quarta-feira, 6 de setembro de 2023

Conselho de Estado excede competências constitucionais e regimentais

A reunião do Conselho de Estado, a 5 de setembro de 2023, teve como temas centrais a análise da situação política, económica e social, para conclusão da reunião de 21 de julho, e a Ucrânia.

“Foi concluída a análise da situação política, económica e social. Quanto ao tema Ucrânia, foi reafirmada a solidariedade e a admiração pela resistência do povo ucraniano e reconhecido todo o apoio que Portugal – com plena concordância entre os órgãos políticos de soberania – tem prestado, nas suas múltiplas dimensões, nomeadamente política, diplomática, militar e humanitária. Foi, ainda, assinalado o compromisso de Portugal no processo de integração da Ucrânia na UE [União Europeia] e na NATO [Organização do Tratado do Atlântico Norte].”

São os termos lacónicos da nota final, que o PR preparara, se fizermos fé em notícias de antes.

Na verdade, a 5 de setembro, o jornal Eco online afiançava que Marcelo já tinha o discurso escrito para concluir a reunião “interrompida” em julho e que António Costa pusera fim ao silêncio do período de férias, marcado pelo veto ao “Mais Habitação” e à estagnação da economia.

O Conselho de Estado de 21 de julho terminou sem a intervenção do primeiro-ministro (PM) e sem a do PR. Por isso, este convocou, para 5 de setembro, nova reunião para dar sequência ao tema iniciado em julho, acrescentando ao debate o tema da Ucrânia. Todavia, como se adensaram, nos últimos tempos, as questões atinentes ao “Mais Habitação”, com o veto do Decreto n.º 81/XV, da Assembleia da República (AR), a economia portuguesa estagnou, a Zona Euro vive sob a ameaça de mais subidas de juros e Marcelo se mostrou, ao lado de Zelensky, um firme defensor da adesão da Ucrânia à UE e à NATO, esta reunião prometia ser tensa.

Cerca de quatro horas e meia, a 21 de julho, não bastaram para os conselheiros chegarem a uma conclusão sobre a situação económica, social e política do país, marcada, sobretudo, pelo rescaldo da crise política de maio, que deixou o PM e o PR de costas voltadas. A viagem do chefe do governo para a Nova Zelândia, onde assistiria ao jogo inaugural da seleção portuguesa no mundial de futebol feminino, e para a visita oficial a Timor-Leste, levou à interrupção da sessão.

Desta vez, previa-se a segunda parte dessa sessão, que o PR justificou com o facto de ter ficado pendente uma intervenção do PM e a sua própria “de fecho”. Por outro lado, recentemente, o Observador noticiou que o PM defendera, na altura, a necessidade de novas regras nas buscas judiciais a partidos políticos e de clarificação da lei de financiamento dos partidos, na sequência da operação desencadeada pela Polícia Judiciária à casa do ex-líder do Partido Social Democrata (PSD). Porém, Marcelo não esperou para acabar de ouvir o PR, tendo revelado que já escrevera as suas declarações finais. “Não vou dizer aqui o que vou dizer lá, mas, numa reunião, toma-se nota e escreve-se a intervenção. Está escrita há muito tempo.” E aludiu à oportunidade de o líder do Executivo poder intervir, direito que todos os conselheiros têm. “O segundo ponto do encontro será a Ucrânia, que também é importante do ponto de vista do condicionamento da evolução não só política, mas económica e social”, acrescentou. Com efeito, visitou o país em agosto, tendo defendido como prioritária a adesão da Ucrânia à UE e à NATO, posição mais firme do que a do PM, aquando da sua ida a Kiev e reconhecida, aliás, pelo presidente ucraniano.

Entretanto, o PR protagonizou mais um momento de tensão entre os dois órgãos de soberania (Presidente da República e Governo), ao vetar a lei mais polémica do programa “Mais Habitação”, nomeadamente no respeitante à regulação do arrendamento coercivo e das novas regras do alojamento local, e ao garantir que a questão não está fechada com a confirmação pela AR, pois os diplomas regulamentares hão de ir às mãos do PR, que os pode vetar ou promulgar.

veto presidencial foi ignorado pelo PM, que deixou nas mãos do ministério da tutela o anúncio de que as medidas destinadas ao setor da habitação avançarão, com o Partido Socialista (PS) a fazer logo saber que vai confirmar o diploma na AR.

Contudo, a maior preocupação do chefe de Estado será, agora, a situação da economia. Os dados do Instituto Nacional de Estatística (INE) mostraram forte abrandamento no segundo trimestre: o produto interno bruto (PIB) registou uma variação nula, em cadeia, e cresceu 2,3% em termos homólogos. E o PR considera que há “sinais internacionais que já começam a ser um bocadinho preocupantes”, em particular no respeitante à inflação. Embora note que a inflação portuguesa está “muito melhor”, face à da Zona Euro (4,3% em Portugal versus 5,3% na área da moeda única), há riscos, devido aos países em que se mantém “alta”. “O Banco Central Europeu (BCE) tem a pressão para aumento de juros e esperávamos uma folga em setembro. Vamos ver que outros números saem antes da reunião [do BCE], mas isso não são boas notícias para um milhão e 800 mil portugueses que têm contratos de crédito com a banca e olham para os juros a subir“, declarou, antes visitar a Festa do Livro.

Outro tema a marcar o encontro seria a redução do imposto sobre o rendimento das pessoas singulares (IRS), uma das propostas centrais do PSD, mas tendo o PS e a Iniciativa Liberal (IL) também projetos nesta área, quando se antecipam as medidas que irão constar na proposta do Orçamento do Estado para 2024. O PR chegou a dizer que há folga orçamental para o fazer, embora reconheça os riscos económicos. E o Ministério das Finanças divulgou a mais recente síntese de execução orçamental, mostrando que as administrações públicas tiveram um excedente orçamental acumulado de 2118 milhões de euros, até julho, o que corresponde a uma melhoria de 1546 milhões, face a 2022. São sete meses consecutivos em que Fernando Medina consegue excedentes orçamentais, um feito inédito desde, pelo menos, 2014.

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O PM, que se remetera a um certo silêncio, nos últimos tempos, considera que as reuniões do Conselho de Estado são “reservadas” e “confidenciais”, vincando que a lei estipula que, só “30 anos depois do fim do mandato do atual Presidente da República [2056], “é que a ata da reunião de ontem vai poder ser conhecida”. E defendeu que os conselheiros “devem sentir-se livres para se expressar ou não expressar”, sustentando que quem quebrou o princípio de confidencialidade prestou um “mau contributo”. “Não contarão comigo para esse mau contributo”, afiançou.

Neste aspeto, o PM está ancorado no Regimento do Conselho de Estado. Com efeito, nos termos do seu artigo 15.º, as reuniões deste órgão de consulta “não são públicas”; e os conselheiros e o secretário “têm o dever de sigilo, quanto ao objeto e [ao] conteúdo das reuniões e quanto às deliberações tomadas e pareceres emitidos”, ressalvada a possibilidade da publicação de nota sucinta no final dos trabalhos, por acordo entre o PR e os conselheiros, e a obrigação da publicação dos pareceres atinentes às matérias em que a consulta do PR é obrigatória (cf artigos 15.º, 16.º, 17.º e 3.º). O lado sigiloso é tão premente que as atas, que são obrigatórias, “não podem ser consultadas nem divulgadas, durante um período de 30 anos a contar do final do mandato presidencial em que se realizaram as reuniões a que respeitam” (cf artigo 13.º, n.º 1 e n.º 4).

Só é de admirar como é que transpira para o exterior o conteúdo das intervenções, a autoria, a postura dos intervenientes e até o que ali se come ou bebe (muito ou pouco).

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O PR esteve 10 dos 20 minutos em que falou a fazer reparos ao governo. E o PM surpreendeu todos por deixar as críticas de Marcelo (e do “grupo dos cinco” mais virulentos) sem resposta.

António Costa teve três oportunidades para falar: em duas, ficou em silêncio e, à terceira, fez uma intervenção de segundos a explicar que não ia intervir. O PM podia falar no início, no fim do primeiro ponto (de análise da situação política), mas manteve-se calado – o que nunca tinha acontecido. Nestas reuniões, o PM fala sempre (mesmo que em intervenção curta). Desta feita, só quebrou o silêncio no atinente à Ucrânia, mas para explicar a terceira etapa do blackout: “Tenho informado, de forma permanente, o senhor Presidente com todos os dados sobre a Ucrânia, pelo que nada tenho a acrescentar.”

Já o PR, segundo o Observador, fez uma intervenção de 20 minutos em que 10 foram a fazer reparos ao governo sobre a TAP, o estado da Saúde e a Habitação. Terá utilizado expressões como “leviandade política”, para classificar episódios polémicos da governação. E foi ao ponto de recuperar o episódio, com mais de um ano, da desautorização de Pedro Nuno Santos pelo PM sobre o Novo Aeroporto de Lisboa. As críticas foram ainda centradas nos casos da comissão parlamentar de inquérito (CPI) à TAP (visando indiretamente João Galamba) e nos problemas na Saúde e na Habitação, com o PR a recuperar argumentos do veto do pacote de habitação.

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Segundo a Constituição (cf artigos 141.º e 145.º), o Conselho de Estado é o órgão de consulta do PR, quanto ao exercício dos seus poderes próprios, devendo, por isso, deve ser a instância em que ele ouve os conselheiros sobre os temas que lhe propõe, nomeadamente para a tomada de decisões.

Não lhe compete, pois, ter escrito, previamente, o discurso que vai fazer, nem o sucinto comunicado sobre o teor da reunião. Com efeito, dada a índole consultiva do órgão, deve ouvir, primeiro, os conselheiros, incluindo o PM, que teve de se ausentar da reunião anterior.

Assim, em vez de discreto local de consulta presidencial, coligindo as opiniões nele emitidas, o Conselho de Estado está a transformar-se numa câmara de ressonância das opiniões ou dos desabafos do PR, depois indevidamente passados à comunicação social.

Parte inferior do formulário

A ordem de trabalhos definida para esta reunião revela o refinado propósito do PR de se “assumir como supremo definidor da agenda política interna e externa do País, condicionando a orientação e as políticas do “governo, de acordo com o seu programa, claramente à margem da Constituição” – diz Vital Moreira – a qual reserva tal competência ao executivo, e só a ele, sob orientação exclusiva do PM. Ao executivo compete a condução da política geral (interna e externa) do país, pela qual responde perante a AR, de que depende politicamente, apenas com a obrigação de manter o PR informado (a que a doutrina acrescenta o dever de consulta qualificada em matéria de política de defesa e de política externa). O PR não tem poder de superintendência política sobre o governo. Pelos vistos, estamos perante “uma deliberada tentativa presidencial de modificação do sistema de governo e de repartição de responsabilidades políticas, constitucionalmente estabelecido”, o que, segundo o renomado académico e constitucionalista, é preciso denunciar, “para que não passe despercebido”.  

Por isso, no dizer de Vital Moreira, o PM “fez bem em não coonestar o exame político do governo a que o PR abusivamente pretendeu submetê-lo no Conselho de Estado”. Com efeito, o governo responde politicamente perante a AR. E o Conselho de Estado nem é um órgão de soberania (um senado ou qualquer outra “segunda câmara parlamentar com poderes de escrutínio político”), nem um fórum ou clube de debate político, muito menos de oposição ou de acomodação, nem mesmo um conjunto de aprendizes de cidadania que precisem de formação política. Por isso, como diz Vital Moreira, “era tempo de fazer prevalecer o quadro constitucional”; e eu digo que é preciso que o Conselho de Estado mantenha a dignidade de órgão constitucional de consulta, sem cair no status de câmara de desabafo do PR ou de clube, e que os conselheiros cumpram os seus deveres.    

E é de todo descabido argumentar que o PR goza de legitimidade eleitoral mais forte do que o governo, por ser eleito por maioria absoluta dos cidadãos e não poder ser demitido. Com efeito, o PR é eleito pelo sistema maioritário, ao passo que a AR, de que dimana o governo, é eleita pelo sistema de representação proporcional. Por isso, é ela que representa o país no seu todo – “todos os cidadãos portugueses” (cf Constituição, artigo 147.º). O PR representa o povo (todos os portugueses), não por força da legitimidade eleitoral, mas por força das suas competências, nomeadamente a de garante da unidade do Estado (cf Constituição, artigo 120.º).

E, como diz o PM, se cada um ficar no seu galho, tudo correrá bem. 

2023.09.06 – Louro de Carvalho 

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