segunda-feira, 28 de agosto de 2023

Fim da pandemia levou ao aumento de casamentos de menores

 

Há cada vez mais casamentos com menores, em Portugal, desde o fim da pandemia. No primeiro semestre deste ano, registaram-se 101 casamentos de menores.

De acordo com dados do Ministério da Justiça, desde 2017, houve, em Portugal, 840 casamentos em que, pelo menos, uma das pessoas envolvidas era menor. A mesma entidade revelou que, em 2019, houve cinco condenações por casamento forçado, mas não precisou se houve mais condenações nos anos seguintes. Já a Procuradoria-Geral da República (PGR) referiu que, entre 2015 e o 1.º semestre de 2023, foram abertos 28 inquéritos por casamento forçado, que podem não envolver menores, pois o casamento forçado pode ocorrer com adultos.    

A pandemia levou à redução drástica do número de casamentos e, também, ao dos com menores, mas com o fim das restrições e com a retoma económica, os números voltaram a crescer.

Alexandra Silva, da Plataforma Portuguesa para os Direitos das Mulheres, disse ao Jornal de Notícias (JN) que “deverá haver uma percentagem mais elevada que não oficializa os matrimónios”, pelo que não constam nos números do Registo Civil, continuando os menores casados (unidos de facto ou casados segundo algumas tradições culturais) a viver com os pais, e vincou que “um casamento infantil é sempre um casamento forçado”. Por isso, esta é uma das especialistas que defendem que seja mudada a lei que permite que um menor case a partir dos 16 anos, se tiver autorização dos pais ou autorização do tribunal (ou da conservatória).

Antes da pandemia o número dos casamentos com, pelo menos, um menor no casal estava em subida, mas caiu para 79, em 2020. Não obstante, em 2021, já tinham disparado para 130; e, no ano seguinte, para 158. Os números oficiais dão conta de 101 matrimónios, em que, pelo menos, uma das pessoas tinha menos de 18 anos, entre janeiro e junho deste ano.

De acordo com os dados do Eurostat, 167 jovens de 16 e 17 anos casaram em Portugal. Destes, 123 são raparigas e 44 são rapazes.

Beatriz Imperatori, diretora executiva da Unicef (Fundo das Nações Unidas para a Infância) Portugal sublinha: “A UNICEF entende, assim como o Comité dos Direitos da Criança, que Portugal deve rever a idade mínima para o casamento para os 18 anos.” Na verdade, o crescimento do número de casamentos de menores “constitui uma preocupação e um alerta”.

Já o vice-presidente da Comissão para a Cidadania e a Igualdade de Género (CIG) admite que a revisão da idade “está em cima da mesa”. E fonte do gabinete da Secretária de Estado da Igualdade e Migrações garante que será lançado inquérito para ouvir as entidades que, eventualmente, intervenham em “matéria de casamentos infantis, precoces e forçados”, com o objetivo de colmatar a falta de informação pormenorizada sobre o fenómeno.

São cada vez mais numerosas as vozes que pressionam o Estado português a aumentar a idade mínima para casamento, dos 16 para os 18 anos. E esta é a principal reivindicação de várias entidades de proteção de crianças, de meninas e de mulheres, que são as principais vítimas, segundo os estudos. O grupo de trabalho criado pelo governo para prevenir e combater os casamentos precoces devia ter apresentado um livro branco até ao fim de 2021, prazo que foi prorrogado. No entanto, os especialistas consideram que a permissão do casamento aos 16 anos, sob condições, constitui uma “grave violação dos direitos humanos” e frisam que o Comité dos Direitos da Criança pediu ao país a alteração da lei.

Com efeito, o artigo 1601.º do Código Civil (CC) considera impedimento dirimente absoluto a idade inferior a 16 anos. Porém, este impedimento é facilmente ultrapassável pela autorização dos pais ou do tutor e, no caso de essa autorização ser negada, pode ser suprida pelo conservador do registo civil, nos termos do artigo 1612.º. E o artigo 1604.º considera essa falta de autorização ou do seu suprimento como simples impedimento impediente do casamento. Quer dizer que, se o casamento se fizer, o nubente menor fica apenas sem beneficiar dos efeitos da emancipação, nomeadamente da capacidade de gerir os seus bens (ver artigo 1649.º do CC).   

Assim, para casar antes dos 18 anos, há cobertura legal, o que não acontece para votar, para conduzir automóvel, para beber álcool. Já para consentir uma relação sexual, basta a idade de 14 anos, o que parece ninguém contestar. Resta saber se o hipotético nubente não tem maturidade para decidir sobre o vínculo matrimonial, mas a tem para a relação sexual, que devia ser a sério, a não ser que se legitime a cultura do hedonismo ou a do descarte.  

Beatriz Imperatori admite que os casamentos de menores e as uniões forçadas de crianças e jovens são situações distintas, mas ambas condenáveis.

O casamento forçado (ou união similar) é um crime público, recorde-se.

Como aponta Alexandra Silva, no último exame da Convenção sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres, de junho de 2022, Portugal foi interpelado sobre os casamentos a partir dos 16 anos, sem que o Estado tenha dado uma explicação cabal. 

Alexandra Alves Luís, cofundadora da associação Mulheres sem Fronteiras, adverte que o casamento infantil “é uma realidade considerada parte da cultura e da tradição de certos povos minoritários”, pelo que entende que é preciso ter em conta a possibilidade de haver meninas e mulheres estrangeiras em Portugal não abrangidas, de facto, por alguns direitos constitucionais. 

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As crianças e mulheres são os grupos mais sujeitos à violência e à exploração sexual porque são, ainda, em muitas partes do Mundo, os grupos mais vulneráveis. Os casamentos forçados são uma forma de violência praticada, na maior parte das situações, contra raparigas, retirando-lhes, de forma dramática, a liberdade, os direitos, o acesso à educação e saúde, em especial à saúde sexual e reprodutiva, e originando, invariavelmente, abusos e violência.

A Organização das Nações Unidas (ONU) distingue, nesta matéria, alguns conceitos. Casamento forçado é a união entre duas pessoas, em que, pelo menos, uma delas não deu o consentimento pleno e livre para participar nessa união. É considerado pela mesma organização como uma violação dos Direitos Humanos, pois vai contra os direitos básicos de autonomia e liberdade. Casamento precoce ou infantil é aquele em que a pessoa que se está a casar não tem 18 anos. E casamento arranjado é aquele em que a união é acordada pelas famílias (habitualmente, os pais) podendo haver aceitação ou não da parte de quem se casa.

Em todo o Mundo, uma em cada três mulheres casou antes dos 15 anos de idade. Mais de 700 milhões de mulheres em todo o mundo casaram antes de atingir a maioridade.

As consequências físicas e psicológicas são variadas e graves, nomeadamente porque as meninas que casam enquanto crianças não se encontram com o desenvolvimento físico e emocional concluído. Deste modo, estão mais vulneráveis a violência e a abuso por parte dos maridos.

Por outro lado, são conhecidas complicações mais frequentes durante as gravidezes e partos destas meninas e raparigas, o que, muitas vezes, leva à morte. Também, em termos de acesso à educação e ao trabalho por parte destas meninas e raparigas, o casamento precoce promove bastantes constrangimentos, pois é desvalorizado o papel social da mulher, em relação ao do homem, e o facto de casarem e engravidarem cedo impede-as de continuarem ou de iniciarem as atividades educacionais ou laborais.

Existem argumentos culturais e conexos com tradições que servem para justificar os casamentos forçados, arranjados e precoces, sendo, muitas vezes, vistos pelas próprias meninas como algo que é preciso manter e de que se orgulham. Em algumas comunidades, as meninas que têm casamento arranjado, desde cedo, são mais bem vistas e aceites pela comunidade; e, ao invés, as meninas para quem não surge tal oportunidade são marginalizadas e discriminadas.

Para algumas raparigas de países em desenvolvimento, a possibilidade de casarem com homens mais velhos que residem na Europa (aqui também há casamentos destes) constitui oportunidade para obter melhores condições de vida, conseguindo, não raro, continuar os estudos e trabalhar, sendo que muitas, quando chegam à Europa, conseguem também escapar do casamento e viver uma vida melhor, comparativamente ao país de origem.

Apesar destas razões, há casos em que a prática destes casamentos – forçados, arranjados e precoces – tem consequências extremas, levando a atos de violência e até à morte.

Renata Benavente, vice-presidente da Ordem dos Psicólogos Portugueses (OPP), considera que as consequências, de casamento forçado, num menor, são similares às do abuso sexual, porquanto “interferem na vida da pessoa que sofreu o abuso, na forma como se sente, física e emocionalmente”, e no modo “como se relaciona consigo e com os outros à sua volta”. Trata-se de efeitos que “podem ocorrer a curto, a médio ou a longo prazo”. Além disso, “a esta prática está associado o afastamento da vítima da sua família, o que pode ter um impacto negativo no seu bem-estar emocional”.

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Para obviar a tais fenómenos (casamento forçado, precoce ou arranjado) atuam instituições como as comissões de proteção de crianças e jovens (CPCJ), a Associação de Apoio à Vítima (APAV) e a Associação para o Planeamento da Família (APF). E, por indicação do grupo de trabalho do governo, como resposta às vítimas de práticas nefastas, que atingem, sobretudo, o sexo feminino, foi criado um centro de acolhimento de emergência, que está a funcionar, há dois anos (segundo informação do vice-presidente da CIG), e que recebe “mulheres e meninas vítimas de violência de género, onde se incluem os casamentos infantis, precoces e forçados, e a mutilação genital feminina [MGF]”.  

E está disponível, em https://eeca.unfpa.org/sites/default/files/pub-pdf/FEM_roadmap_POR.pdf, o Roteiro da União Europeia (UE) para o casamento forçado/precoce, que permite aos profissionais da 1.ª linha,  orientação que lhes permita prestar assistência na proteção e apoio de (potenciais) vítimas de casamento forçado/precoce. Os profissionais da 1.ª linha, tais como os que trabalham em centros de acolhimento a imigrantes, as organizações não-governamentais (ONG) que trabalham com migrantes, as casas de abrigo para mulheres vítimas de violência ou de tráfico de seres humanos (TSH), os serviços de saúde, os membros das CPCJ, os magistrados, as escolas e outras organizações educativas, podem utilizar este Roteiro para reforçar a resposta multissetorial ao casamento forçado/precoce.

A APF, nos projetos que desenvolve ou em que participa – de âmbito regional, nacional ou internacional, dedicados ao estudo e compreensão dos fenómenos, à intervenção direta e ao trabalho no terreno ou ao estímulo ao debate público e à resolução das problemáticas que afetam a sociedade –, são sempre orientados para a promoção e salvaguarda dos direitos sexuais e reprodutivos dos cidadãos e das cidadãs. E sobressai como parceira no referido Roteiro da UE.

Segundo a vice-presidente da OPP, “os psicólogos podem contribuir ao nível da intervenção direta junto das vítimas e das famílias”, “com intervenção psicológica especializada”, ao nível da “prevenção junto das comunidades”, desconstruindo mitos e apoiando “a identificação de sinais de alerta”, e ao nível da intervenção junto dos agressores, “com programas específicos, [com] a definição de políticas públicas e [com a] investigação.

Enfim, não podemos contemporizar com certas tradições, costumes e usos que ferem a dignidade da pessoa humana. Porém, além da boa legislação, que urge, será conveniente uma aproximação das pessoas e uma abordagem pedagógica destas questões. Por outro lado, não podem os tribunais, a jusante, anular, casuisticamente, em nome do respeito por tradições e culturas, o que se define, a montante, por via legislativa. Casos como MGF e casamento forçado e infantil são intoleráveis.

2023.08.28 – Louro de Carvalho

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