sexta-feira, 1 de setembro de 2023

A violência caótica gera o nefasto pesadelo de viver no Haiti

 

Um novo surto de violência causou, pelo menos, 71 vítimas, entre mortos e feridos, em cinco comunidades da área metropolitana de Port-au-Prince, capital do Haiti, no período compreendido entre 15 e 29 de agosto.

Um exemplo dos últimos dias mostra que também aqueles que protestam contra a violência se arriscam a ser vítimas da mesma. Liderados pelo pastor da igreja local, manifestantes membros de uma comunidade desfilavam e empunhavam facões, pedindo a erradicação dos gangues criminosos nas favelas, em Canaã, nos arredores de Port-au-Prince, de modo que seja posto fim à violência e ao sofrimento que ela provoca.  Porém, os manifestantes sentiram-se obrigados a dispersar, quando se viram atacados a tiro.

O ataque ocorreu em Canaã, numa favela nos arredores da capital, fundada por sobreviventes que perderam as suas casas no devastador terramoto de 2010. Os disparos foram filmados em tempo real por jornalistas no terreno. Várias pessoas foram mortas e outras feridas, afirmou Marie Yolène Gilles, diretora do grupo de direitos humanos Fondasyon Je Klere, à Associated Press (AP). Também Gédéon Jean, diretor do Centro de Análise e Pesquisa sobre Direitos Humanos do Haiti, disse à AP que também assistiu ao ataque online e que planeava pedir ao Ministério da Justiça que investigasse. Chamou o pastor de irresponsável, por comprometer um grupo de pessoas e por as colocar numa situação como esta. “A polícia deveria tê-los impedido de irem”, disse Jean. “É horrível de mais que o Estado permita que algo assim aconteça.”

O Haiti vive uma onda de violência e de forte instabilidade institucional, com a situação a agravar-se desde 2021, depois do assassinato do presidente Jovenel Moise Jovenel. Desde então, quadrilhas ultraviolentas tomaram o controlo de grande parte do território nacional.

Os confrontos envolvem os gangues rivais G9 e G-Pep, grupos que disputam o controlo de territórios e cobram dinheiro aos moradores, em troca da alegada oferta de ‘proteção’.

A G9 é liderada pelo ex-polícia Jimmy Cherizier, conhecido como Churrasco, e que já foi considerado responsável por outros massacres no passado. Há suspeitas de que o seu grupo se tenha aliado ao partido do presidente Jovenel Moise Jovenel, que foi assassinado há cerca de um ano – o Partido Haitiano Tèt Kale (Parti Haïtien Tèt Kale – PHTK). Cherizier afirmou que o crime contra o presidente foi algo cobarde e horrendo. Já o G-Pep é rival do outro grupo e é amplamente apoiado pelos oponentes políticos do PHTK.

De 1 de janeiro a 15 de agosto, mais de 2400 pessoas foram mortas no Haiti, mais de 950 sequestradas e 902 feridas, segundo as estatísticas mais recentes da Organização das Nações Unidas (ONU).

No 2.º trimestre de 2023, a violência no Haiti registou um aumento de 14% em comparação com o primeiro, com 1860 pessoas mortas, feridas ou raptadas. É o que denuncia o relatório periódico do departamento integrado da ONU no Haiti (BINUH), divulgado a 31 de agosto.

O aumento da violência dos gangues continua concentrado principalmente na capital, Port-au-Prince, e no seu interior, com quase 300 pessoas mortas ou feridas por franco-atiradores no bairro pobre de Cité Soleil, bem como em bairros de similar pobreza.

Os relatos divulgados pelas agências no terreno referem a multiplicação de casos de graves violações e abusos dos direitos humanos, incluindo sequestros, raptos, linchamentos e violência sexual e baseada no género, contra mulheres, contra raparigas e contra rapazes.

A última vaga de violência resultou na deslocação forçada de mais de dez mil pessoas, que encontraram refúgio em mais de vinte locais e em famílias de acolhimento.

De acordo com Philippe Branchat, coordenador humanitário da ONU, “a comunidade humanitária está profundamente preocupada com esta nova escalada de violência extremamente brutal. Famílias inteiras, incluindo crianças, foram executadas, enquanto outras foram queimadas vivas”. “Este recrudescimento da violência tem causado um sofrimento indescritível ao povo haitiano”, acrescentou o responsável.

Apesar das dificuldades de acesso devido à insegurança, os parceiros humanitários estão a prestar a assistência possível aos deslocados, nomeadamente alimentos, água, abrigos, saneamento, cuidados de saúde e apoio psicossocial, em especial às vítimas de violência sexual.

Os dados da ONU indicam que quase metade da população haitiana necessita de ajuda humanitária e alimentar e que cerca de 200 mil pessoas foram obrigadas a fugir das suas casas, um crescimento vertiginoso, relativamente a anos recentes. A esse número haverá que somar os repatriamentos forçados de haitianos vulneráveis de países vizinhos, acompanhados de graves violações dos direitos humanos, os quais terão quadruplicado desde 2022.

Perante o agravar da situação, a organização de direitos humanos Human Rights Watch divulgou um relatório que traça um quadro de recomendações dirigidas a várias entidades que podem contribuir para inverter o rumo deste país caribenho. Essas recomendações resultaram de uma audição de perto de 130 cidadãos, boa parte das quais foram vítimas da violência, realizada nos meses de abril e maio, últimos. O título do documento é eloquente: “Viver num pesadelo”.

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De acordo com este relatório, de que se dá, a seguir, um ligeira amostra, abundam as mortes, os sequestros e o estupro generalizado, visto que os grupos criminosos utilizam a violência sexual para aterrorizar a população e para demonstrar o seu controlo. Os familiares das vítimas e sobreviventes disseram ter sofrido ou testemunhado estes e outros abusos na área metropolitana de Port-au-Prince, desde janeiro deste ano. Várias formas de violência foram frequentemente acompanhadas de incêndios em casas e saques, forçando as pessoas a fugir, de que resulta a existência de cerca de duas dezenas de milhares de refugiados e de deslocados.

O governo haitiano não conseguiu proteger as pessoas da violência de grupos criminosos. Para os que vivem nas áreas afetadas, a polícia e outras autoridades quase não existem.

Em resposta, alguns residentes recorreram à “justiça popular”, formando o movimento Bwa Kale, que ganhou força no final de abril de 2023. De acordo com o BINUH, em junho de 2023, o movimento teria matado mais de 200 pessoas suspeitas de serem membros de grupos criminosos, muitas vezes em conluio com polícias.

A situação de segurança é exacerbada por um intenso impasse político, um sistema judicial disfuncional e uma impunidade prolongada para as violações dos direitos humanos. O primeiro-ministro, Ariel Henry, controlou todas as funções executivas e parlamentares desde o assassinato do presidente Jovenel Moïse Jovenel, em 2021 e não chegou a um consenso com os atores políticos haitianos, para permitir uma transição democrática. Com base na informação disponível, conclui-se não ter havido processos ou condenações dos responsáveis ​​pelos assassinatos, sequestros e violência sexual, cometidos desde o início do ano.

Entretanto, a ONU estima que quase metade da população total do Haiti, de 11,5 milhões de pessoas, sofre de insegurança alimentar aguda. Mais de 19 mil pessoas que vivem na comuna de Cité Soleil, em Port-au-Prince, enfrentaram uma fome catastrófica no final de 2022, pela primeira vez desde que há registo no Haiti e nas Américas.

Haiti é hoje um dos países com comunidades em maior risco de morrer de fome, ao lado do Afeganistão, do Burkina Faso, do Mali, da Somália, do Sudão do Sul, do Sudão e do Iémen.

A Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura (FAO) e o Programa Alimentar Mundial (PMA) elevaram o Haiti ao “nível de maior preocupação”, em termos de insegurança alimentar, no período de junho a novembro de 2023. Além disso, como foi referido cerca de 5,2 milhões de pessoas necessitam atualmente de assistência humanitária. 

Quase 195 mil haitianos estão deslocados internamente devido à violência desde 2022, e muitos outros deixaram o país, muitas vezes empreendendo viagens perigosas que esperam que levem à segurança. Porém, no 1.º semestre de 2023, mais de 73 mil pessoas foram devolvidas, à força, ao Haiti, muitas vezes em condições abusivas, principalmente na República Dominicana e em outros países, apesar dos elevados níveis de risco para as suas vidas e para a .sua integridade física.

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Enfim, estamos envolvidos pelos sofrimentos do povo ucraniano, provocados por uma invasão externa, e ignoramos – ou fingimos ignorar o que se passa em tantas partes do planeta. E o Haiti é um dos casos de cruel guerra interna, na sequência de uma catástrofe natural, de que não resultou a união das forças vivas do país para a reconstrução, antes descambou a situação num caos provocado, não tanto pela luta pelo poder, mas pela ambição do controlo, concretizada na onda de terrorismo interno organizado em todo o país, mas principalmente nos subúrbios da capital.

E o controlo, que não existe efetivamente, apenas cria o ambiente de terror e de imoralidade e de crime, nas suas mais refinadas modalidades. A ONU e toda a comunidade mundial terão de olhar para o Haiti. É impensável que um povo sofra tanto e a política não se organize em prol do bem comum e da colmatação das necessidades dos cidadãos. Por trás dos números que impressionam, estão as pessoas a sofrer e as que morreram.

2023.01.09 – Louro de Carvalho 

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