segunda-feira, 4 de setembro de 2023

É preciso optar pelo interesse de Deus, sem descurar o bem do homem

 

O profeta Jeremias, seduzido por Javé, pôs toda a sua vida ao serviço de Deus e do seu desígnio. Por isso, enfrentou os poderosos e pôs em causa a lógica do Mundo, o que lhe acarretou o sofrimento solitário e a perseguição. É a a experiência de quem acolhe a Palavra de Deus em seu coração e vive em coerência com os valores de Deus.

O 22.º domingo do Tempo Comum no Ano A leva-nos à contemplação da vida profética de Jeremias, figura veterotestamentária de Jesus, cuja opção foi a via da cruz, para que tenhamos a vida em abundância. Nestes termos, a 1.ª leitura (Jr 20,7-9) apresenta-nos um trecho da confissão de Jeremias sobre a forma como se ligou a Deus.

O profeta nasceu em Anatot (a norte de Jerusalém), por volta de 650 a.C. Ainda novo sentiu-se chamado por Deus ao ministério profético. A sua atividade, que decorreu, sobretudo, no Reino de Judá, estendeu-se até depois da destruição de Jerusalém pelos Babilónios (586 a.C.).  

Viveu num período de grande instabilidade, de gritantes injustiças sociais e de infidelidade religiosa. Quer Joaquim (609-597 a.C.) quer Sedecias (597-586 a.C.) foram reis incapazes de responder às exigências da conjuntura internacional e de manter uma política de neutralidade em relação às grandes potências (sobretudo o Egipto e a Babilónia). E Jeremias, convicto de que Judá estava a ser infiel a Deus, ao deixar de confiar em Javé e ao pôr a esperança nos povos estrangeiros – criticou duramente os líderes do Povo e anunciou uma invasão estrangeira, para a castigar os pecados de Judá. Porém, a sua pregação não foi apreciada pelo Povo e pelos líderes, que, tomando-o como um “profeta da desgraça”, o isolaram e, sob a acusação de traidor o encarceraram, a ponto de correr perigo de vida.

Jeremias – homem sensível, cordial e pacífico – é o paradigma dos profetas que sofreram por causa da missão. Não tendo sido feito para o confronto, Javé chamou-o para “arrancar e destruir, para exterminar e demolir” (Jr 1,10), para predizer desgraças e anunciar destruição e morte, pelo que foi, continuamente, objeto de desprezo e de irrisão.

Jeremias, verdadeiramente apaixonado pela Palavra de Javé, sabia que não teria descanso, se não a proclamasse com fidelidade. Todavia, nos momentos mais negros de solidão, deixou, algumas vezes, que a amargura do coração lhe subisse à boca e se transbordasse em palavras: dirigia-se a Deus e censurava-O por causa dos problemas que a missão lhe trazia.

Assim, o Livro de Jeremias traz, pari passu, queixas e lamentos do profeta. Alguns desses trechos são conhecidos como “confissões de Jeremias”, desabafos em que o profeta expõe a Javé, com sinceridade rebelde, a sua desilusão. O trecho desta dominga faz parte de uma delas. É uma desconcertante oração num momento dramático de desilusão e de desânimo, talvez quando, preso pelos ministros de Sedecias e atirado para uma cisterna, se afundava no lodo.

Esta oração adota a forma de denúncia ou de acusação do profeta ao seu Deus, formulada através da imagem da “sedução”, como se tratasse de pré-namoro (o verbo “pth”, aqui utilizado, aparece em Ex 22,15 para falar da sedução de uma jovem solteira). Assim, Deus insinuou-Se na vida do profeta e dominou-o, ficando o profeta sem saber como resistir a Deus (o verbo “ykl” foi utilizado para definir a forma como Deus atuou em relação ao profeta, “exercendo o poder”). O profeta, embalado pelas promessas desse Deus sedutor, sem capacidade de resistir aos seus jogos de sedução, entregou-se nas suas mãos e dedicou toda a vida ao seu serviço. E Deus que o seduziu abandonou-o, deixando-o entregue aos insultos e às zombarias dos adversários. Por isso, o profeta está dececionado e, por consequência, diz tencionar não voltar a falar Nele, nem em seu nome.

Porém, o profeta não foi capaz levar até ao fim este propósito. Com efeito, o amor por Deus e pela sua Palavra está tão vivo no coração do profeta que é inútil resistir. A Palavra de Deus é um fogo devorador a consumir o coração do profeta e a não o deixar desistir da missão, escondendo-se numa vida cómoda e instalada. Portanto, ao profeta resta continuar ao serviço da Palavra, enfrentando o seu destino, na esperança de, ao longo da caminhada, reencontrar o amor de Deus que, um dia, o seduziu e a que o profeta não sabe renunciar.

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No Evangelho, (Mt 16,21-27) Jesus avisa os discípulos de que o caminho da vida verdadeira não passa pelo triunfo e êxito humanos, mas pelo amor e pelo dom da vida (até à morte, se for necessário). Jesus vai percorrer esse caminho; e quem quiser ser seu discípulo tem de percorrer um caminho semelhante.

O trecho em apreço vem na sequência do proclamado no 21.º domingo (cf Mt 16,13-20), quando a comunidade dos discípulos expressava a sua fé em Jesus como o “Messias, Filho de Deus”. Agora, Jesus explica aos discípulos o sentido autêntico do messianismo e da filiação divina.

Continuamos, ainda, no âmbito da “instrução sobre o Reino”, mas inicia-se uma secção onde se privilegia a catequese sobre o destino de cruz que está no horizonte próximo de Jesus (cf Mt 16,21-17,27), num momento em que as multidões ficaram para trás e os líderes decidiram rejeitar Jesus. Quem continua a acompanhar Jesus, de forma indefetível, é o grupo dos discípulos, pois creem que Jesus é o “Messias, Filho de Deus” e querem partilhar o seu destino de glória e de triunfo. Porém, Jesus explica-lhes que o seu messianismo não passa por triunfos e êxitos humanos, mas pela cruz; e avisa-os de que viver como discípulo é seguir a via do dom da vida.

Mateus escreve para comunidades cristãs do final do século I (anos 80/90), já esquecidas do fervor inicial e acomodadas num cristianismo morno. Com a aproximação de tempos difíceis (no horizonte estão as grandes perseguições do final do século I), é imperioso que os crentes recordem que o caminho cristão não é um caminho fácil, percorrido entre êxitos e aplausos, mas um caminho difícil, que exige a entrega diária da vida.

O trecho em referência pode dividir-se em duas partes. Na primeira (vv. 21-23), Jesus anuncia a sua paixão; na segunda (vv. 24-28), apresenta uma instrução sobre o significado e as exigências do discipulado.

A primeira parte começa com o anúncio de Jesus de que o caminho para a ressurreição passa pelo sofrimento e pela morte na cruz. Com efeito, após o confronto de Jesus com os líderes judeus e tendo estes rejeitado, em absoluto, a pregação do Reino, o judaísmo prepara a eliminação física de Jesus. Jesus tem consciência disso, mas não se demite do desígnio do Reino e anuncia que pretende continuar a apresentar, até ao fim, o plano do Pai.

Pedro, em desacordo com este final, opõe-se, decididamente, a que Jesus caminhe em direção ao destino de cruz, garantindo que não deixará que tal aconteça. E Jesus aplica-lhe uma reprensão veemente. Chama-lhe Satanás por zelar, não os interesses de Deus, mas os dos homens.

Nesse sentido, põe-no no seu lugar: manda-o para trás, ou seja, esclarece que é o discípulo que seguir o Mestre e não é o Mestre a seguir o discípulo.

Por outro lado, cabe ao discípulo zelar os interesses de Deus, em que se inclui o “bem” de todos os homens e o bem do homem todo. Porém, não cabe ao discípulo zelar os “interesses” dos homens (a lógica do Mundo), que são: a riqueza, o poder, o protagonismo, o prestígio, a fama…

A oposição de Pedro – e dos discípulos, visto que Pedro é o porta-voz da comunidade – revela que a sua compreensão do mistério de Jesus é imperfeita e contrária à missão de Jesus. A missão do “Messias, Filho de Deus” é gloriosa e vencedora, mas, na lógica de Pedro, ou seja, na lógica a lógica do Mundo, a vitória não pode estar na cruz e no dom da vida.

Jesus dirige-Se a Pedro com dureza, pois é preciso que os discípulos corrijam a sua perspetiva sobre Jesus e sobre o plano do Pai que Ele vem concretizar. O plano de Deus não passa por triunfos humanos, nem por esquemas de poder e de domínio, mas pelo dom da vida e pelo amor até às últimas consequências (de que a cruz é a expressão mais radical). Ao pedir a Jesus que não embarque no plano do Pai, Pedro repete as tentações que Jesus experimentou no início do seu ministério. Por isso, põe na boca de Jesus a resposta de então ao diabo: “Vade retro, Satana!” As palavras de Pedro – como as do diabo – pretendem desviar Jesus do cumprimento do plano do Pai; e Jesus não transige com qualquer sugestão que O impeça de concretizar, com amor e fidelidade, o desígnio de Deus.

Na segunda parte, Jesus apresenta uma instrução sobre as atitudes próprias do discípulo. Quem quiser ser discípulo de Jesus, tem de “renunciar a si mesmo”, “tomar a cruz” e seguir Jesus no seu caminho de amor, de entrega e de dom da vida.

Renunciar a si mesmo significa abandonar o egoísmo e a autossuficiência, para fazer da vida um dom a Deus e aos outros. O cristão não pode viver fechado em si próprio, preocupado só em concretizar os seus sonhos pessoais, os seus projetos de riqueza, de segurança, de bem-estar, de domínio, de êxito, de triunfo. Deve, antes, fazer da sua vida um dom generoso a Deus e aos irmãos. Só assim poderá ser discípulo de Jesus e integrar a comunidade do Reino.

Tomar a cruz de Jesus e segui-Lo (a cruz é a expressão de um amor total, radical, que se dá até à morte) significa entregar a própria vida por amor. Tomar a cruz é ser capaz de gastar a vida, total e completamente, por amor a Deus e para que os irmãos sejam mais felizes.

No final desta instrução, Jesus explica aos discípulos as razões pelas quais devem abraçar a lógica da cruz. Convida-os a entender que oferecer a vida por amor não é perdê-la, mas ganhá-la. Quem dá a vida a Deus e aos irmãos não fracassa, mas ganha a vida verdadeira que Deus oferece a quem vive de acordo com a sua vontade. Por outro lado, os discípulos são instados a perceber que a vida deste Mundo não é a vida definitiva. Portanto, não devem preocupar-se em preservá-la a qualquer custo, mas procurar encontrar, já nesta terra, essa vida definitiva que passa pelo amor total e pelo dom a Deus e aos outros. E, além disso, devem pensar no seu encontro final com Deus, em que Deus lhes dará a recompensa pelas opções que fizeram (a alusão ao momento do juízo não é rara em Mateus, que recorre a ela para fundamentar as exigências éticas da vida cristã).

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A 2.ª leitura (Rm 12,1-2) insta os cristãos a oferecerem toda a sua existência de cada dia a Deus, o que implica não nos conformarmos com a lógica do Mundo, aprendermos a discernir os planos de Deus e a viver em consequência. E Paulo garante que esse é o sacrifício que Deus prefere.

Depois de apresentar a catequese sobre o plano de salvação, desce a considerações de caráter prático, destinadas a mostrar como deve viver quem é chamado à salvação.

No trecho em referência, vemos que a bondade e o amor de Deus (de que Paulo tratou abundantemente nos capítulos anteriores) postulam uma resposta do homem, que, segundo o apóstolo, consiste em os crentes se oferecerem a si mesmos, literalmente “os vossos corpos”.

É de advertir que o termo “corpo” não designa, aqui, a entidade distinta da alma, mas a pessoa na sua totalidade, enquanto ser em relação. É o homem enquanto ser que se relaciona com Deus, com os outros homens e com o mundo.

Os cristãos são aqueles que se entregam completamente nas mãos de Deus e que, em todos os instantes da sua existência, vivem para Deus. Essa oferta será um “sacrifício vivo, santo e agradável a Deus”. É esse “culto espiritual” (“culto lógico” ou “culto razoável”) que Deus espera do homem. Com o adjetivo “espiritual” aplicado ao culto, Paulo marca a diferença entre o culto formal e exterior, que não compromete o homem e o culto verdadeiro, que brota do coração e que compromete o homem todo. Portanto, na ótica paulina, os crentes devem oferecer inteiramente as suas vidas a Deus; e é esse o culto que Deus espera daqueles sobre os quais derrama a sua misericórdia e a quem oferece a salvação.

Na ótica paulina, oferecer inteiramente a vida a Deus significa, antes de mais, não se conformar com “este Mundo” – isto é, manter uma distância crítica em relação aos seus esquemas e aos valores sobre os quais se constrói o egoísmo e o pecado em termos pessoais ou estruturais. Significa, depois, a mudança de coração, de mentalidade e de inteligência, que possibilite ao homem discernir a vontade de Deus, a fim de percorrer, com fidelidade, os seus caminhos.

O “culto espiritual” de que Paulo fala é, pois, a entrega a Deus da totalidade da vida do homem. Na sua relação com Deus, com os outros homens e com o Mundo, o cristão deve renunciar às vias do egoísmo, da autossuficiência, da injustiça e do pecado; e deve procurar conhecer o desígnio de Deus, acolhê-lo no coração e viver em coerência total com as suas exigências.

Paulo exorta: “Não vos conformeis com este Mundo.” Com efeito, o cristão é alguém que não pactua com um Mundo que se constrói à margem de Deus ou contra os seus valores. O cristão não pode pactuar com a violência como meio para resolver os problemas, nem com a lógica materialista do sucesso a qualquer custo, nem com as leis do neoliberalismo que deixam para trás a multidão de vencidos e de sofredores, nem com as exigências de uma globalização que favorece uns poucos privilegiados, mas aumenta as bolsas de miséria e de exclusão, nem com a forma de organização de uma sociedade que condena à solidão os velhos e os doentes.

Ao mesmo tempo, o apóstolo incita: “Transformai-vos pela renovação espiritual da vossa mente.” Na verdade, a metanoia bíblica postula a mudança das mentalidades, das atitudes e dos comportamentos, que decorre da mudança do coração. Por isso, cada um deve desinstalar-se dos seus preconceitos, das suas certezas e seguranças, dos seus princípios imutáveis, para estar sempre em permanente escuta de Deus, dos seus caminhos, do seu desígnio e das suas propostas.

Assim, zelaremos sempre o interesse de Deus e cuidamos do bem (não dos interesses) de todos os homens e do homem todo.

2023.09.03 – Louro de Carvalho

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