philippe Perrenoud (como Cavaco Silva ou Manuela Ferreira Leite, por exemplo); mandou fazer novos programas das diversas disciplinas (sobre programas ainda pouco rodados e não avaliados) e impôs as famosas metas curriculares, em vez das metas de aprendizagem acabadas de entrar em vigor. E ninguém criticou a pressa e a mudança das regras a meio do jogo.
Era politicamente correto estar com Nuno Crato. Pagava-se tão caro estar contra ele como contra Sócrates. Onde estavam os críticos que agora levantam a cabeça? Bastava-lhes falar sem apresentarem propostas concretas? É preciso oferecer o peito às balas e não se refugiar no MU!

2017.09.01 – Louro de Carvalho

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