quarta-feira, 20 de setembro de 2023

Urge “melhorar o destino da Humanidade aqui na Terra”

 

Por ocasião do 27.º aniversário da Comunidade do Países de Língua Portuguesa (CPLP), assinalado pela Conferência “O ATLÂNTICO – A NOVA CARTA DO HUMANISMO”, esteve em Lisboa Edgar Morin (de 102 anos), sociólogo, antropólogo, historiador, filósofo francês doutor honoris causa em 17 universidades e um dos últimos grandes intelectuais da época de ouro do pensamento francês do século XX.

A conferência, em que interveio Edgar Morin, com a embaixadora de França, Hélène Farnaud-Defromont, sentada na primeira fila, decorreu na Fundação Oriente, Edifício Álvares Cabral, Doca de Alcântara (Norte) em Lisboa, a 4 de setembro, e foi organizada pela Agrimútuo, pela CE CPLP, pela Confederação Empresarial da CPLP e pelo Instituto do Mundo Lusófono (IMLUS). Guilherme d’Oliveira Martins, administrador executivo da Fundação Calouste Gulbenkian, fez a abertura e Carlos Moedas, presidente da Câmara de Lisboa, encerrou.

O orador, de improviso, abordou a conquista espacial, a inteligência artificial e a guerra, mostrando surpreendente poder de análise na sua idade e recorrendo à sua experiência, que inclui a resistência aos nazis na França, onde nasceu, depois de a família de judeus sefarditas ter emigrado do Império Otomano. Vidal Nahoun é o nome original de Edgar e Morin é nome de guerra ganho no maqui (grupo oculto em zonas montanhosas com vegetação tipo bosque).

A manhã de Edgar Morin e da mulher, a socióloga marroquina Sabah Abouessalam, no dia 4, começou com a ida ao palácio de Belém, onde o presidente da República condecorou o filósofo com a Grã-Cruz da Ordem do Infante D. Henrique, para grande alegria de uma personalidade que conhece e aprecia Portugal, os Portugueses, a sua História e Cultura, tendo sido traduzido e publicado, entre nós, muito cedo. A condecoração explica o atraso no horário da conferência.

No dia 5, houve outro momento alto da passagem de Morin por Lisboa, na Sala de Atos do Instituto Superior de Agronomia. Sob o mote “O poder da língua e o futuro da Humanidade", tratou-se de uma conferência organizada por João Pestana Dias, do THE KLUB, juntamente com o IMLUS, sedeado em Paris. E, fim da tarde, foi entrevistado, para o Diário de Notícias (DN), por Leonídio Paulo Ferreira, tendo o filósofo abordado o risco de uma Terceira Guerra Mundial, as alterações climáticas e as desigualdades criadas pela globalização, bem como a ligação a Portugal, em especial a Mário Soares, que conheceu no exílio deste em Paris. E, à noite, esteve numa casa de fadosm em Alfama, acompanhado de amigos, entre eles Isabelle de Oliveira, professora na Universidade Sorbonne-Paris III e presidente do IMLUS.

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A entrevista foi publicada online a 11 Setembro. Dela se respigam alguns pontos essenciais.

Em relação à conquista do espaço, acredita que será, técnica e cientificamente, cada vez mais possível que o futuro da humanidade passe pela colonização de novos planetas, pois já se pode ir à Lua e será possível ir a Marte. Todavia, considera que, antes de pensarmos em ir aos planetas, temos de melhorar o destino da Humanidade aqui na Terra”. Com efeito, a ideia trans-humanista do aumento ilimitado dos poderes do Homem é a utopia que nos levou ao desastre ecológico. Convictos de que dominaríamos a natureza, “degradámo-la e degradámos a nossa civilização”. Portanto, há que melhorar as relações humanas e criar mais compreensão humana, antes de partirmos à conquista do espaço.

As alterações climáticas são a última etapa da crise ecológica iniciada nos anos 70, diagnosticada pelo professor Meadows e que gerou a degradação da fauna, da flora e da alimentação, mercê da agricultura industrial, que esteriliza os solos. Agravada pelas alterações climáticas, que provocam migrações, desastres, inundações e secas, é o problema urgente cuja solução adiámos, pois os Estados e a opinião pública “não tiveram consciência da gravidade”.

Admite a possibilidade de a guerra na Ucrânia resultar em ataque nuclear de consequências catastróficas, pois agrava-se, cada vez mais, “a escalada entre os dois campos”. A intervenção militar não se confina ao Ocidente, em apoio aos Ucranianos, mas envolverá a China e outros, em prol da Rússia. Mesmo localizada na Ucrânia, a guerra já se tornou internacional, incluindo uma forte vertente económica internacional, “que afeta o abastecimento de muitos países, africanos e outros, e que afeta também as matérias-primas e todo o tipo de abastecimento, o que pode provocar grave crise económica. E, se o conflito se generalizar teremos “uma Terceira Guerra Mundial, de um novo tipo”.

Viveu a Segunda Guerra Mundial, integrando Resistência (em França contra os nazis), e assumiu a vitória dos Aliados como o momento mais importante da sua vida. Mais do que luta enquanto judeu ou enquanto francês, a sua luta foi, sobretudo, enquanto ser humano. E, hoje, ao pensar na Segunda Guerra Mundial, apercebe-se de coisas que não quis ver então. Por exemplo, vendo os bombardeamentos na Ucrânia, recorda que a aviação norte-americana bombardeou todas as grandes cidades alemãs, massacrando milhares e milhares de civis. Porém, os resistentes queriam a vitória aliada. Morin, como comunista, era cego face à Rússia, à União Soviética, quando Estaline tinha mandado executar oficiais polacos em Katyn. Agora, graças à guerra na Ucrânia, percebe que, “na guerra do Bem contra o Mal, em que na Segunda Guerra Mundial o mal eram os nazis, no Bem também havia mal”. Assim, os bombardeamentos americanos e as atrocidades de Estaline (que lhe permitiram colonizar a Polónia) eram mal. Portanto, desconfia de que esta guerra levará a catástrofes históricas.

Sustenta quea globalização está ligada ao domínio do lucro sobre o Mundo”, aprofundando as desigualdades, o que é “um fator de crise”. Por todo o lado, criam-se novas ditaduras e a crise perpassa a democracia mundial – situação muito grave, “em que é preciso pensar e reagir”.

Para Morin, que viveu a Guerra Fria, a queda do Muro de Berlim foi momento de otimismo, bem como a chegada de Gorbatchov ao poder. Todavia, houve fenómenos muito regressivos, na Rússia”; e a Alemanha (foi boa a reunificação) remilitarizou-se – “um problema para o futuro”.

A visita Portugal, com tanta gente a querer ouvir as suas ideias, deixa-o feliz, pois acredita nelas; e, ao ver que são acolhidas e partilhadas, sente “um prazer imenso”. Acredita na virtude do pensamento complexo que, vendo as pessoas a adotá-lo, fica feliz. E da relação especial com Portugal, enfatiza os muitos amigos de cá. Vem a Portugal desde 1960, participou na revista O Tempo e o Modo, que tinha problemas com a censura. Fala de amigos já falecidos, como António Alçada Baptista, Helena Vaz da Silva e Mário Soares (conheceu-o, quando este estava no exílio, em França). Refere que Soares teve dificuldades, porque, a seguir à revolução dos Cravos, houve a tentativa comunista de se apoderar do poder, pelo que escreveu um grande artigo, em França, para defender Mário Soares, pois muitos, em França, diziam que os Portugueses não precisavam de liberdade, mas de pão. Ora, tem haver pão e liberdade.

Pensa que “parte da juventude tomou consciência dos problemas do planeta” e espera que, nessa consciência, encontre a satisfação moral e participe no “combate vital pela espécie humana”.

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Edgar Morin e Sabah Abouessalam escreveram É Hora de Mudarmos de Via – As Lições do Coronavírus, publicado em Portugal, em 2022. A socióloga franco-marroquina de 64 anos, sua mulher desde 2012, vê, com enlevo, o carinho e admiração pelo marido. Sempre que o acompanha em evento público, fica emocionada. Acha que, sobretudo nos últimos anos, tem assistido a algo que não se explica, a não ser como sentimento de amor, que vai além da obra. É o seu humanismo que fala cada vez mais às pessoas, sobretudo a alguma juventude que perdeu valores e referências. Há, de facto, uma crise do pensamento, dos valores, da ética, da política.

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Já em janeiro de 2017, o filósofo falou da Educação, criticando o modelo ocidental de ensino, pois disciplinas fechadas impedem a compreensão do Mundo e do ‘eu’, e sustentando que “é preciso educar os educadores”.

No cenário de mudanças profundas que ocorreram, à escala mundial, nas últimas décadas do século XX – como o avanço da tecnologia de informação, a globalização económica e o fim da polarização ideológica nas relações internacionais –, defende que a maior urgência no campo das ideias não é rever doutrinas e métodos, mas elaborar uma nova conceção do conhecimento. Em vez da especialização, da simplificação e da fragmentação de saberes, propõe um dos conceitos que o tornaram um dos maiores intelectuais do nosso tempo, o da complexidade.

Considera a figura do professor determinante para a consolidação de um modelo ‘ideal’ de educação. É certo que, pela Internet, os alunos podem aceder a todo o tipo de conhecimento sem a presença de professor. Não obstante, é imprescindível a presença do professor, que deve ser o regente da orquestra, observar o fluxo dos conhecimentos e dissipar as dúvidas dos alunos. Por exemplo, quando o aluno buscou uma resposta na Internet, o professor deve corrigir os erros cometidos e criticar o conteúdo pesquisado.

Por outro lado, é imperioso “desenvolver o senso crítico dos alunos”, para o que o papel do professor tem de se transformar, pois a criança não aprende só com os amigos, com a família, com a escola, pelo que é necessário criar meios de transmissão do conhecimento a serviço da curiosidade, que o modelo de educação não pode ignorar.

Sobre os maiores problemas do modelo de ensino atual, Edgar Morin entende que o modelo de ensino do Ocidente é o que separa os conhecimentos artificialmente através das disciplinas, não o que vemos na Natureza. Nos animais e nos vegetais, todos os conhecimentos são interligados. E a escola não ensina o que é o conhecimento, apenas o transmite pelos educadores, “o que é um reducionismo”. Já o conhecimento complexo evita o erro, cometido, por exemplo, quando um aluno escolhe mal a sua carreira. Por isso, “a educação precisa fornecer subsídios ao ser humano, que precisa lutar contra o erro e [contra] a ilusão”.

A explicar o conceito de conhecimento complexo, começa pelo conhecimento simples da perceção visual. A visão das pessoas que estão connosco é uma perceção da realidade, que traduz todos os estímulos que nos chegam à retina. Como na fotografia, as pessoas que estão longe são pequenas, e vice-versa. Essa visão é reconstruída de modo a reconhecermos essa alteração da realidade, pois todas as pessoas apresentam um tamanho similar. Todo o conhecimento “é uma tradução”, seguida de “uma reconstrução”, oferecendo ambos os processos “o risco do erro”. E há outro ponto vital não abordado pelo ensino: “a compreensão humana”. O grande problema da Humanidade “é que todos nós somos idênticos e diferentes, e precisamos lidar com essas duas ideias que não são compatíveis”. E a crise no ensino surge pela ausência dessas matérias que são importantes para o viver. Ensina-se o aluno a ser um indivíduo adaptado à sociedade, mas “ele também precisa se adaptar aos factos e a si mesmo”.

Se disciplinas fechadas impedem a compreensão dos problemas do Mundo, pelas disciplinas, a transdisciplinaridade é o que possibilita, a transmissão de uma visão do Mundo mais complexa. No livro O homem e a morte, tipicamente transdisciplinar, Morin procura entender as diferentes reações humanas ante a morte, através dos conhecimentos da Pré-história, da Psicologia, da Religião, mas teve de viajar por todas as doenças sociais e humanas e de recorrer aos saberes de áreas do conhecimento, como a Psicanálise e a Biologia.

Sustenta a necessidade de estabelecer um jogo dialético entre razão e emoção, pois a razão pura não existe. Assim, o matemático precisa ter paixão pela Matemática: “não podemos abandonar a razão, o sentimento deve ser submetido a um controle racional”. E, para se conhecer o ser humano, é preciso estudar áreas do conhecimento como as Ciências Sociais, a Biologia, a Psicologia. Porém, a Literatura e as Artes também são um meio de conhecimento, pois ajudam a viver a qualidade estética e comunicacional da vida.

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É admirável o posicionamento humano deste sábio, mas importa que o assumamos.

2023.09.20 – Louro de Carvalho

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