domingo, 27 de agosto de 2023

Necessária reestruturação na Santa Casa da Misericórdia de Lisboa!

 

A Santa Casa da Misericórdia de Lisboa (SCML), que pretendia, em tempos, salvar o Banco Montepio (ideia de Santana Lopes e de Edmundo Martinho, que, ao tempo, critiquei) – para o que atraiu outras Misericórdias e Instituições Particulares de Solidariedade Social (IPSS) –, agora com menos dinheiro, maus investimentos e efeitos da covid-19, precisa de reestruturação, para acautelar a sustentabilidade financeira, “hoje e no futuro”, vinca a provedora Ana Jorge, que promoveu cortes nos patrocínios ao desporto.

A ex-ministra da Saúde e ex-presidente da Cruz Vermelha Portuguesa (CVP), que chegou à SCML, em maio, para suceder a Edmundo Martinho, revela que a atual gestão se deparou “com problemas de estabilidade financeira e de sustentabilidade”, o que impõe uma reorganização, “sem pôr em causa nenhum dos objetivos”.

O descontentamento das federações de desporto motivou uma reunião entre o secretário de Estado da Juventude e do Desporto, João Paulo Correia, e Ana Jorge, de que resultou a manutenção, em 2023, dos patrocínios da SCML, mas sendo assegurados, em 2024, pela SCML e pelo governo, pois a atuação da SCML vai muito além do desporto e estão em causa seis milhões de euros por ano disponibilizados pela instituição para as diversas iniciativas. Contudo, importa continuar com alguns destes apoios, sobretudo os que reforçam o papel da SCML, por exemplo à “grande à Orquestra Geração”, que envolve crianças e jovens vulneráveis.

Os valores destes apoios e subsídios vêm sendo reduzidos, mas faltam regras para a atribuição das verbas. Com efeito, a SCML tem apoios em diferentes áreas, pelo que tem de renegociar os valores, porque a situação financeira não é confortável, e estabelecer critérios de atribuição, sem olvidar a transparência. Estão em causa, também, eventos culturais, como festivais de música e de cinema, feiras e parcerias com meios de comunicação social.

Em maré de grandes desafios económico-sociais, pretende-se criar um modelo de parceria mais equilibrado e criterioso no apoio ao desporto, nomeadamente através das federações nacionais, do Comité Olímpico de Portugal (COP) e do Comité Paralímpico de Portugal (CPP), parceiros inestimáveis na missão da SMCL. Porém, é de realçar que a revisão do modelo de parceria e do apoio financeiro entre os Jogos Santa Casa e as federações desportivas nacionais, o COP e o CPP não põe em causa o projeto olímpico de 2024.

Recentemente, surgiram dúvidas sobre a gestão da SCML e sobre decisões empresariais lesivas da sua saúde financeira. Com menos receitas dos jogos sociais e com mais despesa no trabalho social, as contas estão em equilíbrio delicado. Na gestão anterior, terá havido incompatibilidades que deterioraram o ambiente e reduziram o número de administradores, com o vice-provedor João Pedro Correia, ex-deputado do Partido Socialista (PS), a renunciar, em fins de 2021, em colisão com Edmundo Martinho, que saiu sem acabar o mandato. Assim, em requerimento de audição à ministra do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social, Ana Mendes Godinho, de abril, sobre a gestão e as contas da SCML, o Partido Social Democrata (PSD) apontou, na instituição, uma “espiral de desintegração”. E, a pedido do governo, decorre a avaliação aprofundada às contas da SCML de 2021 e de 2022 (não publicadas) e a auditoria externa (esta a cargo da empresa BDO) à Santa Casa Global, criada, em 2020, para gerir as lotarias e os jogos de apostas no mercado externo (internacionalização).

Na altura foi atribuído um capital social de cerca de 5 milhões de euros a essa sociedade, detida a 100% pela SCML, num projeto em que esta investiu 20 milhões de euros, para internacionalizar os jogos, nomeadamente em África e na América do Sul, ainda sem retorno.

A SCML tem sido usada para salvar empresas em dificuldades financeiras graves. Ficou com a maioria do capital da sociedade gestora do hospital da CVP e entrou no Montepio, numa posição, entretanto, reduzida a simbólica, depois de a discussão ter surgido na praça pública. Mas a quebra das receitas dos jogos sociais, das quais fica com 26,52%, pôs a instituição no vermelho, realidade que destoa dos últimos anos até 2019, de resultados positivos.

Surgiram também dúvidas sobre a contratação de pessoal. Segundo consta, a dada altura, a SCML era a porta giratória de novos cargos de topo, com altos vencimentos, quando carreiras e salários dos trabalhadores permaneciam congelados, o que gerou descontentamento e greves. Aliás, o Ministério Público (MP) está a investigar as contratações externas de funcionários. Para Ana Jorge, a estagnação dos vencimentos dos cerca de 6500 trabalhadores é preocupante”, pois, tal como as pessoas ajudadas pela SCML, “também eles sofrem com os efeitos da crise global, e é preciso ter capacidade para atender a estas necessidades internas”. E, sem finanças equilibradas, não é possível acudir fora e dentro de casa, como diz a provedora.

O destino do Hospital da Cruz Vermelha ainda está em aberto. “Temos vindo a trabalhar com a Parpública [gestora de participações do Estado, a outra acionista] no sentido de se aumentar a atividade, o que tem sido conseguido”, indica a provedora, adiantando que estão a analisar os benefícios de alienar ou não a sociedade gestora. Não olvidando que é um hospital articulado com o Serviço Nacional de Saúde (SNS), fará todo o sentido manter esta resposta no setor social, decisão que depende também da tutela. “Estamos a fazer uma análise económica e financeira para aferirmos os efeitos do aumento da atividade e se será suficiente para garantir a sobrevivência do hospital”, refere Ana Jorge.

Ainda no âmbito da saúde, estão em equação os outros dois hospitais grandes da SCML, o Centro de Reabilitação de Alcoitão e o Hospital de Santana, importantes pela diferenciação e qualidade, mas que precisam de regras adequadas de funcionamento e de financiamento, para serem sustentáveis, caso contrário fazem falta à estrutura nacional de saúde portuguesa.  

O Ministério do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social (MTSSS), que ainda não aprovou as contas (em avaliação), não comenta os cortes nos patrocínios, nem a gestão da SCML, limitando-se vincar a missão fulcral da instituição de aumentar a sua capacidade e de melhorar as respostas sociais, garantindo maior eficiência e melhorando a sua sustentabilidade financeira.

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As contas da SCML motivaram a ida, em abril, de Ana Mendes Godinho, ao Parlamento, a pedido do PSD, para esclarecer a razão por que não foram homologados os resultados de 2021. Porém, a ministra garantiu que os órgãos deliberativos da SCML estão em plenas funções, recusando a acusação de vários deputados de que a SCML estava em gestão corrente. E disse que regressara a terreno positivo, em 2022, com o lucro de €10,9 milhões, indicando que, em 2020 e em 2021, os prejuízos somaram €52 milhões e €20,1 milhões, respetivamente, pois a pandemia fez-se sentir nas contas, porque teve grande impacto no aumento das despesas, fruto dos casos a que acudiu. Além disso, as contas refletem a redução da receita dos jogos sociais.  

O regresso aos lucros decorreu, apesar da redução das receitas de 17,4%, face a 2019, tendo os gastos subido 10,7%, face ao ano anterior à pandemia. A covid-19 foi um fator de pressão sobre as contas, pois fez subir os custos com as respostas sociais, e caíram, de forma abrupta, as receitas dos jogos. Da despesa, a governante frisou que era fruto do assumir de novas responsabilidades pela SCML, com impacto nos gastos com pessoal, que subiram 14,4%, face a 2019.

Em 2019, antes da pandemia, as receitas correntes da SCML ascenderam a €268,4 milhões, um acréscimo de 5,8%, face ao exercício anterior, devido, sobretudo, ao aumento em €11 milhões da distribuição de resultados dos jogos sociais (84% da receita corrente). O Relatório de Gestão e Contas de 2019 revela que a SCML registou um resultado líquido positivo no valor de €37,5 milhões, o segundo melhor dos últimos anos, só ultrapassado pelo ano de 2017.

Porém, a pandemia não explica tudo e aponta-se o dedo a investimentos e projetos da SCML que ainda não dão retorno e consomem elevado volume de recursos (como o hospital da CVP, cuja sociedade de gestão é controlada pela SCML, desde fins de 2020) ou que demoraram muito tempo a ser desenvolvidos (como a criação da unidade de cuidados continuados no antigo Hospital Militar da Estrela ou a reconversão da fábrica da Nestlé, em Monsanto, em unidade residencial para idosos). E a Santa Casa Global, braço da internacionalização da SCML, está em auditoria.

Também corre uma investigação do MP, como se disse, a contratações externas de funcionários na SCML, após queixa de que estaria a entrar pessoal para o índice remuneratório mais alto, quando permanecem congelados salários e progressões na carreira. E, no atinente à demora da homologação das contas, Ana Mendes Godinho disse que pedira uma análise minuciosa das várias rubricas, face à “disparidade de resultados entre exercícios” e à necessidade de acautelar “a sustentabilidade financeira” futura da instituição.

O modelo de financiamento da SCML foi, aliás, questionado por alguns deputados, que mencionaram o problema da adição de pessoas mais vulneráveis, como os idosos, a jogos como a raspadinha. Porém, Ana Mendes Godinho frisou que, em oito anos, a SCML disponibilizou €1400 milhões para diversas respostas de ação social, nomeadamente no Programa de Alargamento dos Equipamentos Sociais, no Fundo de Socorro Social, em subsídios às famílias e na rede de cuidados continuados. A grande rubrica de despesa da SCML é a ação social que consumiu €141,23 milhões, em 2020, seguindo-se-lhe a área da saúde, com a despesa corrente de €60 milhões. E o MTSSS aguarda as conclusões da avaliação independente à Santa Casa Global e da reavaliação dos Relatórios de Gestão e Contas da SCML de 2021 e de 2022, nada dizendo sobre mudanças no modelo de gestão ou sobre necessidade de diversificação de receitas.

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Enfim, nem tudo bate com o ser e com a missão da SCML, pessoa coletiva de direito privado e utilidade pública administrativa, cuja tutela cabe ao membro do governo que detém a pasta da Segurança Social, que participa na definição das orientações gerais de gestão, fiscaliza a atividade e faz a coordenação com os organismos do Estado.

Tem por fim, segundo os estatutos, “a realização da melhoria do bem-estar das pessoas, prioritariamente dos mais desprotegidos, abrangendo as prestações de ação social, saúde, educação e ensino, cultura e promoção da qualidade de vida, de acordo com a tradição cristã e obras de misericórdia do seu compromisso originário e da sua secular atuação em prol da comunidade [...]”. E desenvolve as atividades de serviço ou interesse público solicitadas pelo Estado ou por outras entidades públicas.

Além do terço dos resultados líquidos dos jogos sociais, são receitas da SCML: as heranças, legados e doações ou donativos; as comparticipações e contribuições dos utentes; os valores resultantes da venda de bens, produtos e da prestação de serviços; os rendimentos provenientes da gestão do seu património; o resultado de empréstimos; o valor dos prémios prescritos; as dotações, subsídios ou comparticipações atribuídas pelo Estado ou por outras entidades públicas; e quaisquer outras receitas legalmente permitidas.

A adjudicação das receitas dos jogos sociais rege-se pelo Decreto-Lei n.º 23/2018, de 10 de abril, que procedeu à 3.ª alteração ao Decreto-Lei n.º 56/2006, de 15 de março, que regula a distribuição dos resultados líquidos dos jogos sociais, como lotarias, Totobola, Totoloto, Euromilhões ou raspadinha, explorados pela SCML. Tais receitas destinam-se à “multiplicidade de entidades beneficiárias, afetas a fins de natureza social”, com a seguinte distribuição: Ministério da Administração Interna, 3,6% das receitas líquidas dos jogos sociais; Estado, 2,18%; Presidência do Conselho de Ministros, 3,88%; MTSSS, 32,98%; Ministério da Saúde, 15,7%; Ministério da Educação, 10,3%; governos regionais da Madeira e dos Açores, 2,47% e 2,38%, respetivamente; e SCML, “para desenvolvimento de projetos integrados nos seus fins estatutários”, 26,52%.

Uma instituição como a SCML tem de focar-se na ação social (que inclui a cultura e o desporto para os mais carenciados), pelo que não pode dar-se ao luxo de salvar bancos ou instituições financeiras e devia parar com a raspadinha, que aliena, miseravelmente, pessoas sem recursos.

2023.08.26 – Louro de Carvalho

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