quinta-feira, 31 de agosto de 2023

Papa não exaltou lógica imperialista e expansionista russa

 

A 25 de agosto, o Papa Francisco falou, por videoconferência, aos 400 jovens reunidos na 10.ª Jornada da Juventude Russa, Basílica de Santa Catarina, na cidade russa de São Petersburgo. E algumas palavras levaram responsáveis políticos, religiosos e inúmeros meios de comunicação ucranianos a acusá-lo de fazer “propaganda imperialista” a favor da Rússia, pelo que a Sala de Imprensa da Santa Sé veio a terreiro esclarecer o seu verdadeiro sentido.

O Papa discursou em Espanhol, convidando os jovens a serem “semeadores de sementes de reconciliação, pequenas sementes que, neste inverno de guerra, não brotarão no solo congelado, por enquanto, mas florescerão numa futura primavera”. Depois, improvisou, em Italiano, à laia de despedida: “Nunca vos esqueçais da vossa herança. Vós sois herdeiros da grande Rússia, da grande Rússia dos santos, dos reis, da grande Rússia de Pedro, o Grande, de Catarina II, do grande império russo, culto, tanta cultura, tanta humanidade. Vós sois os herdeiros da grande mãe Rússia. Ide em frente. E obrigado, obrigado pelo vosso modo de serdes russos.”

Foram estas palavras – não divulgadas na versão oficial distribuída à comunicação social – que geraram controvérsia. “É através de tal propaganda imperialista, de “grampos espirituais” e da “necessidade” de resgatar “a grande mãe da Rússia” que o Kremlin justifica o assassinato de milhares de Ucranianos e mulheres ucranianas e a destruição de centenas de cidades e aldeias ucranianas. É muito lamentável que as ideias de grande Estado russas, que, de facto, são a causa da agressão crónica da Rússia, conscientemente ou sem saber, venham da boca do Papa, cuja missão, em nossa opinião, é justamente abrir os olhos da juventude russa para o curso desastroso da atual liderança russa”, escreveu Oleg Nikolenko, porta-voz do Ministério das Relações Exteriores da Ucrânia, na sua página de Facebook.

No dia 28, foi publicada a Declaração de Sua Beatitude Sviatoslav Shevchuk, Chefe e Padre (Arcebispo Maior) da Igreja Greco-Católica Ucraniana, sobre algumas declarações do Santo Padre no encontro com a juventude católica da Rússia, a 25 de agosto:

“É com grande dor e preocupação que tomamos conhecimento das palavras atribuídas a Sua Santidade o Papa Francisco num encontro online com jovens católicos russos, no dia 25 de agosto de 2023, em São Petersburgo. Esperamos que estas palavras do Santo Padre tenham sido ditas espontaneamente, sem qualquer tentativa de avaliação histórica, muito menos de apoio às ambições imperialistas da Rússia. No entanto, partilhamos a grande dor que causaram, não só entre o episcopado, o clero, os monásticos e os fiéis da nossa Igreja, mas também entre outras denominações e organizações religiosas. Ao mesmo tempo, estamos conscientes da profunda deceção que causaram na sociedade. As palavras sobre ‘a grande Rússia de Pedro I, Catarina II, aquele grande e esclarecido império – um país de grande cultura e grande humanidade’ – são o pior exemplo do imperialismo e do nacionalismo russo extremo. Há o perigo de que estas palavras possam ser interpretadas como apoio ao próprio nacionalismo e imperialismo que causou a guerra na Ucrânia, hoje – uma guerra que traz morte e destruição ao nosso povo, todos os dias. Os exemplos dados pelo Santo Padre contradizem os seus ensinamentos sobre a paz, visto que sempre condenou qualquer forma de manifestação do imperialismo no Mundo moderno e alertou para os perigos do nacionalismo extremo, vincando que é a causa da “terceira guerra mundial em pedaços”. Como Igreja, queremos afirmar que, no contexto da agressão da Rússia contra a Ucrânia, tais declarações inspiram as ambições neocoloniais do país agressor, embora tal forma de “ser russo” deva ser categoricamente condenada. Para evitar qualquer manipulação das intenções, do contexto e das declarações atribuídas ao Santo Padre, aguardamos esclarecimento da situação por parte da Santa Sé. A Igreja Greco-Católica Ucraniana, juntamente com todos os cidadãos do nosso país, condena a ideologia do “mundo russo” e toda a forma criminosa de “ser russo”. Esperamos que o Santo Padre ouça a nossa voz.

Dentro de poucos dias, os bispos da nossa Igreja reunir-se-ão, em Roma, para o Sínodo anual da Igreja Greco-Católica Ucraniana. Teremos oportunidade de encontrar Sua Santidade e de lhe transmitir as dúvidas e as dores do povo ucraniano, confiando no seu cuidado paterno por ele.”

E a voz de Shevchuk foi ouvida. Na manhã do dia 29, o diretor da Sala de Imprensa da Santa Sé, Matteo Bruni, esclareceu: “Nas suas palavras de saudação dirigidas espontaneamente a alguns jovens católicos russos, há dias, como fica claro pelo contexto em que as pronunciou, o Papa pretendia encorajar os jovens a preservar e promover tudo o que há de positivo na grande herança cultural e espiritual russa e, certamente, não exaltar lógicas imperialistas e personalidades governamentais, citadas para indicar certos períodos históricos de referência.”

Também a Nunciatura em Kiev rejeitou as más interpretações, afirmando que o Papa “é um oponente convicto e crítico de qualquer forma de imperialismo ou colonialismo, em todos os povos e situações”.

Não deixam, no entanto, de ter sido “um erro” as declarações do Papa neste “momento delicado” da História, refere um editorial do site italiano “Il Sismografo”, embora Catarina II tenha protegido os jesuítas em terras controladas pela Rússia, depois de o Papa Clemente XIV ter suprimido a Companhia, em todo o Mundo, em 1773, e embora Francisco seja jesuíta.

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Todavia, é pena que se perca o essencial da mensagem papal àqueles jovens russos, de que se dá conta em traços largos.

Partindo do lema da Jornada Mundial da Juventude (JMJ), de Lisboa, há três semanas – “Maria levantou-se e partiu apressadamente” –, Francisco, alegre por compartilhar este momento de fé e de esperança com os jovens russos, propôs-lhes três ideias, para as trabalharem na reflexão que iriam fazer os grupos, cada qual a partir da sua própria experiência:

- “Chamados e em saída”. Deus chama-nos a caminhar, manda-nos sair e caminhar. Todos, e cada um, somos escolhidos chamados, desde o princípio das nossas vidas. Cada um é chamado pelo seu nome (não ao montão) e independentemente dos seus talentos, méritos, escuridões e feridas.  Chamou Isabel, que era estéril, e María, a Virgem. E estas duas mulheres converteram-se em testemunhas da força transformadora de Deus. É essa experiência do amor transbordante de Deus que não se pode deixar de compartilhar. Por isso, María levantou-se e foi apressadamente, pois, quando Deus chama, não podemos ficar sentados, porque o Mundo, o irmão, o que sofre, o que está ao lado e não conhece a esperança de Deus necessita de receber a alegria de Deus e precisa do nosso serviço de proximidade.

- “O amor de Deus é para todos e a Igreja é de todos.” O amor de Deus reconhece-se pela sua hospitalidade. Deus acolhe sempre, cria, cria espaço para que todos tenhamos lugar e sacrifica-se pelo outro, está atento às necessidades do outro. María permaneceu três meses com Isabel, ajudando-a. Estas duas mulheres estavam a criar espaço para as novas vidas – João Batista e Jesus –, mas também uma para a outra, comunicavam-se. A Igreja é uma Mãe de coração aberto, que sabe acolher e receber, sobretudo quem tem necessidade de maior cuidado. É a casa dos amados, dos chamados. “Quantas feridas, quanto desespero se podem curar onde uma pessoa se pode sentir recebida!” Por isso, o Papa sonha com uma Igreja onde ninguém está a mais. Quer que a Igreja não seja uma “alfândega” para selecionar a quem entra e quem não entra. A entrada é livre, é para todos. E cada um sentirá o convite de Jesus a segui-Lo. Para esta viagem está o ensino e os sacramentos. Quando o Senhor do banquete mandou chamar às encruzilhadas, disse: “Ide e trazei todos” (cf Mt 22,9). Não se pode esquecer esta palavra: “todos”. Portanto, a Igreja é para todos: jovens e velhos, sãos e enfermos, justos e pecadores. Quis Jesus dizer: “todos, todos, todos”.

- É vital que os jovens e os idosos se abram uns aos outros.” Os jovens, ao encontrarem-se com os idosos, têm a oportunidade de receber a riqueza das suas experiências e vivências. E os idosos, ao encontrarem-se com os jovens, encontram neles a promessa de um futuro de esperança. É, pois, importante que os jovens dialoguem com os idosos, com os avós. A experiência de vida dos avós vai mais além do que a dos pais. O ponto de encontro entre Maria e Isabel é o sonho. Ambas sonhavam. Também os jovens e os idosos sonham. O profeta Joel recorda-nos: “Os seus anciãos terão sonhos, os seus jovens terão visões” (cf Jl 2,28). Assim, os idosos sonham com tantas coisas: a democracia, a unidade das nações…; e os jovens profetizam, são chamados a ser artesãos do ambiente e da paz. Isabel, com a sabedoria dos anos, fortaleceu Maria, que era jovem e estava cheia de graça, guiada pelo Espírito.

Por fim, o Papa convidou os jovens a serem construtores de pontes entre as gerações, pois a aliança entre as gerações mantém viva a História e a cultura do povo. Deseja o Santo Padre que os jovens russos sintam a vocação para serem artesãos da paz no meio de tantos conflitos e polarizações; convida-os a serem sementes de reconciliação, sementes que, neste inverno de guerra, ainda não brotaram na terra gelada, mas que irão florescer numa primavera futura. Como disse em Lisboa, também em São Petersburgo Francisco pretende que os jovens tenham a valentia de substituir os medos pelos sonhos, por que não sejam “administradores de medos”, mas “empreendedores de sonhos”.

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Segundo o diretor da Sala de Imprensa da Santa Sé, Francisco “pretendia encorajar os jovens a preservar e promover o que há de positivo na grande herança cultural e espiritual russa”. E eu penso que, sem se meter nos escaninhos da História russa e, em especial, na teia das relações históricas e das influências das diversas nacionalidades, o Papa, em coerência com o diálogo que deseja real e efetivo entre as gerações, na fidelidade às raízes para a construção de um futuro mais humano e de justiça solidária, evocou as glórias da História da Rússia (não ia ali fazê-lo para com outo país). É óbvio que a terra de santos, a mãe Rússia, o império de Pedro, o Grande, e de Catarina II, são raízes vitais destes jovens. Mau seria que Francisco referisse o “império” de Vladimir Putin como o fulcro (ou como simples elemento) dessas raízes. Com efeito, o presente mau combate-se, mas o passado de luz e de glória – apesar das sombras e dos erros – assume-se. Não vale a pena combater o passado, que não volta, mas deve assumir-se o que de bom nos legou.  

Compreende-se o lamento da Igreja Greco-Católica da Ucrânia, a sofrer com o seu povo, embora os seus responsáveis devessem ter compreendido a preocupação do Santo Padre: os jovens russos, como o seu povo, não querem a guerra e sofrem com ela, apreensivos sobre o futuro. E compreende-se a posição do governo de Kiev. Porém, não se compreende a crítica de alguns responsáveis da Igreja Católica a Francisco, como a de alto hierarca alemão, que pensa que alguns discursos do Papa são superficiais, desviados da realidade histórica e teológica.

Ficamos encantados com o elogio a Lisboa, com a citação dos nossos escritores e santos ou com a menção do Cabo da Roca e da onda gigante da Nazaré, sem repararmos na clássica metodologia retórica, da captação da benevolência dos ouvintes (Paulo VI, contrário ao colonialismo, em Fátima abençoou Portugal Continental, Insular e Ultramarino). E, autoanestesiados pelo encanto, deixamos de lado as exigências das mensagens papais.  

Na guerra da Rússia na Ucrânia, o pensamento único continua e querem impô-lo ao Papa, que tem rezado e mandado rezar pelos Ucranianos, envia para lá emissários e ajuda humanitária material. É óbvio que está preocupado com a Rússia e o seu povo e tem dito isso, tal como, logo nos primeiros dias, foi pessoalmente à Embaixada Russa suplicar pelo fim da invasão. Manifestou discordância do Patriarca de Todas as Rússias sobre a guerra. É óbvio que a Rússia, que invadiu a Ucrânia, é o principal responsável pela guerra, mas também é verdade que o dito Ocidente, que assobiou para o lado em 2014, deixando sair a Crimeia para o lado russo, agora tudo faz para manter a guerra. A paz fica para as calendas gregas!

2023.08.31 – Louro de Carvalho

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