terça-feira, 5 de setembro de 2023

É preciso criar condições para formação de governo em Espanha

 

Os resultados das últimas eleições gerais espanholas deixaram o país num impasse, porquanto o partido vencedor – o Partido Popular (PP), de direita, liderado por Alberto Núñez Feijóo – não tem condições parlamentares para formar governo, mesmo que aos seus 137 deputados agregue os 33 deputados do seu aliado natural, o Vox (de extrema-direita), o deputado da União do Povo Navarro e o da Coligação Canária. São 172 deputados (172 votos), faltando quatro para a maioria absoluta (176 deputados) que legitimaria a investidura do governo à primeira volta.

Como Alberto Núñez Feijóo foi encarregado de formar governo pelo rei Filipe VI, pelo facto de o PP ter sido o partido que obteve o maior número de votos nas eleições de 23 de julho, e como não se vislumbra a possibilidade da investidura à primeira volta, a 26 e 27 de setembro, pelo Congresso dos Deputados, é natural que o líder do PP espere pelo êxito da investidura à segunda volta, bastando que o governo obtenha mais votos a favor de que contra, mesmo que o número de votos a favor não cheguem à maioria absoluta. 

Porém, o eleitorado espanhol optou por distribuir os votos por uma panóplia alargada de partidos. E, embora a direita espanhola não tenha conseguido a maioria confortável para formar governo, também o Partido Socialista Operário Espanhol (PSOE), de centro esquerda – cujo líder é o ainda primeiro-ministro Pedro Sánchez – com o seu aliado natural, a esquerda Somar, ficou ainda mais aquém da almejada maioria absoluta. Agregando aos seus 121 deputados os 31 da frente de esquerda Somar, somarão apenas 152 votos, bem longe dos 176. 

Sendo assim, Pedro Sánchez, que tem os votos do PSOE (121 deputados), quer os da Somar (31) – cuja líder, Yolanda Díaz, vice-primeira-ministra e ministra do Trabalho, se reuniu com Charles Puigdemont em Bruxelas, a 4 de setembro –, o do Bloco Nacionalista Galego (um), os do Partido Nacionalista Basco (cinco) e os do Unir o País Basco (Euskal Herría Bildu, sucessor do braço político do grupo terrorista ETA, 6 votos). E são indispensáveis os do Juntos pela Catalunha (JxC, 7 votos) e os da Esquerda Republicana da Catalunha (ERC, 7 votos). Tudo soma 178 votos.

Ora, se o PSOE quiser que o partido independentista JxC apoie a investidura Pedro Sánchez para terceiro mandato como primeiro-ministro, terá de garantir o “abandono completo e efetivo” da via judicial contra os envolvidos na intentona separatista de 2017. Disse-o, a 5 de setembro, Carles Puigdemont, chefe de facto do JxC e antigo presidente do governo regional catalão (2016-17).

“Estaremos prontos para uma negociação histórica, caso se criem as condições necessárias”, afirmou o eurodeputado foragido à justiça espanhola. Sem elas “não faria sentido embarcarmos numa negociação posterior, porque, na política espanhola, todas as precauções são poucas.”

Em conferência de imprensa, em Bruxelas, num hotel perto do Parlamento Europeu (PE), indicou quatro condições para negociar com o PSOE: a já referida amnistia; o “respeito pela legitimidade democrática” da fação independentista catalã; o respeito pelos direitos humanos; e a criação de um “mecanismo de garantia” dos acordos a firmar entre o governo central e a Catalunha.

Puigdemont, em contraponto ao facto de Madrid ter pedido à Europol que designasse os separatistas catalães como terroristas e o de estes se sentirem espiados e objeto de montagens para detenções sem fundamento, a fim de paralisar a independência da Catalunha, considera que “deve haver um reconhecimento da legitimidade democrática do independentismo”.

Quanto ao fim da via judicial para perseguir os separatistas, defende que o “um de outubro não foi um delito, nem a declaração de independência, nem as manifestações posteriores”, aludindo à data do referendo realizado à revelia da lei espanhola e fortemente reprimido pela polícia. O então presidente proclamou a independência no parlamento regional, dias depois, mas suspendeu-a passados minutos. Porém, logo o governo espanhol, do PP (direita), chefiado por Mariano Rajoy, suspendeu a autonomia da Catalunha, aplicando o artigo 155.º da Constituição, e dissolveu as instituições políticas catalãs.

Nove políticos catalães já foram condenados e cumpriram penas de prisão efetiva por esses factos, tendo beneficiado de indultos promovidos pelo Executivo de Pedro Sánchez. Muitos outros têm processos abertos, incluindo os que optaram pelo exílio, como Puigdemont, que perdeu a imunidade de que gozava por ser membro do Parlamento Europeu (PE) e que, provavelmente, seria preso, se entrasse em Espanha, sob acusações de desvio de fundos e de desobediência.

Por isso, em seu entender, deixar cair a via jurídica é uma “exigência ética”, ao passo que negociar com Madrid é “questão de vontade política”. Consequentemente, porque o considera fulcral para “reparar uma injustiça”, exige uma lei de amnistia “desde a consulta de novembro de 2014”, promovida pelo seu antecessor no governo regional, Artur Mas. E pede um compromisso histórico com a Catalunha, para encetar conversações que venham a culminar num acordo “histórico”. Para tanto, defende a “criação de um mecanismo de mediação e de verificação do seguimento dos acordos que os dois partidos principais não estão hoje em condições de dar”. Justifica-o com a falta de confiança na palavra de Madrid.

Sustentando que não há “receita autonómica” para os problemas da Catalunha, afirma que “o povo catalão tem o direito de tornar realidade a decisão que já tomou em 2017, e só um referendo acordado com o Estado pode alterar esse mandato”. Todavia, Espanha não reconhece validade à votação de 2017, na qual os catalães contrários à independência escolheram em massa não participar, para não legitimar a consulta, por a julgarem ilegal. Com efeito, um referendo legal é impossível à luz da Constituição espanhola, mas esta pode ser revista. Não obstante, é de vincar que Puigdemont não indicou a realização do referendo como condição para apoiar Sánchez.

O governo de Sánchez, tendo já garantido a utilização oficial das diversas línguas nacionais no Parlamento, referiu, por várias vezes, que as concessões têm como limite a Constituição. Se a consulta popular que os independentistas exigem é impossível, já a amnistia, até há poucos meses tabu, começa a ser objeto de discussões políticas e de pareceres de juristas. Yolanda Díaz criou um grupo de especialistas para desbravar o caminho legal para cumprir as exigências dos partidos catalães para a investidura de Sánchez, embora o governo se tenha demarcado da iniciativa.

A questão catalã é controversa entre socialistas. Vários barões regionais e figuras da dimensão do ex-primeiro-ministro Felipe González têm advertido, contra cedências, os que querem dividir Espanha. No entanto, Pedro Sánchez acenou com alguns mimos aos independentistas. Enquanto a legislatura passada foi a dos indultos aos condenados no processo catalão e da reforma dos delitos de sedição e de desvio de fundos, assegurou, numa intervenção em Madrid, que a nova legislatura tem de servir para “deixar realmente para trás a fratura” do conflito político catalão. “É o tempo da audácia, da política, de continuar a avançar na convivência.”

O governo já teve gestos de “boa vontade” para com a ERC e o JxC. Fez eleger presidente do Congresso dos Deputados uma catalanista convicta, Francina Armengol, antiga presidente do governo regional das ilhas Balares; permitiu que os dois partidos catalães tivessem grupo parlamentar próprio, com o que isso implica de subvenções e de poder de intervenção; autorizou o uso das línguas cooficiais do Estado (Catalão, Galego e Basco) nas sessões ordinárias do Parlamento; e abriu caminho para que se tornem oficiais na União Europeia (UE).

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Carles Puigdemont quer negociar. É o que se tira das opiniões de representantes políticos próximos do PSOE, depois de ouvirem as condições que o antigo presidente do governo autónomo da Catalunha estabelece para iniciar negociações, com vista a viabilizar a manutenção de Sánchez no poder. As ditas fontes consideram que o fugitivo à justiça espanhola e exilado em Waterloo, na Bélgica, optou por não erguer uma parede intransponível no rol de requisitos para se sentar a dialogar com o PSOE e com a Somar, que formam o governo de coligação ainda em funções.

O líder de facto do JxC (partido herdeiro da Convergência Democrática, fundada por Jordi Pujol, que governou a região durante mais de duas décadas) traçou, em quatro passos, a via para começar as negociações: uma lei de amnistia de ampla abrangência, vinculada a um abandono “completo e efetivo” da via judicial contra o independentismo; o respeito pela “legitimidade democrática” do movimento separatista; a garantia de que os limites a possíveis pactos serão fixados em acordos internacionais sobre direitos humanos; e a fixação de proteções do cumprimento dos eventuais pactos alcançados, através de novos mecanismos ou figuras ad hoc.

O ex-governante catalão, acompanhado pelo estado-maior do partido e por representantes da força rival dentro do independentismo – a ERC, hoje a liderar o governo regional –, não formulou qualquer exigência de referendo de autodeterminação, ao invés de há seis anos, que protagonizou a organização de tal consulta, à margem da lei, pelo que arrisca ser condenado a prisão.

Fonte próxima da direção do PSOE admite que “Puigdemont sabe que já se fala de amnistia e do seu possível encaixe no quadro constitucional”, o que “permite debate e considerações políticas e jurídicas”. E também sabe que “autodeterminação é um conceito expressamente negado pela Lei Fundamental”, mas não quer esticar a corda por agora.

Isabel Rodríguez, porta-voz do governo e titular da pasta da Política Territorial, reafirmou a postura do Executivo: as posições estão nos antípodas; a ferramenta é o diálogo; a moldura é a Constituição; e o objetivo é a convivência.

Enquanto Puigdemont expunha as suas condições, em Bruxelas, reuniam-se no Congresso dos Deputados, em Madrid, Alberto Núñez Feijóo e Santiago Abascal, respetivamente, chefes do PP e do Vox. Feijóo, que tinha previsto falar com o JxC, considera que “não vale a pena”, dadas as exigências “inconstitucionais” de Puigdemont. E o antigo primeiro-ministro Felipe González (1982-96), secretário-geral do PSOE durante 25 anos e figura respeitada da política espanhola, repudiou as exigências independentistas catalãs. Em entrevista à rádio Onda Cerro, afirmou: “A Constituição não é uma pastilha elástica que se adapte ao desejo particular de cada um. Diga-se, com clareza, que, no âmbito da Constituição, não cabe a amnistia, nem a autodeterminação.”

Também o jornalista Antonio Caño, antigo diretor do diário “El País”, que sublinha, na sua coluna para o jornal digital “The Objective”: “Com Pedro Sánchez à frente, a nossa democracia debilitou-se em muitos aspetos, mas, sobretudo, perdeu a bússola moral.” Começaram por negar os indultos e a amnistia, para fazerem o inverso justificam; opunham-se ao referendo de autodeterminação e vão procurar-lhe encaixe constitucional.

A maior dificuldade é articular legalmente a lei da amnistia exigida pelo JxC. O governo está em gestão, pelo que a sua atuação está muito limitada, fora das questões do quotidiano. O tempo é limitado: depois da previsível investidura falhada de Feijóo, dias 26 e 27. E, se o rei, como se espera, encarregar Sánchez de formar governo, sobram dois meses para evitar a repetição das eleições. Não obstante, figuras da cúpula do PSOE confiam que persuadirão Puigdemont a adotar a flexibilidade necessária para preparar um pacote legal de tal transcendência. Provavelmente, a tarefa será entregue a Yolanda Díaz, que já criou, através do seu colaborador direto Jaume Assens, canais de comunicação estreitos com Puigdemont e com o seu estado-maior. Até foi a Bruxelas dialogar com o antigo governante catalão.

Outro escopo de Puigdemont é chegar ao dia nacional da Catalunha (a “Diada”, a 11 de setembro) com liderança reforçada, sobretudo face à ERC, de Oriol Junqueras, outra personagem do independentismo, que, ao invés de Puigdemont, assumiu as suas responsabilidades na intentona de 2017: ficou em Espanha; e foi detido, julgado, condenado, preso e indultado.

Puigdemont disse e redisse, a 5 de setembro: “Não há condições para uma negociação, é preciso criá-las.” E, apesar dos agravos, pode viabilizar a governação apoiada por sete partidos.

Seja como Espanha merece um governo e precisa dele!

2023.09-05 – Louro de Carvalho

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