segunda-feira, 14 de agosto de 2023

Um terço dos peões mortos em 2022 tinha excesso de álcool no sangue

 

A 14 de agosto, o Jornal de Notícias (JN), citando dados do Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciências Forenses (INMLCF) respeitantes a 2022, referia que cerca de um terço dos peões atropelados mortalmente, no ano passado, tinham álcool a mais no sangue, pelo que os especialistas defendem um “maior esclarecimento sobre o efeito do álcool na condução”, sobretudo nas idades mais jovens (“um programa sério”), além da existência de mais fiscalização nas estradas e da introdução de sistema de bloqueio do veículo.

Efetivamente, os resultados das autópsias realizadas revelam que as vítimas mortais de acidentes rodoviários com taxa igual ou superior ao permitido por lei para conduzir (0,5 g/l – gramas de álcool num litro de sangue) estão a aumentar em Portugal. E o aumento é notório nos peões. No ano em referência, 27,7% (contra os 12,2% de 2017) tinha 1,2 g/l ou mais.

Entre 2021 e 2022, praticamente duplicou o número de infrações com taxa crime de álcool no sangue. Especialistas ouvidos pelo JN pedem, por isso, uma fiscalização apertada nas estradas e um “programa sério” contra o alcoolismo nas idades mais novas.

Para Alain Areal, diretor-geral da Prevenção Rodoviária Portuguesa (PRP), preocupado com os números, é preciso olhar para a globalidade dos dados, e não apenas para a realidade de um ano, referindo que, “entre 2017 e 2021, a percentagem de peões com uma taxa igual ou superior a 1,2 g/l de álcool no sangue esteve sempre abaixo dos 17%”, enquanto, em 2022, “os valores aumentaram vertiginosamente para quase 30%”.

Já para Manuel João Ramos, presidente da Associação de Cidadãos Automobilizados (ACAM), é importante saber qual a localização dos acidentes, “se foram em zonas urbanas ou não, nas capitais de distrito, no Norte ou no Sul”. Em declarações ao JN, este dirigente da ACAM admite que os números podem ter a ver com o aumento das zonas de lazer para peões nos espaços públicos, com a oportunidade de ingestão de álcool nesses espaços, nomeadamente em áreas urbanas como Lisboa, referindo que o fenómeno da “turistificação pode estar a causar este efeito colateral”, o de consumo de álcool na via pública. Por outro lado, aumentaram muito os espaços de divertimento noturno.

A mesma opinião tem o presidente da PRP, ao referir que é necessária uma “maior fineza dos dados”, caso contrário torna-se difícil encontrar justificação para o fenómeno.  

Na visão da psiquiatra Joana Teixeira, presidente da Sociedade Portuguesa de Alcoologia, os números podem dever-se a um “abrandamento das campanhas de segurança rodoviária” sobre o consumo de álcool ao volante, defendendo que devem ser reforçadas “novamente”.

A psiquiatra aponta o dedo ao fenómeno do “binge drinking”, principalmente entre os jovens, ou seja, a ingestão de várias bebidas alcoólicas numa ocasião.

Para os especialistas, ouvidos pelo JN, é necessário um “maior esclarecimento sobre o efeito do álcool na condução”, além da existência de mais fiscalização nas estradas e do bloqueio do carro. Manuel João Ramos acusa a inexistência, em tempo algum, de um “programa sério contra o alcoolismo jovem” em Portugal. E o fenómeno do alcoolismo, nesta faixa etária, tem vindo a agravar-se desde 2000.

Os dados do INMLCF, enviados ao JN pela Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária (ANSR), mostram um aumento expressivo da alcoolemia nos peões, mas também nos condutores, em que a taxa de álcool igual ou superior a 1,2 g/l esteve acima dos 20% desde o ano de 2017. É certo que, em 2022, houve menos autópsias de vítimas mortais de acidentes rodoviários, no INMLCF (foram 294), e o pico ocorreu em 2018, com 417 autópsias. Todavia, apesar de ter havido menos autópsias, a proporção de condutores e de peões subiu, especialmente em 2019, em 2021 e em 2022.

De acordo com a Lei n.º 45/2004, de 19 de agosto, as análises são feitas a vítimas de acidente rodoviário de que tenha resultado morte imediata.

Perante os números avançados pelo INMLCF, o diretor-geral da PRP pede a introdução do sistema “alcoho-lock” (já está a ser testado), que impede o carro de arranque, se for detetada uma taxa de alcoolemia superior ao estipulado na lei para a condução. Funciona como um teste do balão, mas ligado à ignição. Por outro lado, é preciso um maior esclarecimento sobre o efeito do álcool na condução e uma fiscalização mais frequente, pois, se cada condutor for submetido a um teste de alcoolemia mais frequentemente do que a média de uma vez de quatro em quatro anos, haverá maior pressão sobre os condutores e, consequentemente, maior benefício.   

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Entretanto, tem havido várias campanhas de sensibilização para os cuidados na rodovia. Por exemplo, a 13 de agosto, a ANSR informava que promoveu a campanha de segurança rodoviária “Dê Prioridade à Vida”, entre os dias 31 de julho e 13 de agosto, apelando a todos os que circulam nas estradas e nas ruas que o fizessem em segurança, “convocando-os a dar prioridade à vida e a proteger não só a sua vida, mas também a da sua família e a dos outros”. Por outro lado, em parceria com a plataforma de navegação Waze, assinalou os locais com maior concentração de acidentes mortais, para que, aí, seja redobrada a atenção e o cuidado na condução, sobretudo no mês de agosto, mês em que as deslocações são mais frequentes e longas.

Com efeito, é de lembrar que a sinistralidade rodoviária é uma tragédia mundial: todos os anos morrem 1,35 milhões de pessoas em todo o Mundo. São 3700 pessoas por dia, uma pessoa a cada 24 segundos. É a primeira causa de morte dos 5 aos 24 anos.

Em Portugal, e apesar dos bons resultados das últimas duas décadas, em média perdem a vida nas estradas e ruas cerca de 600 pessoas, um número muito longe do único aceitável: “zero mortes na estrada”. E, depois de um decréscimo verificado desde 2018, no primeiro semestre de 2023, verificou-se um aumento, face a 2022, com índices equiparados a 2019.

Por ano, o custo económico e social da sinistralidade rodoviária em Portugal atinge os 6,4 mil milhões de euros, valor que corresponde a cerca de 3,03% do produto interno bruto (PIB). Porém, a sinistralidade rodoviária é muito mais do que números ou mera estatística. É fenómeno um profundo impacto social que incide, “de forma dramática, na vida das pessoas”. Por isso, o seu combate é a prioridade, mas só é vitorioso, se os vários intervenientes do sistema (os utilizadores das estradas e das ruas e toda a sociedade) assumirem o compromisso e a responsabilidade nesta causa: “dar prioridade à vida e salvar vidas”. “Queremos que ninguém perca a vida na estrada e que consiga chegar ao seu destino de férias e regressar a casa em segurança”.​

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Para se fazer uma ideia da situação geral, no ano em referência, é de visitar o “Relatório dezembro 2022 – sinistralidade 24 horas, fiscalização e contraordenações”, da ANSR, publicado a 31 de maio de 2023, que avança alguns dados no “Sumário executivo”, de que se destacam os seguintes:

Em 2022, registaram-se, no território nacional, 34275 acidentes com vítimas: 473 mortos, 2436 feridos graves e 40123 feridos leves. Em relação a 2019, ano de referência para monitorização das metas fixadas pela Comissão Europeia e por Portugal, de redução do número de mortos e de feridos graves, até 2030, registaram-se menos 2976 acidentes (-8,0%), menos 47 mortos (-9,0%), menos 96 feridos graves (-3,8%) e menos 4830 feridos leves (-10,7%).

No Continente, em 2022, registaram-se 32788 acidentes com vítimas, de que resultaram 462 mortos, 2243 feridos graves e 38456 feridos leves. Comparativamente a 2019, os principais indicadores de sinistralidade mostraram resultados decrescentes: menos 2916 acidentes (-8,2%), menos 12 mortos (-2,5%), menos 58 feridos graves (-2,5%) e menos 4746 feridos leves (-11,0%).

A colisão foi a natureza de acidente mais frequente (51,9% dos acidentes), com 39,8% mortos e 43,8% dos feridos graves. Os despistes (34,5% do total de acidentes) corresponderam à principal natureza de acidente na origem das vítimas mortais (45,2%).

A maioria dos mortos (53,2%) registou-se na sequência de acidentes ocorridos fora das localidades, com um crescimento de 40,6%, ainda que estes acidentes tenham representado apenas 22,0% do total. O índice de gravidade dos acidentes registados fora das localidades ascendeu a 3,42, com significativo agravamento, face a 2021 (2,93), e mais de quatro vezes superior ao registado dentro das localidades, que se situou em 0,84, embora inferior ao do ano anterior (0,92). Quanto ao tipo de via, 62,7% dos acidentes ocorreram em ruas, provocando 31,8% das vítimas mortais (+17,6%, face a 2021) e 45,8% dos feridos graves (+9,2%, face a 2021). Nas Estradas Nacionais, embora apenas tenham ocorrido 19,2% dos acidentes, foi onde se registou o maior número de mortos (148: 32,0%), um acréscimo de 8,8%, face a 2021, e 29,0% dos feridos graves (+5,9%, face a 2021). Nas autoestradas, o crescimento de 16,3% no tráfego teve por consequência os aumentos de 22,3%, no número de acidentes, e de 48,5%, no número de mortos, face a 2021.

No respeitante à categoria de utente, 66,5% do total dos mortos eram condutores, 18,4% passageiros e 15,2% peões. Comparativamente a 2021, verificou-se um crescimento do número de mortos, em todas as categorias de utentes, destacando-se o aumento de 56 para 85 nos passageiros mortos (+51,8%). Relativamente aos feridos graves, o aumento mais significativo ocorreu também nos passageiros (+16,9% face a 2021). Os peões registaram aumentos de 37,3% nas vítimas mortais e de 8,9% nos feridos graves face ao ano anterior.

Em relação à categoria de veículo interveniente nos acidentes, 72,0% do total envolveram veículos ligeiros, o que representou um aumento de 11,2% relativamente a 2021, sendo de referir as subidas verificadas nos motociclos (+14,6%) e nos veículos pesados (+12,3%). Inversamente, registou-se menor intervenção nos acidentes por parte de veículos agrícolas (-13,9%) e de ciclomotores (-2,0%).

Considerando a categoria de veículo em que as pessoas se deslocavam, em 2022, verificou-se que 55,1% do total de vítimas deslocava-se em veículo ligeiro (+11,6% face a 2021), enquanto 19,2% circulava em motociclos (+14,6% face a 2021) e 7,0% em velocípedes (+7,9%). Houve a subida de 22,1% das vítimas em veículo pesado, face a 2021. Quanto a mortos, é de assinalar as reduções de 17,4% dos utilizadores de velocípedes e de 21,4% nos veículos agrícolas.  

Em 2022, 51,3% dos mortos surgiu na rede rodoviária da responsabilidade das seguintes Entidades Gestoras de Via: Infraestruturas de Portugal (43,7%), Brisa (5,8%) e Ascendi (1,7%).

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Como se pode ver, a colisão é o principal tipo de acidente, mas, para ela contribuem vários fatores, como a velocidade excessiva (ditada pela pressa), o exibicionismo (sobretudo dos motoqueiros e dos utilizadores de veículos de feição mais desportiva) o telemóvel, o facilitismo, o sono, a distração, a amnésia em relação às normas do Código da Estrada (CE), a abundância de trotinetas e de veículos ditos “papa-reformas” e, obviamente, o álcool em condutores e em peões. E, enquanto o condutor é sujeito a teste de alcoolemia, dificilmente o peão o será.

Além disso, é problemática a questão da travessia em passadeiras. O artigo 101.º do CE estipula que o peão não pode atravessar a faixa de rodagem, sem se certificar de que, tendo em conta a distância que o separa dos veículos que nela transitam e a velocidade, o pode fazer sem perigo de acidente; tem de atravessar depressa; e só o pode fazer na passadeira ou se não houver passadeira, a distância inferior a 50 metros. Por sua vez, o artigo 103.º estabelece que o condutor, ao aproximar-se da passadeira, “deve deixar passar os peões ou os velocípedes que já tenham iniciado a travessia”; fora da passadeira, “deve reduzir a velocidade e, se necessário, parar para deixar passar os peões ou velocípedes que já tenham iniciado a travessia”; e o mesmo deve fazer ao mudar de direção.

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Enfim, na estrada ou na rua, todo o cuidado é pouco: não se pode perder a vida num minuto!

2023.08.14 – Louro de Carvalho

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