quinta-feira, 7 de setembro de 2023

Andar com um pequeno povo numa terra grande

 

Foi deste modo que o Papa caraterizou a Mongólia na viagem apostólica com que prendou os católicos ali residentes de 31 de agosto a 4 de setembro, sob o tema “Esperar juntos”.

Na verdade, como disse no encontro com os jornalistas no voo direto para a capital, Ulaanbaatar (ou Ulan Bator), “a Mongólia parece não ter fim e os habitantes são poucos, um povo pequeno, mas com muita cultura”. Não obstante, Francisco acredita que “nos fará bem compreender este silêncio, tão longo, tão grande”, que nos ajudará a compreender o que significa, “não intelectualmente”, mas “com os sentidos”. E o Pontífice ousa dizer que “talvez seja bom ouvir um pouco da música de Borodin, que soube expressar o que significa [a] extensão e [a] grandeza da Mongólia”.

O escopo da viagem ficou explícito no discurso de Francisco ante o Presidente da República, o Presidente do Grande Hural de Estado (o parlamento unicamaral), o primeiro-ministro, os membros do governo e do corpo diplomático, as autoridades civis e religiosas, os representantes do mundo da cultura e os representantes da sociedade civil.

Exprimindo o seu contentamento por estar numa “terra fascinante e vasta”, para visitar o povo “que conhece bem o significado e o valor do caminho”, que é a perspetiva cristã, Francisco aplica tal sentido às “moradas tradicionais, as ger, encantadoras casas itinerantes”, aliás tendas circulares, “disseminadas pela majestosa terra mongol”, para encontrar e conhecer melhor aquelas pessoas. E apresenta-se na condição de “peregrino da amizade”, que chega ali “em ponta de pés e com o coração feliz”, desejoso de se enriquecer humanamente na presença daquela gente.

Sob o pretexto de estar em casa de amigos, em que se trocam presentes e se exprime a amizade relacional, falou das relações entre a Mongólia e a Santa Sé. É certo que as relações diplomáticas modernas são recentes (ocorre, neste ano, o 30.º aniversário da carta de reforço das relações bilaterais). No entanto, recuando no tempo, frisou que, há 777 anos, (entre o fim de agosto e os princípios de setembro de 1246), o Enviado Papal, Frei Giovanni di Pian del Carpine, visitou Guyug, o terceiro Imperador mongol e apresentou ao Grã Khan a carta oficial do Papa Inocêncio IV. Depois, foi redigida, em carateres tradicionais mongóis, a carta de resposta, com o selo do Grã Khan e traduzida em várias línguas, que está guardada na Biblioteca do Vaticano. E, como presente, ofereceu uma cópia autenticada da carta, “realizada com as técnicas mais avançadas, para garantir a melhor qualidade possível”, desejando que a mesma “seja sinal duma amizade antiga que cresce e se renova”. Em seguida, como é habitual, perorou sobre a cultura e os usos daquele povo, para ir deixando cair os seus grãos de doutrina.

Apontou que as crianças das aldeias, pela manhã, da porta da ger olham o horizonte distante, contam as cabeças de gado e referem o seu número aos pais. Também nós, abraçamos com o olhar o amplo horizonte que nos cerca, superando estreitezas de perspetivas curtas, e abrirmo-nos a “uma mentalidade de respiro global”, como fazem as ger que, “nascidas da experiência do nomadismo das estepes, espalharam-se por um vasto território, tornando-se um elemento identificador de várias culturas vizinhas”.

Também a orografia dos espaços imensos, do deserto do Gobi à estepe, das grandes pradarias aos bosques de coníferas e às cordilheiras dos Altai e dos Khangai, com os inúmeros ziguezagues dos cursos de água, que, do alto, parecem requintadas decorações em tecidos preciosos antigos. Neste “espelho da grandeza e da beleza de todo o planeta”, vocacionado para “jardim hospitaleiro”, a sabedoria do povo se foi sedimentando ao longo de gerações de criadores de gado e de cultivadores prudentes e atentos para não romper os equilíbrios do ecossistema, o que nos ensina a não nos fecharmos “numa míope procura de interesses particulares”, mas a desejarmos “entregar aos vindouros” uma terra acolhedora e fecunda. O que a criação significa para os cristãos é fruto do benévolo desígnio de Deus, que este povo ajuda a reconhecer e a promover com delicadeza e com atenção (em contraste com a devastação humana), com a cultura do cuidado e da previdência, que se reflete em políticas de ecologia responsável. As gers são espaços habitacionais que podemos dizer smart e green, porque versáteis, multifuncionais e com impacto-zero no meio ambiente. E a visão holística da tradição xamânica mongol e o respeito por todo o ser vivo que lhes vem da filosofia budista constituem válido contributo para o compromisso urgente pela tutela da Terra.

Além disso as gers, nas zonas rurais e nos centros urbanizados, testemunham a união entre tradição e modernidade, pois irmanam a vida de idosos e jovens, narrando a continuidade do povo mongol, que, da antiguidade ao presente, soube preservar as suas raízes, abrindo-se, sobretudo nas últimas décadas, aos desafios globais do progresso e da democracia. Com a extensa rede de relações diplomáticas, com a adesão ativa às Nações Unidas, com o empenho pelos direitos humanos e pela paz, a Mongólia desempenha significativo papel no coração do continente asiático e no cenário internacional. E o Papa releva a determinação mongol em deter a proliferação nuclear e apresentar-se ao Mundo como país sem armas nucleares: a Mongólia é nação democrática que faz política externa pacífica, que desempenha papel de relevo em prol da paz mundial e que fez desaparecer a pena de morte do seu ordenamento judiciário.

Pela adaptabilidade aos extremos climáticos, as ger permitem viver em territórios variados, como sucedeu na epopeia do império mongol, que registou a continuidade territorial mais vasta de sempre. E Francisco sublinha que chegou à Mongólia numa data importante, o 860.º aniversário do nascimento de Gengis Khan, o fundador do Império, que, por abraçar terras distantes e muito diversas, relevou a capacidade incomum dos antepassados em reconhecer as grandezas dos povos que compunham o imenso território imperial e em pô-las ao serviço do progresso comum –exemplo a valorizar e repropor nos nossos dias. Queira Deus que, nesta terra devastada por tantos conflitos, se voltem a criar, no respeito das leis internacionais, as condições da que foi outrora a pax mongolica. Como diz o provérbio, “as nuvens passam, o céu permanece”, é imperioso que as escuras nuvens da guerra sejam varridas pela vontade da fraternidade universal, em que se resolvam as tensões com o encontro e com o diálogo, garantindo a todos os direitos fundamentais. Para tanto, Francisco exortou a que, num país rico de História e de Céu, se implore este dom do Alto e se trabalhe em conjunto para construir um futuro de paz.

Entrando numa ger, o olhar sobe até ao ponto central mais alto, onde há a janela para o céu. Por isso, o Papa vinca esta atitude da tradição que ajuda a “saber manter o olhar fixo no alto”, pois elevar os olhos ao céu “significa permanecer numa atitude de dócil abertura aos ensinamentos religiosos”. De facto, é profunda a conotação espiritual por entre as fibras da identidade cultural mongol e é estupendo que o país seja um símbolo de liberdade religiosa.

Pela contemplação dos horizontes infindos, escassamente povoados pelas pessoas, aperfeiçoou-se, no povo, a propensão para a vertente espiritual, cujo acesso é possível, valorizando “o silêncio e a interioridade”. À vista da terra, que se impõe com os inumeráveis fenómenos naturais, brota o “sentimento de maravilha, que sugere humildade e frugalidade, escolha do essencial e capacidade de desapego de tudo o que o não é.” E Francisco aponta o perigo do “espírito consumista” que, “além de criar tantas injustiças, leva ao individualismo que ignora os outros e as boas tradições recebidas”. Porém, as religiões, ao apelarem ao seu património espiritual originário e ao não se deixarem corromper por desvios sectários, são fiáveis suportes “na construção de sociedades sãs e prósperas, onde os crentes se esforçam por que a convivência civil e as diretrizes políticas estejam cada vez mais ao serviço do bem comum”, constituindo uma barreira ao “verme da corrupção”, que é “séria ameaça ao desenvolvimento de qualquer grupo humano, alimentando-se duma mentalidade utilitarista e sem escrúpulos, que empobrece países inteiros” e que “é indicativo dum olhar que se afasta do céu e evita os vastos horizontes da fraternidade, para se fechar em si mesmo e antepor a tudo os próprios interesses”.

Ao invés, muitos dos antigos líderes, “protagonistas dum olhar voltado para o alto e de perspetivas amplas”, mostraram a “capacidade invulgar de integrar vozes e experiências diferentes, inclusive do ponto de vista religioso”. Assim, havia uma “atitude respeitosa e conciliadora” pelas “múltiplas tradições sagradas, como testemunham os vários locais de culto – entre os quais se conta um cristão – tutelados na antiga capital de Kharakhorum”. E foi quase natural o povo “chegar à liberdade de pensamento e de religião”, sancionada pela atual Constituição. Com efeito, superado, sem derramamento de sangue, o ateísmo que pensava ser seu dever extirpar o sentido religioso por o considerar “um travão ao desenvolvimento”, a Mongólia revê-se no “valor essencial da harmonia e sinergia entre os seguidores das diversas crenças que contribuem, cada qual, do seu ponto de vista, para o progresso moral e espiritual”.

Também a comunidade católica deseja continuar a contribuir para isso. Há pouco mais de 30 anos, começou a celebrar a sua fé dentro duma ger, e sugere a sua forma a catedral atual, que se encontra na grande cidade capital – sinais do desejo de partilhar a própria obra, em espírito de serviço responsável e fraterno, com o povo mongol, o seu povo. Por isso, o Bispo de Roma alegra-se por a comunidade católica, apesar de pequena, participar, com entusiasmo e empenho, no “caminho de crescimento do país, difundindo a cultura da solidariedade, a cultura do respeito por todos e a cultura do diálogo inter-religioso, e trabalhando pela justiça, a paz e a harmonia social”. Espera que legislação clara e atenta às exigências concretas permita aos católicos locais, ajudados por homens e mulheres consagrados vindos, na maioria, doutros países, que prestem à Mongólia o seu contributo humano e espiritual, sem dificuldades, em benefício do povo.

A propósito, o Papa considera que as negociações em curso para um acordo bilateral entre a Mongólia e a Santa Sé representam “um canal importante para a obtenção das condições essenciais para o desenvolvimento das atividades ordinárias em que a Igreja Católica se empenha. Entre elas, além da dimensão religiosa e do culto, sobressaem as numerosas iniciativas de desenvolvimento humano integral, nomeadamente nos setores da educação, da saúde, da assistência e da pesquisa e promoção cultural – iniciativas que testemunham “o espírito humilde, o espírito fraterno e solidário do Evangelho de Jesus, a única estrada que os católicos são chamados a percorrer no caminho que partilham com cada povo”.

Depois, sublinha que o tema da viagem “Esperar juntos” exprime “as potencialidades contidas no ato de caminhar com o outro, no respeito mútuo e em sinergia em prol do bem comum”. A Igreja Católica testemunha a “nobre e fecunda tradição espiritual que contribuiu para o desenvolvimento de nações inteiras em muitos campos da convivência humana”, da ciência à literatura, da arte à política. E os católicos mongóis continuarão a estar prontos a contribuir para “a construção duma sociedade próspera e segura, em diálogo e colaboração com todos os componentes que habitam esta grande terra beijada pelo céu”.

E, como não podia deixar de ser, exortou: “Sê como o céu!” – citando o famoso poeta que “convidava a transcender a caducidade das instáveis vicissitudes terrenas, imitando a magnanimidade inspirada pelo imenso e límpido céu azul que se contempla na Mongólia”. E o Papa, peregrino e hóspede neste país, que pode oferecer tanto ao Mundo, quer aceitar este repto, traduzindo-o em sinais concretos de compaixão, diálogo e projeto comum. Que os vários componentes da sociedade mongol, ali representados, continuem a oferecer ao Mundo “a beleza e a nobreza dum povo único”. Podem estar de pé e aliviar tantos sofrimentos humanos, lembrando a todos a dignidade de cada pessoa, chamada a habitar terra abraçando o céu. 

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Enfim, contra o consumismo e corrupção; pela liberdade, convivência e cooperação.

202 3.09.07 – Louro de Carvalho

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