quinta-feira, 14 de setembro de 2023

A Igreja ainda não compreende plenamente a riqueza do Evangelho

 

O futuro cardeal Víctor Manuel Fernández, o novo prefeito do Dicastério para a Doutrina da Fé, principal órgão doutrinário da Santa Sé, exprimiu a sua abertura aos debates teológicos, porque ajudam a aprofundar a compreensão que a Igreja tem do Evangelho.

Na verdade, como o hierarca argentino, de 61 anos, referiu, em entrevista exclusiva, por e-mail, a 8 de setembro, a Edward Pentin, do jornal National Catholic Register, do grupo de comunicação católico EWTN (Eternal Word Television Network, o maior canal de televisão católico do Mundo, fundado pela Madre Angélica, em 1981), “a verdadeira doutrina só pode ser luz, guia para os nossos passos, um caminho seguro e uma alegria para o coração”, pois, “é claro que mesmo a Igreja ainda não compreende plenamente toda a riqueza do Evangelho”.

Considerou que “a doutrina não muda, o Evangelho será sempre o mesmo, a Revelação já está encerrada”, mas, indubitavelmente, “a Igreja sempre será pequena, diante de tal abismo de verdade e de beleza, e precisará, sempre, de continuar a crescer na sua compreensão”.

O teólogo argentino criticou tanto os bispos “progressistas” como os “tradicionalistas” que creem ter um “dom especial do Espírito Santo para julgar a doutrina do Santo Padre”, alertando que estão num caminho para a “heresia” e o “cisma”. Com efeito, “os hereges sempre acham que sabem qual é a verdadeira doutrina da Igreja”.

D. Víctor Fernández, confidente próximo e suposto ghost writer do papa Francisco, que foi arcebispo de La Plata, na Argentina, desde 2018, manifestou a sua disposição para considerar as bênçãos da Igreja para as uniões entre pessoas do mesmo sexo, desde que não causem “confusão”. Todavia, na entrevista com Pentin, confessa-se incomodado com as implicações mediáticas de os seus pontos de vista serem considerados alinhados com o Caminho Sinodal da Igreja na Alemanha, que pediu mudanças dramáticas nos ensinamentos da Igreja sobre a moralidade sexual e sobre outros temas.

O cardeal eleito disse que a Igreja na Alemanha “tem sérios problemas e, evidentemente, tem que pensar numa nova evangelização”, mas, como conhece “pouco” sobre ela, em vez disso, falou da sua própria “receita para enfrentar a indiferença religiosa” da sociedade na sua forma de evangelizar como padre e como bispo na Argentina.

Sobre essa “receita”, menciona o seu livro mais famoso Os cinco Minutos do Espírito Santo, com uma meditação, para cada dia, sobre o Espírito Santo e que já vendeu 150 mil exemplares.

Por outro lado, uma vez que foi pároco e bispo diocesano, desafia a que se pergunte aos fiéis da sua paróquia o que fez quando era pároco. E o que se verá são: adorações eucarísticas, cursos sobre o catecismo, cursos bíblicos, missões pelas casas com a Virgem e com uma oração para abençoar o lar; tinha dez grupos de oração e 130 jovens. Como bispo diocesano, se se perguntar às pessoas o que lhes dizia nas homilias na catedral e nas visitas às paróquias, elas saberão responder: sobre Cristo, sobre a oração, sobre o Espírito Santo, sobre Maria, sobre a santificação. E, ainda no ano passado, propôs a toda a arquidiocese de La Plata, “que nos concentrássemos em crescer, juntos, em direção à santidade”.

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“Como o novo prefeito do dicastério para a Doutrina da Fé, confio-te uma tarefa que considero muito valiosa”, escreveu o Papa, em carta a D. Víctor Fernández, publicada com o anúncio da sua nomeação como sucessor do cardeal Luis Ladaria Ferrer, jesuíta de 79 anos, que era o chefe do Dicastério para a Doutrina da Fé, desde 2017, e cujo perfil intelectual, teológico e eclesial D. Fernández enaltece.

Francisco disse que o dicastério promoveu, por vezes, a perseguição de “erros doutrinais” em vez de “promover o conhecimento teológico”. “O que espero de ti é, certamente, algo muito diferente”, contrapunha o Pontífice, desta vez. “Peço-te, como prefeito, que dediques o teu empenho pessoal, de forma mais direta, ao objetivo principal do Dicastério que é guardar a fé”.

O arcebispo D. Fernández tocou em algo semelhante ao falar sobre o seu novo papel na entrevista com Pentin. “Acho que este Dicastério pode ser um espaço que pode acolher estes debates e enquadrá-los na doutrina segura da Igreja, evitando, assim, alguns debates mediáticos mais violentos, confusos e até escandalosos para os fiéis”, especificou.

Porém, frisou coisas concretas sobre os bispos que julgam a “doutrina do Santo Padre”. O Papa não só tem o dever de guardar e preservar o depósito “estático” da fé, mas também um segundo carisma único, concedido apenas a Pedro e aos seus sucessores, que é “um dom presente e ativo”, o de “confirmar os irmãos na fé”. “Eu não tenho esse carisma, […], nem o cardeal [Raymond] Burke. Hoje só o Papa Francisco o tem”, disse, em aparente referência a um prefácio que Burke escreveu para um livro de crítica ao Sínodo sobre a Sinodalidade, do próximo mês de outubro.

Ora, se disserem que alguns bispos têm um dom especial do Espírito Santo para julgar a doutrina do Santo Padre, entraremos num círculo vicioso (onde qualquer um pode pretender ter a verdadeira doutrina) e, além disso, isso seria uma heresia e um cisma. Os hereges acham, sempre, que sabem qual é a verdadeira doutrina da Igreja. E, hoje, não só alguns progressistas caem neste erro, mas também, paradoxalmente, alguns setores tradicionalistas.

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O arcebispo Victor Manuel Fernández respondeu às críticas aos comentários recentes que fez ao National Catholic Register, em que apelou aos bispos a não julgarem a “doutrina do Santo Padre”, dizendo que estava, simplesmente, a referir-se à “assistência especial” do Senhor aos Papas para confirmarem os irmãos na fé. 

Na entrevista de 8 de setembro, o prefeito do Dicastério para a Doutrina da Fé respondeu à pergunta sobre o que o Papa quis dizer ao vincar a importância de aceitar o “magistério recente”. 

O arcebispo disse que os papas têm dois carismas: salvaguardar o “depósito de fé” e um “dom vivo e ativo” que “opera” apenas na pessoa do Santo Padre e de mais ninguém. 

Os seus comentários levaram alguns a interrogar-se se estava a sugerir que o Papa Francisco tinha uma doutrina própria, independente do ensinamento da Igreja, que não deveria ser julgada ou criticada. Tal novidade não estaria de acordo com o ensinamento dogmático da Igreja, que sempre ensinou que o Papa e os bispos em comunhão com ele são os guardiães do depósito de fé recebido do Senhor e transmitido pelos apóstolos. 

Num breve esclarecimento enviado ao National Catholic Register, a 13 de setembro, o cardeal eleito disse que, seguindo a argumentação em torno da asserção de que o Papa tem dois carismas, tal frase se entenderá do modo seguinte: “Somente a Pedro Jesus Cristo prometeu assistência especial para ‘confirmar os irmãos na fé”. Portanto, parece óbvio que ninguém pode dizer – direta ou indiretamente – que Francisco não tem esta assistência e que outros bispos ou padres, supostamente mais ortodoxos, a têm. Ninguém pode atribuir a si mesmo esta função e este carisma que só são próprios do sucessor de Pedro. Isto é bastante óbvio, para um católico, mas certamente não, para um protestante.”

O arcebispo deu uma explicação um pouco mais completa sobre o significado da expressão “magistério recente”, em nova entrevista publicada, a 14 de setembro, pela La Civiltà Cattolica, na qual enfatizou, novamente, o segundo carisma que mencionou na entrevista de 8 de setembro. Referindo-se ao comentário do Papa sobre o “magistério recente”, feito na carta que lhe dirigiu a marcar a sua nomeação como prefeito, no início de julho, D. Fernández disse que é “significativo” que o Papa “também mencione o magistério recente, além de se referir ao ensinamento perene”. “Este é um esclarecimento importante”, afirmou, “porque é, precisamente, o magistério recente que dialoga com as circunstâncias atuais do Mundo e da Igreja, com a sua cultura e [com] os seus desafios”. O magistério não é mero “depósito”; é também dom vivo que atua através de Francisco. “Se o magistério também é capaz de nos iluminar na nossa peregrinação, neste momento da história”, acrescentou, “devemos deixar-nos guiar pelas suas intervenções recentes e atuais, e não há dúvida de que isso equivale a continuar a beber daquele poço sem fundo que é a Revelação, sempre presente e sempre relevante.”

Em comentário ao InfoVaticana, a 12 de setembro, o cardeal Gerhard Müller enfatizou que a autoridade papal não se baseia no diálogo e no envolvimento com o Mundo, mas num vínculo estreito com o ensinamento estabelecido pela Igreja, transmitido pelos apóstolos. “A autoridade formal do Papa não pode ser separada da ligação fundamental com a Sagrada Escritura, a tradição apostólica e as decisões dogmáticas do magistério que o precedeu”, disse o antigo prefeito do Dicastério para a Doutrina da Fé. “Caso contrário, como Lutero não entendeu o papado, colocar-se-ia no lugar de Deus, o único autor da verdade revelada, em vez de simplesmente testemunhar fielmente, pela autoridade de Cristo, a fé revelada, de uma maneira integral e não adulterada, e [de a] apresentar autenticamente à Igreja”.

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Edward Pentin começou a fazer reportagens sobre o Papa e sobre o Vaticano, na Rádio Vaticano, antes de se tornar correspondente, em Roma, do National Catholic Register da EWTN. Também fez reportagens sobre a Santa Sé e sobre a Igreja Católica para muitas outras publicações, incluindo NewsweekNewsmax, ZenitThe Catholic Herald e The Holy Land Review, uma publicação franciscana especializada na Igreja e no Oriente Médio. E é o autor de The Next Pope: The Leading Cardinal Candidates (O próximo papa: os principais candidatos a cardeal: Sophia Institute Press, 2020) e de The Rigging of a Vatican Synod? (Uma investigação sobre a suposta manipulação do Sínodo Extraordinário sobre a Família: Inácio Press, 2015). É possível segui-lo no Twitter em @edwardpentin.

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Enfim, não há dúvida de que o novo prefeito do Dicastério para a Doutrina da Fé, acusado pelos seus detratores de contemporizar demasiado com a mundanidade, é um homem de piedade forte, que entende bem o binómio tradição-inovação e que pode dar um novo rosto ao dicastério a que preside. O Evangelho é o mesmo e o núcleo essencial da doutrina é o mesmo. Porém, é necessária uma nova releitura para um diálogo com uma envolvente nova e que apresenta novas realidades, novos problemas, novas potencialidades, novos sinais de Deus.

O Papa não está a inventar doutrina, mas a lembrar pontos supinamente esquecidos da doutrina, do Evangelho. A sua autoridade também decorre da capacidade de apresentar a doutrina em diálogo com o Mundo e com as culturas. Caso contrário, apresentaria a doutrina como valiosa peça de museu, mas de discutível utilidade para a fé.

E, se é legítimo e útil investigar, escutar criticamente, discernir e expor com frontalidade o que se vai descobrindo, não é lícito que pretenda cada um sobrepor-se ao magistério recente do Papa e dos bispos em união com ele. A autossuficiência pode resvalar para a heresia e para o cisma. Não há verdadeira Teologia sem investigação aprofundante e alargada, estudo, escuta do Espírito, conhecimento e comunicação, mas também não há verdadeira Teologia sem comunhão eclesial, sem pessoas, sem povo, sem pastores.

A Igreja tem de, na sua tarefa constante de reforma, tentar compreender, cada vez mais e melhor, o Evangelho e apresentá-lo com mais clareza e entusiasmo, pela palavra e pelo testemunho.

2023.09.14 – Louro de Carvalho

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