A 31 de agosto pp, o Observador publicava um artigo de Gabriel Mithá Ribeiro sob o
título “O enjoo do antipoliticamente
correto”, em que verbera “o uso e abuso
do termo eduquês”, que, segundo o colunista,
“por leviandade, ignorância ou falta de coragem” acaba por responsabilizar “os
críticos” por alegadamente “terem deixado escapar uma rara oportunidade
histórica de mudar o destino coletivo”.
Refere ainda
o ilustre colunista que podem alguns “pequenos troféus linguísticos” arvorar-se
em sintomas das razões “de não conseguirmos sair do pântano cultural e
civilizacional em que nos atolamos”. E atribui particular relevo elucidativo às
analogias existentes entre o que hoje acontece com o antipoliticamente correto
e o passado recente do antieduquês”.
Não vejo,
pessoalmente, que estejamos atolados em “qualquer pântano cultural e
civilizacional”, a menos que se pretenda classificar de pântano a desenfreada
ambição do poder financeiro ou a prepotência dos mandachuvas do poderio económico
ou a inépcia dos decisores políticos em tomarem medidas a sério, mas em se
refugiarem na escola do pensamento único.
Com efeito,
enquanto houver o pluralismo do debate, a liberdade de expressão, o regular
funcionamento das instituições democráticas, a articulação dos poderes, a
vigência da leis e a sua aplicação pela justiça, não temos pântano. O que se
pede, para que o país não estagne nem seja pasto de bicharada incómoda e
pestilenta, é que o Parlamento legisle o suficiente e fiscalize a ação
governativa, o Governo execute as leis e faça a necessária regulamentação e
superintenda com eficácia na administração pública, a segurança fique garantida
e a justiça funcione. Quanto ao mais, que os cidadãos intervenham com a força
da sua consciência e o poder da sua crítica denunciadora, construtiva e
comprometida.
***
Ao invés do
eminente articulista, não vamos atribuir às Ciências da Educação, que não têm o
condão de “milagrar” o sistema educativo nem o sistema social, os males de que
todos somos culpados em parte, como a indisciplina nas salas de aula, a
violência em contexto escolar ou a violência no namoro. São efetivamente “fenómenos
em si reveladores de falhanços cívicos coletivos”, mas também nenhum deles “é
consequência inevitável da massificação do acesso ao ensino”. Não são produtos de
qualquer pântano ou de turbação de consciências, mas da “ação de instituições,
indivíduos e ideologias concretas” que, à revelia da Constituição, da Lei e dos
costumes, “tutelam” a educação e o ensino e, indiretamente, a vida social na
sua globalidade.
Autoproclamam-se
doutrinadores da pessoa e da sociedade alguns iluminados que pensam ter
descoberto a pólvora nos domínios da psicologia, da sociologia e da economia e
tentam fazer da escola a cobaia das suas ideias, ora facilitistas ora
rigoristas, conforme a onda e os interesses. Por outro lado, a sociedade, com o
beneplácito dos decisores políticos, tenta condicionar a escola e
comercializá-la. Para o efeito, exige dela tudo o que quer e acusa-a de não
responder; e, como ela não responde a muitos dos interesses exigidos, querem
tirá-la da alçada do Estado, que alegadamente gere mal, mas a quem tentam sugar
recursos. Inventam-se rankings, afunila-se o sistema nos exames e inventam-se
atividades paralelas que entretêm em vez de estimularem o debate, que
satisfazem mais o comércio que a cidadania e denigre-se a ideologia (certas
ideologias, como se a condução da sociedade não decorra sempre de ideologia) em nome duma suposta realidade avessa a ideologias. E,
agora, está visto: o ataque é a flexibilização curricular!
***
Mithá Ribeiro tem, entretanto, o mérito de
sistematizar os núcleos que afetam o sistema educativo, mas encurrala-os na sua
perspetiva.
Assim, releva “os ataques concertados à função social dos professores”. Neste âmbito, diz
que, as universidades, “ao conferirem estatuto ‘científico’ a utopias de génese
revolucionária”, passaram a ser “fertilizantes exímias do terreno intelectual
de onde germinam catadupas de crendices”. E os professores das nossas escolas
formatam-se no pressuposto de que “não são eles quem ensina, antes são os
alunos que aprendem”. De facto, tenta vingar a teoria de que o professor é um
dinamizador dos saberes, que os alunos hão de adquirir e desenvolver, restando
ao professor o múnus de acompanhar e fornecer sínteses complementares.
Pensa, a meu
ver, erradamente o analista quando infere que tais pressupostos são deriva das
novas ciências da educação – e menos das teorias psicológicas do
desenvolvimento e da aprendizagem – ou do sindicalismo que, eivado de marxismo
cultural, impera nos decisores políticos. Por mim, não creio que tenha sido
Karl Marx a ditar que as regras escolares e de aula “devem ser negociadas com
os alunos (como se entrar a horas, trazer o material necessário e estar quieto e
calado fossem regras complexas)” ou que
não devem ser os professores “quem deve avaliar” e que impôs a autoavaliação do
aluno como peça exclusiva para a avaliação. E nem esta consta assim tout curt na lei. Diga-se, em abono da
formação, que a autocrítica é mesmo necessária!
E poderia
ter referido o ataque aos professores feito por alguns governos à proa ou à toa
de alguns setores da sociedade, sendo óbvio que os resultados se têm espelhado “numa
persistente erosão da função institucional e social dos professores, arrastando
a qualidade e dignidade global do seu trabalho”, como aponta muito bem.
***
Também o inefável
colunista hostiliza é sistema de classificação dos resultados escolares,
considerando as “décadas de sociopatia legislativa que aniquilou o significado
social da escala de 0 a 20 valores”, que atribui à “tempestade marxista” de
que, segundo esta ilustre pena, “sobra uma selva anárquica”. O comentador não
sabe que a escala de 1 a 5 foi iniciada no ano letivo de 1975/76 num Governo de
Pinheiro de Azevedo, passada que fora a onda dita de radicalismo e sendo que o
Secretário de Estado da Orientação Pedagógica ao tempo seria tudo menos
marxista. Mais: quem introduziu a colheita nos níveis de 1 a 5 a partir do
sistema de percentagens não foram os marxistas, mas os que resolveram governar
o país pelas famigeradas folhas excel. As percentagens eram aplicadas, como
ainda o são, em provas de exame ou nas antigas “provas globais” e não no regime
da avaliação contínua de pendor formativo, progressivo e globalizante. No regime
de frequência, a avaliação sumativa, expressa em níveis globais, resulta da
avaliação descritiva e/ou das menções insuficiente,
suficiente, bom e muito bom ou, como até
há relativamente pouco tempo, nas de não
satisfaz, satisfaz, satisfaz bem e satisfaz plenamente. E, não está em causa o desprezo pela escala
clássica de 0 a 20, mais diferenciada quando precisamos de proceder a graduação
seletiva. Mas, num ensino básico, entendeu-se não se dever proceder a espartilho
seletivo tão acentuado, sem qualquer benefício.
Só tem razão
quando se exige ao professor que justifique de forma entediante a atribuição de
classificação negativa, que habitualmente se justificaria por si mesma, ou
quando a pressão de inspetores, diretores, pais e outros vem no sentido de
passar o aluno a qualquer preço. Mas não são os marxistas que pontificam nesse facilitismo.
São outros, os interessados em tapar o sol com a peneira, os serventuários de caprichos
e interesses.
***
Outro dos
dislates apontados é o da “imposição às escolas da gestão inevitavelmente
anárquica do tempo de aula”: ora de 90 minutos (aprenderam com os organizadores da
peregrinação das crianças a Fátima – cada atividade no máximo de 90 minutos,
mas cada grupo de 15 crianças com 2 acompanhantes e sempre em ação), ora de 45 minutos, por vezes na mesma semana de uma
única disciplina. Assim, na verdade, “o tempo de aula deixou de ser um
referente-chave de racionalidade e de estabilidade da vida escolar” com inquestionável
impacto “no agravamento da desregulação de atitudes e comportamentos em
contexto escolar”. Agora, até se tem dado às escolas a possibilidade de optar
por tempos letivos de 50 minutos ou de 45, mas o quadro minutário das cargas horárias
semanárias por disciplina não permite sempre a divisão com quociente inteiro
nem por 50 nem por 45 – o que implica sempre um irritante sistema de
compensação de minutos,
Porém, tudo isto
nada tem a ver com quaisquer “engenharias progressistas” nem se pode dizer que
os agentes sociais (psicólogos, sociólogos, professores, pais…) não tenham sido fautores da indisciplina quando atribuíam
às crianças e aos adolescentes todos os direitos, sem cuidarem dos deveres, e a
capacidade de codefinirem regras de procedimentos – levando-os até a papaguear:
“Isso não está no Regulamento Interno!”.
Provavelmente no Regulamento Interno não consta a proibição de mentir, roubar e
matar; e não quer dizer que isso se possa fazer.
***
Depois, vem
a crítica à “estrutura curricular”. Diz o analista que remonta “ao final dos
anos 90, pela mão da ala radical” do PS (atribuindo a germinação do Bloco de
Esquerda à relação dos socialistas ao longo de décadas com o ensino). E denuncia “o vício do sacrifício de horas
destinadas a disciplinas de estudo em prol disciplinas ou atividades
progressistas tão absurdas quanto financeiramente desastrosas”. Tinha que vir à
colação o aspeto economicista. Critica a introdução da “Área de Projeto”, “Estudo
Acompanhado” e “Formação Cívica”. Porém, esquece que as disciplinas tinham de
ceder horas do seu plano curricular à “Área-Escola”, que vem de 1989 (governo de Cavaco
Silva – esse perigoso marxista!), cujo
plano de estudos, não alterado (nem os programas o foram) em 2001, também determinava um complemento curricular (Que fizeram
dele?) e uma disciplina de Desenvolvimento
Pessoal e Social, em alternativa à opcional Educação Moral e Religiosa Católica
– a que praticamente não se deu importância embora se tenham ainda formado
docentes para o efeito. Vieram, depois, as arremetidas de David Justino e as de
Lurdes Rodrigues, a que se sucedeu Isabel Alçada. E ergueu-se a estátua do “eduquês”.
E um dos críticos do eduquês virou a Ministro da Educação. E que fez? Manteve basicamente
a estrutura curricular de Teixeira dos Santos (o Ministro das Finanças que mandava
na educação); fez
cessar o ensino por competências, como se estas derivassem da pena de perigosos
esquerdistas como Durão Barroso e Philippe Perrenoud (como Cavaco
Silva ou Manuela Ferreira Leite, por exemplo); mandou fazer novos programas das diversas disciplinas (sobre
programas ainda pouco rodados e não avaliados) e impôs as famosas metas curriculares, em vez das metas de aprendizagem
acabadas de entrar em vigor. E ninguém criticou a pressa e a mudança das regras
a meio do jogo.
Era politicamente
correto estar com Nuno Crato. Pagava-se tão caro estar contra ele como contra Sócrates.
Onde estavam os críticos que agora levantam a cabeça? Bastava-lhes falar sem
apresentarem propostas concretas? É preciso oferecer o peito às balas e não se refugiar
no MU!
2017.09.01 – Louro de Carvalho
Sem comentários:
Enviar um comentário