sábado, 9 de setembro de 2023

Beatificação sem precedentes: família inteira recebe honras dos altares

 

Em Markowa (pequena aldeia no Sudeste da Polónia), com perto de 4500 habitantes, é aguardada, com ansiedade e com orgulho, a beatificação da família Ulma, um símbolo da coragem e da compaixão de tantos outros polacos. Estima-se que 300 mil tenham escondido e ajudado Judeus, na Segunda Guerra Mundial, e que cerca de mil tenham sido executados.

Pai, mãe e os sete filhos (um deles recém-nascido, com minutos de vida) serão todos beatificados, a 10 de setembro, num processo canónico inédito na História da Igreja Católica. Exterminados por ocultarem oito judeus na casa de família, em Markowa, já tinham sido considerados Justos entre as Nações pelo Estado de Israel, em 1955. Agora, têm honras de altar.

Casaram em 1935, quatro anos antes do início da guerra. Józef trabalhava no campo, como agricultor e apicultor, e dedicava-se, nos tempos livres, à fotografia; e Wiktoria cuidava da casa e das crianças. Porém, na manhã de 24 de março de 1944, após ter recebido, da parte de um espião, a denúncia de que estariam a dar abrigo a Judeus, uma patrulha nazi cercou-lhes a casa: começou por atirar em direção ao teto, onde se encontrava o sótão, de onde começou a escorrer o sangue dos oito judeus ali escondidos (Shaul Goldmann, com os quatro filhos, Lea Didner, com a filha Reshla, de cinco anos, e Golda Grünfeld). Em baixo, no lugar onde caía o sangue, havia uma mesa sobre a qual fora posta – não se sabe porquê – uma foto das duas mulheres judias. O braço de uma delas mostrava a estrela de David desenhada. Esta foto foi conservada até hoje como “relíquia” deste martírio judaico e cristão.

Depois, trouxeram o casal para fora de casa e dispararam contra Józef e contra Wiktoria (grávida de sete meses). Quando as crianças começaram a gritar, por verem os pais a serem assassinados, os nazis dispararam contra elas: Stanisława, de oito anos, Barbara, de sete, Władysław, de seis, Franciszek, de quatro, Antoni, de três, e Maria, de dois. Depois, incendiaram-lhes a casa, para que não restassem dúvidas aos habitantes da aldeia: era o que lhes aconteceria, caso arriscassem ajudar os Judeus. E, mais tarde, quando o corpo de Wiktoria ia ser colocado dentro do caixão, percebeu-se que, do seu ventre, saíam a cabeça e parte do corpo do bebé recém-nascido. Na iminência do extermínio da família, teria começado a dar à luz.

A história desta família ganhou fama nacional na Polónia e, em menor grau, por todo o Mundo em 2003, quando a arquidiocese de Przemyśyl iniciou o processo de canonização. A fama cresceu quando Francisco aprovou o decreto sobre o martírio dos Ulma, a 17 de dezembro de 2022, abrindo caminho à beatificação.

A celebração do dia 10 de setembro – para a qual são esperadas cerca de 35 mil pessoas – ficará marcada como a primeira vez em que é beatificada uma família inteira. Será presidida pelo cardeal italiano Marcello Semeraro, prefeito do Dicastério para as Causas dos Santos, com a participação do rabino-chefe da Polónia, Michael Schudrich.

O Vatican News, portal de Notícias do Vaticano, dedica ao episódio palavras de apreço.

Vivendo o quotidiano na simplicidade, esta família vivia e tornava vivo o Evangelho. A educação à fé, a oração comum em família, a leitura da Bíblia, tudo isto fazia da família Ulma o que São João Paulo II chamava “Igreja doméstica”, aberta aos mais necessitados. Naqueles anos, “os mais necessitados” eram, sobretudo, os Judeus. A oito deles, a família abriu as suas portas, ofereceu abrigo, comida e amizade, embora estivesse ciente do imenso risco que corria.

Para sabermos mais sobre a história da família Ulma, temos de voltar aos nossos dias, através de Manuela Tulli, jornalista da agência ANSA e autora, com o padre Paweł Rytel-Andrianik, historiador e responsável do Programa Polaco de Vatican News – Rádio Vaticano, do livro “Mataram até as Crianças: a família Ulma mártir que ajudou os judeus” (Edições Ares).

Enviada à Ucrânia, para acompanhar as notícias da tragédia no coração da Europa, a jornalista, que fez escala no Sudeste da Polónia, disse: “Conheci a família Ulma por acaso. Trata-se de uma história que eu não escolhi, mas uma história que me escolheu. […] Na Polónia, vi em todos os lugares imagens, desenhos e fotos desta família numerosa, que viveu há mais de 80 anos. Sinceramente, eu nem sabia quem era, embora os polacos quase o presumissem. Porém, sentiam-se felizes só em vê-los, a estes dois pais tão jovens, já com tantos filhos pequenos. Enquanto estava lá, pensei na guerra de hoje e na guerra de ontem: pensei na amizade de hoje, pois, também hoje, os polacos abriram as portas das suas casas a dois milhões de refugiados. Não foram apenas os institutos e os conventos que deram hospitalidade; pensei na amizade de ontem, no facto de como esta família abriu as portas da sua pobre casa, de apenas dois quartos, a oito judeus.”

E, antes de continuar a viagem, o postulador da beatificação da família Ulma, ao explicar-lhe o que os polacos faziam pelos ucranianos, ofereceu-lhe um livro, pedindo-lhe que dedicasse algum à sua leitura, a fim de conhecer melhor a família. Meteu o livro na mala e partiu para a Ucrânia. Quando regressou à Itália, soube que o Papa decidira beatificar a família Ulma, pelo que procurou “entender melhor a sua história”. 

Em Markowa, entre as paredes da sua casa, encontra-se a Bíblia da família Ulma – ainda conservada – com a palavra “samaritano” sublinhada e com a palavra “sim” escrita em anotação à margem. Era, pois, uma escolha consciente, uma vocação abraçada na simplicidade de uma vida, que permaneceu atuante e harmónica, apesar do período histórico do tempo em que a violência, o ódio e a divisão impunham a desordem. Testemunho desta vida eram também as inúmeras fotos tiradas pelo chefe da família, Josef, fotógrafo amador, homem de talento e ativo na comunidade de Markowa. Depois, a denúncia, a traição e os nazistas, que invadiram a pequena casa da família Ulma, dando tiros em direção ao sótão, onde os amigos judeus estavam escondidos. Foi um massacre. Josef e Wiktoria foram arrastados para fora e fuzilados na presença dos filhos. A mãe estava no sétimo mês de gravidez. Depois do pai e da mãe, foi a vez de os filhos serem “executados” e de a casa ser incendiada.

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O padre Paweł Rytel-Andrianik, historiador e autor do livro, junto com Manuela Tulli, recorda que o assassinato da família Ulma consiste num martírio não apenas cristão: “O padre François-Marie Léthel, consultor do Dicastério para as Causas dos Santos, escreveu no jornal L’Osservatore Romano, que este foi um martírio judaico-cristão. Com esta declaração, quis destacar a evidência dos factos, pois foram assassinadas pessoas inocentes: a família Ulma e oito Judeus: Shaul Goldmann, com os seus quatro filhos, Lea Didner, com a sua filha Reshla, de cinco anos, e Golda Grünfeld.”

O Padre Rytel-Adrianik conclui que, nesta história, notamos os horrores do Holocausto e a luz do Evangelho, que “provém dos que o quiseram incarnar na concretude da vida de cada dia”. O mal da guerra não conseguiu apagar a luz deste acontecimento. Os membros da família Ulma, declarados Justos entre as Nações pelo Estado de Israel e Beatos pela Igreja Católica, foram reconhecidos pela Igreja católica como mártires, até o sétimo filho, ainda vivo no ventre da mãe.

O cardeal Marcello Semeraro, em entrevista para a publicação do livro “Mataram até as Crianças”, disse que, a petição para a beatificação, apresentada ao Santo Padre, incluiu a criatura que estava no ventre da mãe, que havia começado, provavelmente, a dar à luz, por medo, durante a sua execução. De facto, referindo-se a um episódio evangélico, que pode ser chamado Batismo de sangue, como o caso dos Santos inocentes, o purpurado afirmou: “Este é um caso muito singular. Este nascituro, encontrado na fossa comum após o massacre [a cabeça e parte do seu corpo já estavam saindo do ventre de Wiktoria], foi considerado digno do martírio.”

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Pela primeira vez na História da Igreja, será beatificada uma família inteira. Polacos, reconhecidos como os “samaritanos de Markowa”, foram movidos pelo mandamento do amor e pelo exemplo do Bom Samaritano. Constituem exemplo de coragem, de fé e, sobretudo, de amor ao próximo, uma caridade sem limites, capaz de abalar até os mais duros corações, afirma o Padre Witold Burda, postulador da Causa de Beatificação e sacerdote da Arquidiocese de Przemyśl dos Latinos.

“A Igreja está cheia de argumentos teológicos que nos ajudaram a demonstrar aos teólogos do Dicastério para as Causas dos Santos que mesmo aquela criança por nascer, sem batismo nem nome, pode ser considerada mártir da fé de Cristo”, afirma o padre Burda, que lembra o martírio dos Santos Inocentes, as crianças que foram mortas, em Belém, a mando do rei Herodes. É um martírio que continua até aos nossos dias, com muitas crianças, especialmente as não nascidas, descartadas pelo homem. Porém, Wiktoria e Józef Ulma alimentaram-se do amor pela vida e alimentaram os seus filhos, mas, acima de tudo, deram o seu amor ao próximo acolhendo oito Judeus em casa na Segunda Guerra Mundial, sabendo que ajudá-los lhes poria as vidas em perigo.

Em nove anos de matrimónio, tiveram seis filhos que “educaram sabiamente com espírito de fé e amor”, afirma o postulador, “uma fidelidade diária aos dois maiores mandamentos: o do amor a Deus e o do amor ao próximo”. A união da família que participava na missa, todos os domingos, e as orações em casa que o casal rezava diariamente com os filhos lembram-nos a importância da educação que recebemos. “Tudo começa na família: começa-se com a vida, continua-se com a educação.” Na família Ulma, o amor pela pátria e pela terra eram muito fortes. Ambos eram de Markowa, vilarejo que, na época, se caraterizava pelo trabalho na lavoura, o que os levou a ter grande respeito pela terra, como base para nossas vidas.

Já poucas horas após a execução dos servos de Deus, esta morte foi considerada pelo povo como um martírio. As pessoas que relataram o trágico evento falavam com “grande estima e respeito” e esta fama espontânea começou imediatamente. Há muitos anos, um amigo de Józef adoeceu e, a caminho do túmulo da família Ulma, pediu a intercessão deles para que fosse curado – graça que veio a acontecer e que o homem se convenceu de ter recebido por intercessão de Józef.

Desde então, a história e a devoção à família Ulma vem crescendo, não só na Polónia, mas em todo o Mundo. De facto, em 2016, foi inaugurado, em Markowa, um museu dedicado aos Polacos que salvaram os Judeus na Segunda Guerra Mundial.

O nome do museu homenageia a família Ulma e, nos três primeiros anos, foi visitado por cerca de 50 mil pessoas. Além disso, muitos peregrinos param, para honrar, a sua sepultura a cada ano, isto porque representam, para muitos fiéis, um modelo de cônjuges amorosos que construíram as suas vidas, juntos, sobre uma base sólida de fé. A fidelidade diária ao mandamento do amor a Deus e ao próximo é o que distingue os Samaritanos de Markowa. Por isso, o postulador convida todos os casais e famílias a invocarem a intercessão dos Ulma, para que, como os servos de Deus, também possam seguir o caminho do amor, baseando o seu caminho na fé e na presença real de Cristo em suas vidas.  

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Na audiência geral de 28 de novembro de 2018, ao saudar os peregrinos polacos, o Papa recordou que foi aberta, no dia anterior, uma mostra, na Pontifícia Universidade Urbaniana, dedicada à família Ulma, exterminada pelos nazistas alemães (martírio silencioso), na II Guerra Mundial, por terem escondido e ajudado os Judeus: “Esta numerosa família de Servos de Deus, que aguarda a beatificação – disse Francisco – deve ser para todos nós um exemplo de fidelidade a Deus e aos Seus mandamentos, de amor ao próximo e de respeito à dignidade humana”.

A história foi contada ao Papa durante a visita ao campo de extermínio Birkenau, em julho de 2016. Nas perseguições antissemitas, muitos católicos tentavam ajudar os Judeus, mas arriscavam a vida. Józef e Wiktoria não duvidaram. Um espião denuncia-os aos nazistas. Os nazistas capturam os Judeus, matando-os com tiros na nuca. Józef e Wiktoria são assassinados à porta de casa diante das crianças e de muitos habitantes de Markowa obrigados a assistir como advertência a todos. Depois, os nazistas atiram nos seis filhos, com bárbara frieza.

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Por tudo, honra aos mártires, semente de cristãos!

2023.09.09 – Louro de Carvalho

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