sábado, 23 de setembro de 2023

Raspadinha afeta cem mil adultos, 30 mil de forma patológica

 

O estudo “Quem paga as raspadinhas?”, promovido pelo Conselho Económico e Social (CES), em parceria com a Universidade do Minho (UM), traça a dimensão do vício e o perfil do jogador da lotaria instantânea. São os mais pobres, mais velhos e com pior saúde mental que mais contribuem para os 4,1 milhões de euros gastos por dia em raspadinhas.

A iniciativa foi lançada em maio de 2022, por Francisco Assis, presidente do CES, que apontou “responsabilidades públicas” ao vício deste jogo e manifestou expetativas de que fossem tomadas decisões para minimizar a situação, após o conhecimento das conclusões. A sua realização esteve prevista para antes do surgimento da covid-19, mas a pandemia e problemas de financiamento, adiaram-no, avançando quando se juntaram ao projeto a Apifarma, a Fundação Mestre Casais, a Fundação Social Bancária e a Fundação Manuel António da Mota.

Os resultados agora conhecidos dizem respeito à primeira fase do referido estudo, faltando duas: a próxima, ainda sem data para arrancar, focar-se-á nos jogadores, numa abordagem realizada nos locais de venda, caraterizando estas pessoas, de forma mais fina, ou seja, com mais perguntas que permitam perceber o diagnóstico da patologia de jogo; e a ulterior será uma fase clínica, com um grupo reduzido de pessoas diagnosticadas com processos complexos de dependência instalada. Far-se-ão ressonâncias magnéticas para detetar alterações cerebrais que levam as pessoas a não se controlarem perante o jogo, para se perceber se há um novo mecanismo cerebral associado a esta adição, ativado pela visualização da raspadinha.

Já havia indicadores do perfil do comprador da raspadinha, ou seja, do que torna este jogo o mais rentável da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa (SCML) – 1,5 mil milhões de euros de lucro bruto por ano: 4,1 milhões por dia – e faz de Portugal o país com maior gasto per capita nesta lotaria, dez vezes mais do que os espanhóis, mais do dobro da média europeia. No quotidiano de cafés e de tabacarias ou nas consultas de psiquiatria, percebe-se que os cartões de raspar atraem uma classe envelhecida, menos esclarecida, pouco abonada.

O estudo valida, agora, de forma científica, e aprofunda cada um dos traços do consumidor frequente: tem mais de 50 anos, o ensino básico ou secundário e rendimentos abaixo do ordenado mínimo. “Tal como outros jogos, também este funciona como um imposto regressivo, em que quem tem menos meios de subsistência é quem mais joga”, explica Luís Aguiar-Conraria, economista e professor catedrático da UM, coordenador do estudo com Pedro Morgado, psiquiatra do Hospital de Braga e investigador na Escola de Medicina da UM.

Através de 2554 inquéritos telefónicos, realizados a residentes maiores de 18 anos, aferiu-se que 8,7% jogam regularmente e que o consumo de raspadinhas é três vezes mais frequente entre quem aufere de 400 a 664 euros por mês do que por pessoas com vencimento líquido superior a 1500 euros. Mesmo os que recebem menos de 400 euros têm o dobro da probabilidade de raspar de forma regular, em comparação com as classes de rendimento superior.

Por outro lado, os consumidores mais viciados são os que alegam sentir necessidade de comprar raspadinhas para ganhar dinheiro. Dizem-no 83% das pessoas que jogam diariamente e 58% das que o fazem semanalmente. E, como quem joga muito em média perde dinheiro, conclui-se que a grande maioria tem perceções erradas das probabilidades associadas aos prémios.

Turvam o julgamento a facilidade de aquisição, o valor baixo da aposta, o prémio imediato.

Só foi possível apurar por defeito quanto cada jogador gasta em raspadinhas, com a certeza de que o valor declarado pelos entrevistados é desmentido pela realidade. Jogam todos os dias, porque precisam de dinheiro, mas perdem a conta à chapa gasta ou omitem este dado.

Quanto a gasto anual médio, a amostra apresenta o valor de 38 euros. Com base nos relatórios de contas da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa (SCML), seria de esperar um valor de 140 a 160 euros anuais. Na origem desta subestimação estará o facto de os inquiridos não darem o valor certo, por haver censura social ou sentimento de culpa, ou por não terem noção do dinheiro em causa. “Seja como for, a realidade será sempre pior”, sustenta Luís Aguiar-Conraria.

A tentar afinar o valor e compreender o enviesamento, a equipa de investigadores da UM olhou para as entrevistas incompletas (1207), não tidas em conta para os resultados. “Nessas, 231 indivíduos chegaram à pergunta de quanto gastavam. Aí, o gasto médio é de 227 euros, isto é, cerca de seis vezes superior à média da amostra das entrevistas completas. Assim, parece que jogadores frequentes e que apostam grandes montantes tendem a parar de responder. Porém, como a caraterística mais prevalente nos jogadores problemáticos é a impulsividade e a impaciência, estes resultados apresentam “per se” muita relevância. “A subestimação dos montantes gastos em jogo é uma das distorções cognitivas mais frequentes nas pessoas com jogo problemático ou patológico”, explica-se.

Além do nível de rendimentos do consumidor, o estudo permite apurar que a aquisição de raspadinhas aumenta à medida que diminui o nível de ensino. Quem não completou ao ensino secundário tem probabilidade quase seis vezes superior de jogar, por oposição a quem tem mestrado ou doutoramento. Quanto a profissões – atual e passada, para caraterizar também os reformados –, saltam à vista os operários (mecânicos, eletricistas, pedreiros, estivadores, etc.) entre os jogadores frequentes. Em matéria de idades, são os mais velhos, entre os 51 e os 65 anos, que em maior número compram lotaria instantânea de forma regular.

A investigação considera que estes aspetos não estão isentos da construção de expectativas erróneas sobre a probabilidade de ganho por parte de quem joga, o que, em parte, justifica a maior frequência de jogo e incrementa o potencial aditivo. Assim, a vulnerabilidade contextual e socioeconómica emerge como dimensão crucial de compreensão dos problemas. Porém, quando o estudo se debruça sobre a saúde dos compradores e sobre o grau de perturbação que a raspadinha traz às suas vidas, é que mede o pulso ao vício. Entre os 2554 entrevistados, 79 jogadores revelaram risco moderado de desenvolver problemas de jogo, dos quais 31 dizem comprar frequentemente raspadinhas. Ou seja, o estudo conclui que 3,09% dos adultos está em risco de desenvolver problemas de jogo e que as questões relacionadas com raspadinhas podem afetar 1,21% dos maiores de 18 anos.

Extrapolando para a população nacional, dir-se-á que, em cerca de 440 mil pessoas que jogam a raspadinhas, há cerca de cem mil adultos (quase 50%), com comportamentos problemáticos, dos quais cerca de 30 mil apresentam perturbação de jogo patológico – número muito significativo e elevado. Há, aqui, ligeiramente mais mulheres do que homens, um traço deste jogo, quando, na generalidade dos vícios, os homens estão em maioria. E, encontra-se, neste grupo, neuroticismo instalado, de ansiedade, raiva, depressão, com alterações de humor e reações impulsivas, o que não acontece noutros jogadores e que pode estar associado a este jogo.

No grupo em que a adição das raspadinhas é especialmente marcante, foram registados mais sintomas leves, moderados e severos de depressão, de ansiedade e de stresse. Há também um consumo superior de tabaco, de café, de bebidas energéticas, de álcool e de outras substâncias, como cannabis ou cocaína, mostrando que são pessoas vulneráveis, no âmbito da saúde.

A associação ao álcool acarreta preocupação acrescida, promovendo desinibição e dificuldade nas tomadas de decisão promotoras de saúde. Este facto, associado a caraterísticas estruturais prévias de funcionamento psicológico, mais evidentes em pessoas com problemas de jogo, indicia que estas ficarão mais vulneráveis ao contacto com os dispositivos de jogo.

A solução do problema não será proibir a venda de raspadinhas, mas regulá-la. As pessoas precisam de ter uma forma de defesa, como sucede noutros jogos. Devem ter a possibilidade de autoexclusão, em que o apostador peça que o ponham numa lista de impedimento de compra de raspadinhas. Nem será preciso mudar as leis. Pode ser a SCML a mudar as regras: limitar a venda diária a cada pessoa; não entregar o prémio na hora, para não ser gasto em mais jogo; aumentar a literacia financeira das pessoas (por exemplo, levá-las a não deitar fora a raspadinha não premia­da, tornando saliente a despesa total ao fim de um período de tempo; fazer campanha contra o excesso de otimismo, fornecer estatísticas de gastos, etc.); não dar destaque à raspadinha no local de venda; não deixar jogar ali; desincentivar a compra, por exemplo, alegando não haver troco.

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Porém, a SCML refere que a raspadinha motiva só 12% dos pedidos de ajuda à instituição.

Todos os dias úteis, entre as 14 horas e as 18 horas, a Linha de Apoio ao Jogo Responsável, da SCML, atende quem tem problemas de jogo, bem como familiares e amigos dos apostadores. Em 2022, recebeu 274 contactos e 135 dos casos (quase 50%) revelaram necessidade de apoio psicológico, sendo reencaminhados para equipas de tratamento do Serviço Nacional de Saúde (SNS) na zona de residência ou referenciados para acompanhamento continuado da própria linha.

O número de chamadas anuais tem descido (diminuiu 25% de 2021 para 2022), mas, nos últimos cinco anos, só em 2019, a gravidade das adições relatadas obrigou a mais encaminhamentos para apoio especializado. São apostadores de diversos tipos de jogos a dinheiro, físicos ou online, dos Jogos Santa Casa ou de outros operadores, não existindo até ao momento uma predominância vincada de qualquer tipo.

A raspadinha, que dá 4,1 milhões de euros de lucro diário bruto à SCML, origina 12% das chamadas de jogadores cuja dependência necessitou de intervenção clínica, um peso que vem a diminuir ao longo dos anos (era de 20%, em 2018). Não chegam, pois, ali os 100 mil viciados nos cartões da lotaria instantânea, entre os quais 30 mil (quase um terço) com perturbação de jogo patológico, números revelados pelo estudo.

Quem tem menos dinheiro é quem mais joga, na tentativa (quase sempre frustrada) de multiplicar os rendimentos. Com 30 cêntimos pode-se ganhar €4500 nas “Letras da Sorte”, €6000 no “Cosmic Pop” ou €7500 na “Joaninha da Fortuna”. Um euro pode render €10 mil no “Mineiro Sortudo” ou €15 mil na “Sorte do Feiticeiro”. E com aposta máxima de €10 pode sair-se do quiosque com €504 mil, dados pelo “Mega Pé de Meia”.

A provedora da SCML, Ana Jorge, assegura que as recomendações serão analisadas e tidas em conta, estando a instituição disponível para trabalhar com vá­rias entidades, a fim de “encontrar soluções dentro do quadro da saúde mental”. Sem falar de medidas concretas – é prematuro –, alerta para as especificidades da lotaria instantânea, que “impõem uma série de constrangimentos técnicos” na aplicação de soluções mais restritivas, e defende que “o principal trabalho passa pelo reforço da prevenção e educação junto da so­ciedade, porque a informação e a consciencialização são a melhor forma de prevenir ou atenuar o problema das dependências”.

Ana Jorge quer reforçar a ligação da SCML com o Serviço de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e nas Dependências (SICAD). Para tal, conta com a concordância do diretor-geral, João Goulão, que quer passar dos contactos informais para uma relação mais institucional, que permita a construção e a execução conjunta de planos estratégicos e planos de ação. Para tal contribuirá o reforçado poder executivo e de intervenção do futuro Instituto para os Comportamentos Aditivos e as Dependências (ICAD), aprovado em Conselho de Ministros, que sucederá ao SICAD.

Do lado do governo, coube a Ana Mendes Godinho reagir à dimensão da dependência nacional da raspadinha, revelada pelo estudo. A ministra do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social garantiu que o Executivo avaliará o estudo e, em função disso, implementará medidas.

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A importância deste estudo do CES consiste em fornecer aos decisores o estado da arte e levá-los a tomar as medidas adequadas para a eliminação ou para a minimização dos problemas, sobretudo através da sensibilização pública, da educação e da fiscalização.

2023.09.23 – Louro de Carvalho

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