domingo, 10 de setembro de 2023

Por vontade de Deus tornamo-nos guardiães dos irmãos

 

É um tema recorrente na visão cristã do Papa Francisco, tal como o do caminho.

Também a liturgia do 23.º domingo do Tempo Comum no Ano A insta à reflexão sobre a nossa responsabilidade face aos irmãos que nos rodeiam. Na verdade, ninguém pode ficar indiferente ante o que ameaça a vida e a felicidade do irmão, pois todos somos responsáveis uns pelos outros, não nos sendo lícito barafustar como Caim: “Acaso sou o guarda do meu irmão?” (Gn 4,9)

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Na primeira leitura (Ez 33,7-9) temos o profeta como sentinela colocada por Deus a vigiar a cidade dos homens. Atento ao desígnio de Deus e à realidade do Mundo, o profeta percebe o que está a subverter o plano de Deus, impedindo a felicidade dos homens, pelo que alerta a comunidade para os perigos que a ameaçam.

Ezequiel é o profeta da esperança. Desterrado na Babilónia desde 597 a.C. (no reinado de Joaquin, quando Nabucodonosor conquista Jerusalém, pela primeira vez, e deporta para a Babilónia a classe dirigente do país), profetiza entre os exilados.

A primeira fase do seu ministério decorre de 593 a.C. (data do chamamento) a 586 a.C. (data em que Jerusalém é arrasada pelas tropas de Nabucodonosor e é deportada a segunda leva de exilados. O profeta procura destruir falsas esperanças e anuncia que, ao invés do que se pensa, o cativeiro está para durar. Os exilados regressarão a Jerusalém e os que lá ficaram (que continuam a multiplicar os pecados) farão companhia aos já desterrados na Babilónia.

Na segunda fase do seu ministério, desde 586 a.C. até cerca de 570 a.C., Ezequiel procura alimentar a esperança dos exilados (privados de templo, de sacerdócio e de culto) e transmitir ao Povo a certeza de que o Deus salvador e libertador – que Israel descobriu na sua História – não os abandonou nem os esqueceu. Pelo conteúdo, não é possível dizer se o trecho que nos é proposto pertence à primeira ou à segunda fase da atividade do profeta. Não obstante, define – com recurso à imagem da sentinela – a missão profética: o profeta é como a sentinela atenta, que escuta os apelos de Deus e que avisa o Povo dos perigos que lhe aparecem no horizonte.

Esta imagem aplicada ao profeta não é nova. Já Habacuc (cf Hab 2,1), Isaías (cf Is 21,6), Jeremias (cf Jr 6,17) e Oseias (cf Os 5,8) recorrem a esta figura para definir a missão profética. Com efeito, a sentinela é o vigilante atento que, enquanto os outros descansam, perscruta o horizonte e procura detetar o perigo que ameaça a cidade, os concidadãos e os camaradas de armas. E, ao pressentir o perigo, tem de dar o alarme. Assim, a comunidade prepara-se para enfrentar o desafio. Ora, se a sentinela não vigiar ou se não der o alarme, será responsável pela catástrofe que atingiu o Povo.

Assim, o profeta é o guarda que Javé pôs na comunidade, para perscrutar o horizonte da História e da vida do Povo e para dar o alarme, quando a comunidade corre riscos. E, para o profeta ser a sentinela eficiente, tem de ser homem de Deus e atento ao Mundo que o rodeia.

O profeta é, acima de tudo, o homem que o Senhor chamou ao seu serviço, pelo que vive em íntima comunhão com Deus; e, nessa comunhão, descobre a vontade de Deus e aprende a discernir o desígnio de Deus para os homens e para o Mundo. Simultaneamente, é um homem do seu tempo, imerso na realidade e nos desafios da sociedade em que se integra; conhece o mundo; e é capaz de ler, em perspetiva crítica, os problemas, os dramas e as infidelidades dos contemporâneos.

Ao contemplar o plano de Deus e a vida do Mundo, percebe o desfasamento entre duas realidades: a realidade da vida dos homens é muito diferente da realidade que Deus projeta.

Perante isto, o profeta não sacode a água da capa a dizer que não é nada com ele. Não se fecha na comodidade e na ignorância das infidelidades dos homens ao projeto de Deus. Não se demite das suas responsabilidades, antes aponta o dedo às escolhas erradas dos irmãos. Na verdade, o profeta recebeu o mandato de Deus para alertar a comunidade para os perigos que a ameaçam. Portanto, custe o que custar, tem de dizer a todos – ainda que os concidadãos não o compreendam ou recusem escutá-lo – que trilhar os errados caminhos desemboca no sofrimento e na morte.

O profeta-sentinela é sinal vivo do amor de Deus pelo seu Povo. É Deus que o chama e o envia em missão, que lhe dá a coragem de testemunhar e que o apoia em tempo de crise, de desilusão e de solidão. O profeta-sentinela é a prova de que Deus continua a oferecer ao Povo rotas de salvação e de vida. E demonstra, indubitavelmente, que Deus não quer a morte do pecador, mas que ele se converta e viva.

E o mínimo da responsabilidade que nos cabe é avisar o ímpio sobre o mau caminho que percorre, para que se converta. Se ele persistir no erro, morrerá nos seus pecados, mas quem o adverte salvar-se-á. Porém, se não advertirmos o ímpio e ele se perder, ser-nos-ão pedidas contas pela sua perda e perder-nos-emos como ele.

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O Evangelho (Mt 18,15-20) deixa clara a nossa responsabilidade em ajudar o irmão a tomar consciência dos seus erros e traça-nos o caminho direito para essa promoção fraterna.  

É dever que resulta do mandamento do amor. E Jesus ensina que o caminho correto para atingir esse objetivo não passa pela humilhação ou pela condenação de quem falhou, mas pelo diálogo fraterno, leal e amigo, que revela ao irmão que a nossa intervenção resulta do amor.

O capítulo 18 do Evangelho de Mateus é conhecido como o “discurso eclesial”. Apresenta uma catequese de Jesus sobre a experiência de caminhada em comunidade. Mateus ampliou algumas instruções apresentadas por Marcos sobre a vida comunitária e compôs, com esses materiais, um dos cinco grandes discursos do seu Evangelho. Os destinatários desta instrução são os discípulos e, através deles, a comunidade a que Mateus dirige o seu Evangelho.

Esta é uma comunidade normal, isto é, é uma comunidade parecida com qualquer uma das nossas. Há tensões entre os diversos grupos e problemas de convivência; há quem, julgando-se superior aos outros, queira ocupar os primeiros lugares; há quem tome atitudes prepotentes, que servem de escândalo aos pobres e aos débeis; há quem magoe e ofenda outros membros da comunidade; há quem tenha dificuldade em perdoar as falhas e os erros dos outros. Para responder a estes problemas, Mateus redigiu uma exortação que insta à simplicidade e à humildade, ao acolhimento dos pequenos, dos pobres e dos excluídos, ao perdão e ao amor. Desenha o modelo de comunidade para todos os tempos: a comunidade de Jesus tem de ser a família de irmãos, a viver em harmonia, dando atenção aos pequenos e aos débeis, escutando os apelos do Pai e vivendo no amor.

O fragmento do “discurso eclesial” em apreço refere-se, em especial, ao procedimento para com o irmão que errou ou que provocou conflito na comunidade.

Em situações destas, os irmãos não devem condenar, sem mais, e marginalizar o infrator. Neste quadro, uma decisão radical é quase sempre não cristã. Deve-se tratar o problema com bom senso, com maturidade, com equilíbrio e, sobretudo, com amor. Por isso, o evangelista traça um itinerário com várias etapas, avançando-se para a seguinte, apenas se a anterior falhar.

Antes de mais, surge o encontro com o irmão, em privado, para se falar com ele, cara a cara, sobre o problema. O caminho correto não passa por mexericar (isso é uma peste, diz o Papa) ou dizer mal “por trás”, por publicitar a falta, por criticar publicamente (ainda que não se invente) e, muito menos, por espalhar boatos, por caluniar ou difamar, mas pelo confronto pessoal, leal, honesto, sereno, compreensivo e tolerante com o irmão em causa.

Se tal encontro não resultar, recorre-se a nova tentativa, que implica o recurso a outros irmãos (“toma contigo uma ou duas pessoas”) que, com serenidade, sensibilidade e bom senso, sejam capazes de fazer o infrator perceber o sem sentido do seu comportamento.

Se também esta tentativa falhar, resta o recurso à comunidade – a Igreja –, que será chamada a confrontar o infrator, a recordar-lhe as exigências do caminho cristão e a pedir-lhe a emenda. E, se o infrator se obstinar no seu comportamento errado, a comunidade terá de reconhecer, com dor, a situação em que o irmão se colocou a si próprio. Mateus preconiza que, nesse caso, o faltoso será considerado como “um pagão ou um cobrador de impostos”.

Porém, isto não significa que os pagãos e os cobradores de impostos não têm lugar na comunidade de Mateus. Pelo contrário, a Igreja continua a ser para “todos, todos, todos”, como diz o Papa.

E não me satisfaz a explicação nostálgica de que, ao usar este exemplo, não se quer atingir a pessoa, mas a situação. É verdade que se trata de imagens judaicas para falar de pessoas instaladas em situações de erro, que se obstinam no seu mau proceder e que recusam todas as oportunidades de integrar a comunidade da salvação. Todavia, é preciso ter em conta que o Mestre antecipou que os publicanos, os pagãos e as meretrizes arrebatarão o Reino dos Céus.

Sendo assim, embora a Igreja tenha o direito de punir e até de excluir (Maldita abundância de excomunhões e de interditos!), cujo exercício deve ser residual, quando não houver outra forma de agir, a recomendação de ter o infrator como pagão ou como publicano merece outra atenção.

Perante a obstinação do infrator, que não deixa de ser nosso irmão, ele deve ser considerado um pagão ou publicano, ou seja, devemos redobrar de atenção e de esforço ou de mudança de tática para o recuperarmos. Não é lícita a sua marginalização, nem a nossa desistência que não constituem remédio. Em todo o caso, Mateus não sugere que a Igreja possa excluir da comunhão qualquer irmão que errou, pois a Igreja é uma realidade divina e humana, onde coexistem a santidade e o pecado. O que se sugere é que a Igreja tem de tomar posição quando algum dos membros recusa, obstinadamente, o Reino e age, frontalmente, contra os ditames de Cristo. Porém, não é ela que exclui o prevaricador: é ele que, pelas suas opções, se põe à margem, onde é bom que não permaneça.

Depois desta instrução sobre a promoção fraterna, Mateus acrescenta três “ditos” de Jesus.

O primeiro refere o poder, conferido à comunidade, de ligar e de desligar. Entre os judeus, a expressão designava o poder para interpretar a Lei com autoridade, para declarar o que era ou não permitido e para excluir ou reintroduzir alguém no Povo de Deus; aqui, significa que a comunidade (antes – cf Mt 16,19 – Jesus dissera estas palavras a Pedro, que representava a totalidade da comunidade dos discípulos) tem o poder para interpretar as palavras de Jesus, para acolher os que aceitam as suas propostas e para excluir os que não estão dispostos a seguir o caminho de Jesus. O segundo sugere que as decisões graves para comunidade devem ser tomadas em clima de oração. Assegura aos discípulos, reunidos em oração, que o Pai os escutará. E o terceiro garante aos discípulos a presença de Jesus na comunidade. Assim, garante que as tentativas de correção e de reconciliação, na comunidade, terão o apoio e a assistência de Jesus. Jesus está, realmente, presente na assembleia eclesial reunida.

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Na segunda leitura (Rm 13,8-10), Paulo convida os cristãos de Roma (e de todos os lugares e tempos) a pôr o mandamento do amor no centro da existência cristã. É uma dívida que temos para com todos os irmãos e que nunca estará completamente saldada.

O apóstolo exorta os crentes a construir toda a sua vida sobre o amor. Cristianismo sem amor é uma mentira. O cristão não pode deixar de amar os irmãos. Porém, esta exigência nunca estará completamente realizada. Qualquer dívida pode ser liquidada de uma vez; o amor não. Em cada instante, é preciso amar e amar sempre mais. O cristão não pode cruzar os braços e dizer que já ama o suficiente ou que já amou tudo: tem uma eterna dívida de amor (a única) para com os irmãos. Tem de amar como Ele (Cristo) nos amou e ama: afetivamente e efetivamente.

O amor está no centro de toda a experiência religiosa. No mandamento do amor, resume-se toda a Lei e todos os preceitos. Os diversos mandamentos não passam de especificações da exigência do amor-serviço. A ideia de que a Lei se resume no amor não é invenção paulina, mas é uma constante na tradição bíblica (cf Mt 22,34-40), mas a que o apóstolo dá poderoso vigor.  

2023.09.10 – Louro de Carvalho

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