sábado, 23 de setembro de 2023

O Papa Pio XII provavelmente sabia do extermínio nazista em 1942

Carta recentemente encontrada sugere que, na Segunda Guerra Mundial, o Papa Pio XII (1876-1958) recebeu informações detalhadas de um padre jesuíta alemão de confiança, de que até seis mil cidadãos Judeus e Polacos eram assassinados, diariamente, nas câmaras de gás da Polónia ocupada pela Alemanha nazi. Esta descoberta contradiz a posição oficial da Santa Sé de que, ao tempo, a informação de posse da Igreja sobre as atrocidades nazis era vaga e não confirmada.

A carta – de 14 de dezembro de 1942, escrita pelo padre jesuíta Lother Koenig, da resistência antinazi, na Alemanha, e endereçada ao secretário pessoal do Papa no Vaticano, padre Robert Leiber – foi encontrada por Giovanni Coco, arquivista do Vaticano, e publicada a 17 de setembro pelo “La Lettura, caderno dominical do jornal italiano Corriere della Sera, sob o título “Pio XII sabia”, e a sua publicação foi aprovada por funcionários da Santa Sé.

A carta refere três campos nazistas – Belzec, Auschwitz e Dachau – e sugere que havia outras cartas trocadas entre Koenig e Leiber, que desapareceram ou ainda não foram encontradas. Assim, para o arquivista, a novidade e a importância do documento vêm do facto de, agora, termos a certeza de que a Igreja Católica da Alemanha enviou a Pio XII notícias exatas e detalhadas sobre os crimes perpetrados contra os Judeus, pelo que o Vaticano tinha informações de que os campos de trabalho eram “fábricas da morte”.

O historiador americano David Kertzer, autor de vários livros sobre Pio XII e sobre o seu papel na Segunda Guerra Mundial, declarou à BBC que a novidade é a carta falar especificamente “dos crematórios, de milhares de Judeus que eram lançados aos fornos, todos os dias”. Por outro lado, é relevante que a carta haja sido apresentada por um arquivista do Vaticano, o que David Kertzer entende como “a demonstração de um esforço no Vaticano – ou, pelo menos, em partes do Vaticano – para começar a aceitar esta história”.

Coco revela que a carta estava entre uma série de documentos que, até pouco tempo, eram guardados, de forma desorganizada, na Secretaria de Estado do Vaticano.

Suzanne Brown-Fleming, diretora de programas académicos internacionais do Museu Memorial do Holocausto dos Estados Unidos da América (EUA), em Washington, sustenta que a publicação destes arquivos mostra que o Vaticano leva a sério a declaração do Papa Francisco de que “a Igreja não tem medo da História”, o que o levou a ordenar a abertura dos arquivos da guerra em 2019. “Existe o desejo e o apoio de que os documentos sejam avaliados cuidadosamente do ponto de vista científico, sejam as suas revelações favoráveis ou desfavoráveis”, diz Brown-Fleming.

“Com a abertura dos arquivos vaticanos daquele período, há três anos, desenterramos uma série de documentos que demonstram como o Papa estava bem informado sobre as tentativas nazistas de exterminar os Judeus da Europa, desde o momento em que eles começaram a avançar”, afirmou Kertzer à BBC. “Esta é apenas uma peça a mais.” E Kertzer acrescenta que, além das revelações trazidas por esses documentos, “o que prejudicou a reputação do Vaticano foi sua recusa a enfrentar esta história com os olhos abertos”.

O documento recém-publicado alimentará o debate sobre o legado de Pio XII e a sua controversa campanha de beatificação, atualmente suspensa. Os defensores sempre insistem que o Pontífice trabalhou de formas concretas, nos bastidores, para ajudar os cidadãos judeus e que não se pronunciou sobre o assunto, para evitar o agravamento da situação dos católicos na Europa ocupada pelos nazis. Já os detratores afirmam que, no mínimo, lhe faltou coragem para divulgar as informações que detinha, apesar dos pedidos das potências aliadas.

Por sinal, nos seus livros, Kertzer chegou a revelar uma longa negociação secreta entre Pio XII e Adolf Hitler, com vista a um acordo de não-agressão. Porém, as evidências reunidas indicam que o papel de Pio XII na Segunda Guerra Mundial era ambíguo, pois, embora considerasse o nazismo um movimento político pagão que destratava os católicos, o Papa não foi muito incómodo para o Terceiro Reich e não denunciou claramente o extermínio judeu, embora talvez tivesse conhecimento da barbárie que ocorria na Europa controlada pelos nazis.

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Publicada por la Lettura, a entrevista de Massimo Franco com Giovanni Coco, arquivista do Vaticano, atraiu a atenção da imprensa internacional. Jornais, como o New York Times, o The Guardian e o Wall Street Journal, noticiaram o documento descoberto por Coco: a carta em que o jesuíta alemão Lothar König informava o secretário do Papa Pio XII, Robert Leiber, sobre os crimes que estavam a ser cometidos em Rava Rus’ka, ou seja, no campo de extermínio de Bełzec, onde “seis mil homens, especialmente Polacos e Judeus”, eram eliminados diariamente.

Todos sublinham como o documento, tão explícito sobre os horrores da “solução final”, contradiz a tese segundo a qual Eugénio Pacelli evitou condenar a Shoah por não ter certas  informações do genocídio. Observa Coco, no dia seguinte: “Encontrámos a carta entre os papéis do secretariado pessoal do Papa. Não podemos ter certeza matemática de que Pio XII sabia  disso, mas o contrário seria muito estranho. Leiber era o terminal, à época, das informações que chegavam da Alemanha sobre a perseguição à Igreja Católica. A tarefa era relatar ao Pontífice o que estava a acontecer sob o Terceiro Reich. E sabemos que, às vezes, Pio XII, perfeitamente familiarizado com a língua alemã, não se limitava a examinar os relatórios da sua secretaria, mas lia pessoalmente os documentos enviados a Leiber. Infelizmente, encontramos apenas esta carta de König, mas, pelo que ele escreve, devemos deduzir que é dele a correspondência com a Santa Sé e que foi intensa.” 

Surpreende que o secretário do Papa, quando surgiram as controvérsias na década de 1960 sobre a atitude de Pacelli durante a guerra, se tenha defendido, dizendo, entre outras coisas, que a informação chegada ao Vaticano sobre a Shoah (Holocausto) era incompleta e pouco confiável. Porém, Coco diz ao Corriere della Sera que as dúvidas na fiabilidade das fontes são possíveis, quando se trata de informações que circulam clandestinamente, mas as notas de Leiber na lista de padres detidos em Dachau, anexa à carta de König, sugerem que ele confiava.

Outros historiadores também pensam que Pio XII foi informado do funcionamento da máquina mortífera Belzec. “Leiber contou-lhe tudo”, afirma Andrea Riccardi, autor do ensaio A guerra de silêncio (Laterza). “Estou convencido de que Pio XII conhecia bem o Holocausto, como muitos outros documentos também demonstram. Apenas alguns apologistas alegaram que não  tinha informações suficientes.” E Michele Sarfatti, autora de livros sobre a perseguição aos Judeus, considera a carta impressionante, tanto mais que utiliza uma terminologia que lembra os métodos nazistas, como a referência ao ‘alto-forno’. Outras passagens evocam as ameaças de Hitler contra os Judeus. E König estava ciente do extermínio e pretendia informar o Papa.

Para Alberto Melloni, secretário da Fundação para as Ciências Religiosas (Fscire), o documento pertence ao fluxo de informações que chegou à Santa Sé, naquele período, de onde se podia deduzir que ocorria uma ação genocida. Pio XII entendeu isto: a partir de uma passagem do diário de Angelo Roncalli, futuro João XXIII, parece que, em outubro de 1941, o Papa se interrogara se o seu silêncio em relação às ações dos nazistas não foi mal julgado. Esta é a questão espinhosa: “Por que optou Pacelli por permanecer em silêncio?” Melloni admite que lhe foi difícil distinguir o Holocausto do resto do sofrimento causado pela guerra. Acreditava que a posição mais adequada era uma deploração geral pelo destino dos que foram condenados à morte “unicamente por razões de nacionalidade ou linhagem”, como disse no discurso de Natal.

Riccardi situa a questão no contexto diplomático: Pio XII queria uma posição de imparcialidade, para levar a cabo ações de ajuda humanitária e reservar um espaço para a mediação entre as partes em conflito. Não queria correr o risco de parecer esmagado pelas posições aliadas. E temeu pela estabilidade da Igreja Católica alemã, sujeita a pressões cada vez mais pesadas e insidiosas do regime nazi.

Sarfatti sustenta que Pio XII era prisioneiro, não dos fascistas ou dos nazis, mas do seu passado e do da Igreja Católica, séculos de preconceito contra o povo judeu. Com efeito, no discurso de Natal de 1942, falou dos perseguidos, mas não mencionou os Polacos nem os Judeus. Contudo, alguns meses depois, num discurso proferido a 2 de junho de 1943, lamenta o povo submetido a “constrangimentos exterminadores” e, numa passagem subsequente, recorda o trágico destino do povo polaco. No entanto, não menciona os Judeus. Nos seus discursos a palavra “judeu” não existe, é como uma espécie de buraco negro”. Estaria com medo de piorar a situação? “É difícil ver”, responde Sarfatti, “como poderia ter sido pior para os Judeus”.

O historiador Raul Hilberg demonstrou que 1942 foi o ano mais trágico, com maior número de vítimas do nazismo, reprimida com uma progressão impressionante. Pio XII não conseguiu impedir o massacre e ficou muito triste com o que aconteceu, mas permaneceu enredado na teia da tradição hostil aos Judeus. “Entretanto, o antissemitismo racial, diferente do antissemitismo religioso católico que visava a conversão, atingiu o ponto do massacre em massa. A História avançou mais rápido do que a capacidade da Igreja de entender o que estava a acontecendo”, considera o historiador.

Quanto ao processo de beatificação de Pacelli, Melloni admite que haja dificuldade: “Acredito que seja plausível apenas como um ato de vingança contra uma polémica percebida como uma revolta contra a Igreja. Certamente Pio XII nunca foi cúmplice de Hitler, mas considerá-lo inconsciente significaria fazer uma injustiça ainda maior. Escolheu permanecer em silêncio e isso não pode ser ignorado”.

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Nunca duvidei de que Pio XII não tivesse informação detalhada sobre o Holocausto. Fora Núncio Apostólico em Munique e, depois, em Berlim. Conhecia bem o cerne do nazismo. Tanto assim é que, embora seja acusado de não fazer denúncia pública e contundente contra o regime e lhe imputem o desaparecimento de um acabado projeto de encíclica de Pio XI a recondenar, formal e drasticamente, o nazismo e o fascismo, é apontado como dando cobertura, a partir do Vaticano, a uma conspiração da resistência contra o Terceiro Reich, entregou ao secretário de Estado carta declarativa de renúncia, a apresentar em caso de detenção – levariam o cardeal Pacelli, não o Papa – e deu ordens secretas para acolhimento a Judeus por parte de mosteiros e outras casas religiosas.

Tem cabimento, a meu ver, a condenação pública genérica dos horrores da guerra, para não criar dificuldades acrescidas aos católicos da Alemanha e da Itália. Seria mais profética condenação localizada nesses países. Porém, seria mal aceite um discurso condenatório dos horrores da guerra praticados pelos Aliados na Alemanha, bem como os massacres de Judeus e de Polacos sob Stálin. Edgar Morin, a 4 de setembro, em Lisboa recordou: “Na guerra do Bem contra o Mal, em que, na Segunda Guerra Mundial, o mal eram os nazis, no Bem também havia mal”. Assim, os bombardeamentos americanos e as atrocidades de Stálin (que lhe permitiram colonizar a Polónia) eram mal.” E as bombas atómicas no Japão foram lançadas pelos Americanos!   

Ora, se Pio XII foi pouco audaz, não o foi só para com a política do Eixo, também o foi quanto à política dos Aliados. Geriu a informação detalhada de que dispunha de modo a evitar o agravamento do belicismo. Veja-se o que se passa agora: quando Francisco lamenta a guerra na Ucrânia e para lá envia ajuda material e apoio humanitário, vai tudo bem, mas, se apela às tradições e à História da Rússia, como as raízes dos seus jovens, cai o Carmo e a Trindade.

E, no atinente à beatificação, não se devem confundir narizes, pois esta não premeia a isenção de erros diplomáticos e outros, mas a retidão e a santidade de vida pessoal.           

2023.09.23 – Louro de Carvalho 

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