quarta-feira, 9 de agosto de 2023

Cada um de nós é um dom único para a comunidade

 

“Cada um de nós é um presente, é um ‘dom único’, com os seus limites, mas um ‘dom precioso e sagrado’ para Deus, para a comunidade cristã e para a comunidade humana”. Esta foi uma poderosa asserção do Papa Francisco, a 4 de agosto, no Centro Paroquial de Serafina, em Lisboa, onde se encontrou, no contexto da Jornada Mundial da Juventude (JMJ), com utentes, trabalhadores, amigos e dirigentes Centro Paroquial da Serafina, da Casa Família Ajuda de Berço e da Associação Acreditar. No limite, bastaria esta asserção para justificar a vinda do Pontífice a Lisboa. Porém, o discurso oficial – em parte substituído, em parte secundado, pelo improviso – vai ainda mais ao fundo das coisas.

Aos membros do auditório – muitos sofridos pelas limitações e muitos assinalados pela canseira da labuta diária ou das grandes preocupações, o Pontífice saudou como irmãos e irmãs, sem protocolo, e disse: “Obrigado!” 

Considerou boa aquela presença conjunta no contexto da JMJ, olhando para “a Virgem que Se levanta para ir ajudar”. E conclamou que “a caridade é a origem e a meta do caminho cristão”, constituindo a presença destas pessoas todas a realidade concreta de “amor em ação”, que nos ajuda a “não esquecer a rota” e o sentido do que “sempre estamos a fazer”.

Agradecendo os testemunhos que ouviu, deles destacou três aspetos: “fazer, juntos, o bem, agir no concreto e estar próximo dos mais frágeis”.

“Juntos” é a palavra-chave, repetidamente evocada nas intervenções. Com efeito, é preciso “viver, ajudar e amar juntos: jovens e adultos, sãos e doentes”. E o Papa confirmou e assumiu o que ouviu: “Não devemos deixar-nos ‘definir’ pela doença ou pelos problemas, porque não somos uma doença, não somos um problema”. Pelo contrário, “cada um de nós é um presente, é um dom único, com os seus limites mas um dom precioso e sagrado para Deus, para a comunidade cristã e para a comunidade humana”, assegurou, considerando que, tal como somos, “enriquecemos o conjunto e deixamo-nos enriquecer pelo conjunto”.

É imperioso “agir no concreto”. Por isso, corroborou o que dissera o padre Francisco, inspirado em São João XXIII: “A Igreja ‘não é um museu de arqueologia – alguns imaginam-na assim, mas não o é –; a Igreja é o antigo fontanário da aldeia que fornece água à geração de hoje’, como às futuras gerações.” E, como o fontanário mata “a sede das pessoas que chegam com o peso da viagem ou da vida”, sustentou a necessidade de concretização e de atenção ao “aqui e agora”, com o cuidado dos pormenores e com sentido prático – “belas virtudes típicas do povo português”.

É importante não perder tempo a lamentar a realidade, devendo cultivar-se a “preocupação de ir ao encontro das carências concretas, com alegria e confiança na Providência”, pois isso faz acontecer coisas maravilhosas. E especificou: como o atesta a vossa história, do encontro com o olhar de um idoso na rua, nasce um centro de caridade “de todo o respeito”; de um desafio moral e social qual é a “campanha pela vida”, nasce uma associação que ajuda grávidas e a sua família, crianças, adolescentes e jovens em dificuldade, para encontrarem um projeto de vida seguro; e da experiência da doença nasce uma comunidade de apoio a quem luta contra o cancro, especialmente crianças, de modo que “os progressos no tratamento e a melhor qualidade de vida se tornem realidade para eles”. Depois, grato por tudo o que se faz de bem, exortou: “Continuai, com mansidão e com gentileza, a deixar-vos interpelar pela realidade, com as suas pobrezas antigas e novas, e a responder de forma concreta, com criatividade e coragem.”

Por último, urge “estar próximo dos mais frágeis”. Embora todos sejamos frágeis e necessitados – é difícil alguém com estatuto superior reconhecer publicamente esta nossa condição humana –, Francisco proclama que “o olhar feito de compaixão, próprio do Evangelho, leva-nos a ver as necessidades de quem mais precisa”. Assim, “leva-nos a servir os pobres, os prediletos de Deus que Se fez pobre por nós”, em especial, “os excluídos, os marginalizados, os descartados, os humildes, os indefesos”, que “são o tesouro da Igreja” (assumiu-o o diácono mártir São Lourenço), que “são os preferidos de Deus”, não sendo justo “estabelecer diferenças entre eles”. Para o cristão, “não há preferências face a quem, necessitado, bate à nossa porta: compatriotas ou estrangeiros, pertencentes a este ou àquele grupo, jovens ou idosos, simpáticos ou antipáticos...”

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Entretanto, no discurso escrito, constava um trecho que não foi proferido, por motivos explicados pelo Pontífice e, mais tarde explicitados, mas que o site da Santa Sé publicou:

A propósito de caridade, o Papa contaria uma história, especialmente interessante para as crianças. O jovem português João Cidade, que viveu há muito tempo e habitava em Montemor-o-Novo. Sonhava com uma vida de aventura, pelo que, em adolescente, saiu de casa à procura da felicidade, que só achou, quando encontrou Jesus. E ficou tão contente com a descoberta que decidiu mudar o nome para João de Deus. Ousou deambular pela cidade a pedir esmola pelas ruas, dizendo: “Fazei bem, irmãos, a vós mesmos!” Com efeito, quantos lhe davam esmola, ajudando-o a ele, ajudavam-se, primariamente, a si próprios, já que os gestos de amor são dom para quem os realiza, antes de o serem para quem os recebe, pois “tudo o que se acumula para si mesmo perder-se-á”, ao passo que o que se dá por amor “nunca se desperdiça, mas será o nosso tesouro no céu”.

Porém, o amor não nos torna felizes só no céu, mas já aqui na terra, porque “dilata o coração e permite abraçar o sentido da vida”. Por tanto, “se queremos ser, verdadeiramente, felizes”, temos de aprender a “transformar tudo em amor, oferecendo aos outros o nosso trabalho e o nosso tempo, dizendo palavras edificantes e realizando boas ações”, com o sorriso, com o abraço, com a escuta, com o olhar. Todos podemos fazê-lo e disto precisamos todos, “aqui e em qualquer lugar do Mundo”.

Todavia, as pessoas, não entendendo João e pensando que estava maluco, fecharam-no num manicómio. Mas ele não se desmoralizou, “porque o amor não desiste e quem segue Jesus não perde a paz, nem lamenta a sua sorte”. E, no manicómio, carregando a cruz, chegou a inspiração de Deus: João apercebeu-se de quanto aqueles doentes precisavam de ajuda e, quando o deixaram sair, começou a cuidar deles com outros companheiros, fundando a Ordem Religiosa dos Irmãos Hospitaleiros. Alguns começaram a designá-los com as palavras “Fazei bem, irmãos” que o jovem ia repetindo a todos. Assim são chamados em Roma “Fatebenefratelli”, belo nome, que inclui um “ensinamento importante”: “ajudar os outros é um dom para si próprio e faz bem a todos”. E o Papa fez repetir a todos, juntos: “O amor é um presente para todos!”

Exortou: “Amemo-nos assim! Continuai a fazer da vida um presente de amor e de alegria.”. Agradeceu e pediu orações a todos, especialmente às crianças.

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Em contrapartida, improvisou um belo discurso alternativo, já que os seus “holofotes” [os olhos] não estavam a funcionar como deviam e não conseguia ler bem. O porta-voz da Santa Sé viria a esclarecer – e o Pontífice o confirmou na conferência de imprensa no voo de regresso a Roma, no dia 6 – que não fora um problema de visão, mas do facto de um holofote estar a incidir sobre os seus óculos. Ora, penso eu, um orador, em circunstâncias normais, facilmente se desviaria, mas Francisco, em cadeira de rodas, dificilmente o faria. E a alternativa é o improviso, por parte de um homem altamente preparado para usar o tom paterno e coloquial de pastor.   

Por isso, entregou o discurso aos responsáveis para o publicarem, depois, porque “não se pode forçar a vista e ler mal”. Já o Papa São João Paulo II, dada a extensão do discurso que preparara para os estudantes da Universidade Católica Portuguesa (UCP), em maio de 1982, cedeu à necessidade de improviso e deixou o texto ao Reitor, para que este lho lesse mais tarde. 

E Francisco deteve-se em algo não escrito, mas que está no espírito do encontro: a concretização. E avisou: “Não existe amor abstrato […]! O amor platónico vive em órbita, não está na realidade. Real é o amor concreto, aquele em que se sujam as mãos.”

Instando cada um a interrogar-se, questionou se o amor que sentimos pelos outros é concreto ou abstrato; se, depois de estendermos a mão à pessoa necessitada, ao doente, ao marginalizado, limpamos a mão na roupa para não nos contagiarmos; se nos enoja a pobreza dos outros; se buscamos sempre a vida “destilada”, a que existe na nossa fantasia, não na realidade. E exclamou: “Quantas vidas destiladas, inúteis que passam sem deixar marca, porque tais vidas não têm peso!”

Depois, considerou que temos aqui a realidade de muitos, que vai deixando uma marca que serve de inspiração para os outros. Não poderia haver uma JMJ, sem ter em conta esta realidade, porque isto “é juventude, no sentido de que vós gerais, continuamente, vida nova”.

Esta gente, com a sua conduta, com o seu empenho, com as mãos sujas por tocarem a realidade da miséria dos outros, gera inspiração, gera vida. E Francisco aconselha: “Continuai para diante e não desanimeis! E, se desanimardes, bebei um copo de água e segui para a frente!”

***

Escrevi, porque o miolo do discurso papal não passou para a opinião pública, apenas passaram asserções bombásticas que pareciam puxão de orelhas, não realidade, nem incentivo. Ora, no quadro da ação sócio-caritativa da Igreja, Francisco exige o indispensável profissionalismo, mas sobretudo a compaixão, a entrega, o amor.

2023.08.08 – Louro de Carvalho

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