sexta-feira, 22 de setembro de 2023

Honras de Panteão Nacional para Eça de Queirós

 

 

Nos termos do n.º 2 do artigo 3.º da Lei n.º 28/2000, de 29 de novembro (que define e regula as honras do Panteão Nacional), na redação que lhe foi dada pela Lei n.º 14/2016, de 9 de junho, a Assembleia da República (AR) aprovou, a 14 de janeiro de 2021, uma resolução do Partido Socialista (PS) para conceder honras de Panteão Nacional ao escritor e diplomata português Eça de Queirós, vincando a dimensão de escritor, bem como a de humanista e de crítico social.

O intuito é “conceder honras de Panteão Nacional aos restos mortais de José Maria Eça de Queirós, em reconhecimento e homenagem pela obra literária ímpar e determinante na história da literatura portuguesa”. Com efeito, “as honras do Panteão destinam-se a homenagear e a perpetuar a memória dos cidadãos portugueses que se distinguiram por serviços prestados ao país, no exercício de altos cargos públicos, altos serviços militares, na expansão da cultura portuguesa, na criação literária, científica e artística ou na defesa dos valores da civilização, em prol da dignificação da pessoa humana e da causa da liberdade” (artigo 2.º, n.º1).

O documento prevê a constituição de um grupo de trabalho, “com a incumbência de determinar a data a definir e orientar o programa de transladação, em articulação com as demais entidades públicas envolvidas, bem como um representante da Fundação Eça de Queirós”, entidade de cujo repto partiu a iniciativa, que se insere no espírito da lei que define e regula as honras panteónicas.

José Luís Carneiro, deputado do PS, iniciou a sua intervenção no debate parlamentar sobre a resolução, recordando a definição dos critérios para propor honras panteónicas, com relevo para a superior singularidade de Eça de Queirós, um dos maiores vultos da literatura e cultura nacionais, que, na diplomacia, “defendeu com superior inteligência e com coragem a dignificação do ser humano”. E, saudando a “abertura mostrada por todos os grupos parlamentares” para esta iniciativa, considerou este o momento de mostrar o “apreço por Eça de Queirós”.

O deputado da Iniciativa Liberal (IL), João Cotrim de Figueiredo, não hesitou em considerar que o autor de “Os Maias” merece honras de Panteão Nacional e destacou que “merece voltar a ser lido por quem manda neste país”. Em seguida, recordou algumas passagens do autor que mostram a sua visão “intemporal” do país e da política.

Pelo Partido do Centro Democrático Social (CDS), a deputada Ana Rita Bessa sustentou que, no Panteão Nacional, Eça de Queirós “terá a sua memória eternizada” e um “lugar digno, projetado no país e no Mundo, e a sua memória eternizada em toda a nossa memória coletiva”.

O deputado José Luís Ferreira, do PEV, evocou o enquadramento legal para a concessão de honras de Panteão Nacional, frisando que Eça de Queirós “se enquadra nos pressupostos definidos”, e não apenas “pela enorme dimensão de romancista e [de] escritor, que olhava para a arte como um poderoso instrumento transformador das sociedades”. “Era senhor de consciência humanista invulgar, uma consciência social que o levou a insurgir-se contra a escravatura a que estavam sujeitos os trabalhadores do engenho do açúcar em Cuba”, recordou.

Para o deputado do Partido Social Democrata (PSD) Paulo Rios, “esta singularidade de concessão está reservada a muito poucos”, e Eça de Queirós é um desses merecedores. “Dos nossos, foi um dos maiores. A sua obra, a sua memória e frescura e atualidade do seu legado continuam bem vivos na nossa memória coletiva”, disse, alçando-o a “único, reconhecido e muito atual”. Elegendo-o como “um dos maiores romancistas da História da Literatura Portuguesa”, vincou: “Não foi só – e não era pouco – um romancista único, foi um humanista consequente, quando em [esteve] Cuba, e um mordaz e irónico observador dos Portugueses, em especial, dos poderosos, dos dirigentes e dos políticos”. E ironizou: “Por vezes, sinto que me cruzo com algumas das suas personagens, se bem que com diferentes nomes e outras roupagens, nesta mesma assembleia.”

Ana Mesquita, do Partido Comunista Português (PCP), destacou o papel de Eça de Queirós como ativista, nomeadamente na geração de 70, a da polémica da questão coimbrã, “que teve tantas ramificações que ainda hoje têm impacto”. Citou o presidente da Fundação Eça de Queirós, o bisneto do escritor, Afonso Eça de Queiroz Cabral, que disse: “Numa época em que os índices de leitura, em particular, entre os estudantes baixam assustadoramente, tenho a esperança, talvez ingénua, de que um acontecimento como este alerte para a maravilhosa descoberta da leitura.” E acrescentou: “Também o PCP assim o espera.”

André Silva, deputado do Partido Pessoas + Animais + Natureza (PAN), assegurou que, “com Eça, aprendemos a sentir e a pensar” e pôs em relevo a sua “visão irónica dos políticos e dirigentes”, para sustentar que “o legado de Eça não acabou com a sua morte”.

Também Alexandra Vieira, do Bloco de Esquerda (BE), afirmou que o romancista era um “exemplo do que hoje podemos considerar ativista”, enaltecendo a sua “capacidade de levar os seus leitores a pensar”. “Visava a transformação de um Portugal pobre, analfabeto, rural, piedoso, conservador, dominado por uma pequena elite burguesa impreparada politicamente, intriguista e ciente dos seus interesses”, sublinhou.

Por fim, José Luís Carneiro disse que a AR deu “um grande exemplo de maturidade democrática e serviço ao país”. “Estamos a homenagear um dos maiores vultos da cultura e literatura do país, como também um povo e uma região onde ela se inspirou para escrever os seus romances”, verificou.

Entretanto, a 23 de abril, o Presidente da República (PR) anunciava que os restos mortais de Eça de Queirós seriam trasladados para o Panteão Nacional brevemente.

O chefe de Estado fez este anúncio, quando discursava no Centro de Congressos de Lisboa, após a posse dos novos órgãos sociais da CIP – Confederação Empresarial de Portugal.

O PR referiu-se ao grupo de intelectuais do fim do século XIX conhecido por “Vencidos da vida”, a propósito de uma passagem do discurso do novo presidente da CIP, Armindo Monteiro. E, a este propósito, anunciou: “Vamos homenagear, aliás, brevemente, na trasladação para o Panteão Nacional dos restos mortais de Eça de Queirós.”

Foi um anúncio precipitado e uma antecipação ao grupo de trabalho previsto.

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Estamos todos de acordo na convicção de que Eça de Queirós merece as honras de Panteão Nacional. Quer no romance, quer na escrita jornalística, o escritor diplomata não teve mãos a medir. A vida e os costumes dos Portugueses, no território nacional ou no estrangeiro, foram duramente escalpelizados e satirizados. Outrossim, logrou, como ninguém, construir personagens poderosas, recriar ambientes atrativos ou assombrados, organizar complexas tramas de romance (robusta arquitetura literária) e tirar partido do que tem de melhor a Língua Portuguesa. E os seus contos são um bom repositório do que a vida das pessoas tem de melhor (a beneficência solidária) e de pior (a ganância e a inveja). “Os Maias” (a sua obra mais poderosa), “O Primo Basílio”, “O Crime do Padre Amaro” (dois romances que fazem, com “Os Maias”, a grande trilogia queirosiana), “A Relíquia”, “O Egito”, “A Cidade e as Serras”, “A tragédia da Rua das Flores”, “A Ilustre Casa de Ramires”, “A Capital”, “O Conde de Abranhos” e “Contos” constituem um verdadeiro museu da Literatura Portuguesa disposto a falar eloquentemente aos nossos dias, desde que ousemos despertá-lo do limbo em que a inércia da comodidade teima em o conservar como relíquia, não o tornando um chamariz para a luta contra a corrupção, contra a frivolidade e contra a mediocridade (o flagelo da superficialidade).        

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Eça de Queirós, nascido na Póvoa de Varzim, onde lhe erigiram uma estátua, morreu a 16 de agosto de 1900 na sua casa de Neuilly-sur-Seine, perto de Paris, onde tem um busto na avenida Charles de Gaulle. O corpo foi transportado de Le Havre a Lisboa, entre 13 e 17 de setembro de 1900, no navio de guerra África. As principais ruas da cidade exibiram faixas negras (oferta do empresário Grandela), o carro fúnebre foi ornamentado por Rafael Bordalo Pinheiro, amigo de Eça. O cortejo fúnebre, entre o desembarque, no Terreiro do Paço, e o cemitério do Alto de São João, foi acompanhado por milhares de pessoas e um sexteto tocou a marcha fúnebre na varanda do Teatro Nacional D. Maria II. Ficou sepultado no jazigo dos condes de Resende.

A 13 de setembro de 1989, foi trasladado para o cemitério de Santa Cruz do Douro, em Baião, à sombra da Quinta de Tormes, designação dada pelo escritor à Quinta de Vila Nova, por considerar a casa, de que não gostou, “excelente para guardar milho”.

De acordo com a referida resolução da AR, os restos mortais do escritor deveriam ser trasladados para o Panteão Nacional a 27 de setembro. Porém, aceitando uma providência cautelar interposta por alguns descendentes do autor a impedir a trasladação, o Supremo Tribunal Administrativo (STA) suspendeu todos os atos relacionados com a trasladação dos restos mortais de Eça de Queirós para o Panteão Nacional, pelo que o assunto volta à AR, como disse à Lusa António Fonseca, ex-presidente da Junta de Freguesia de Santa Cruz do Douro, no concelho de Baião.

Segundo o antigo autarca, a decisão do STA, onde foi interposta uma providência cautelar por alguns descendentes do escritor, é um primeiro passo, mas não deixa de ser, desde já, uma grande vitória para Baião, porque o lugar de Eça só pode ser mesmo à sombra de Tormes”. Além de ter sido presidente da junta no anterior mandato, António Fonseca, integra o movimento de cidadãos que se constituiu para se opor à trasladação. “Nós sempre estivemos na mesma linha, aliados com a família”, reforçou. “Eu sempre acreditei na justiça, acima de tudo, acredito na verdade”, anotou, em crítica aos proponentes da resolução da AR, por terem seguido um caminho estranho, enviesado, sem consultarem alguém, à revelia da família”.

Recordando Maria da Graça, bisneta de Eça de Queirós, que foi presidente da Fundão Eça de Queiroz, por se ter batido para que os restos mortais do escritor, em 1989, fossem transferidos de Lisboa para Baião, onde se encontram, atirou: “A dona Maria da Graça deve estar muito feliz, porque ela trabalhou muito, juntamente com o ex-presidente da câmara Artur Carvalho Borges, que […] tudo fizeram para conseguir trazer Eça para Santa Cruz.”

O ativista afirmou que se mantinha a convocação da manifestação para o dia 24, junto ao acesso à sede da fundação: “Mantém-se a manifestação de gratidão com o Eça e contestação às pessoas que levaram a proposta de resolução à Assembleia da República. Agora, é mais um motivo para estar nessa manifestação. Vamos mostrar ao mundo que Baião e Santa Cruz do Douro, em particular, são firmes nas suas convicções.”

O STA esclareceu que aceitou o pedido de providência, mas que ainda não houve decisão que impeça a trasladação dos restos mortais do escritor para Lisboa, tendo sido citado o presidente da AR, para se pronunciar, no exercício do contraditório.

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Do meu ponto de vista, embora Eça mereça as honras panteónicas, não vale a pena comprar uma guerra desnecessária entre familiares do escritor. Até creio que este não teria gostado deste folclore e, provavelmente, não quereria ver-se entre algumas das figuras ali representadas. E, como não está em causa o interesse público stricto sensu, é preferível deixar-lhe o corpo em Santa Cruz do Douro a fazê-lo deambular para Lisboa, novamente. Basta de passeio – diria ele.

A minha sugestão é a de que se lhe prestem as honras panteónicas enunciadas na alínea b) do n.º 2 do artigo 2.º da Lei n.º 28/2000, de 29 de novembro, na atual redação: “afixação no Panteão Nacional da lápide alusiva à sua vida e à sua obra”. E, sobretudo, queria que se organizasse uma campanha no sentido de levar adultos e jovens (nomeadamente políticos) a ler as obras de Eça.

Esta seria a melhor homenagem ao escritor e diplomata.

2023.09.22 – Louro de Carvalho

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