domingo, 3 de setembro de 2023

Editora britânica Routledge criticada por apoiar “abuso de poder”

 

Dois meses depois de postar uma nota no seu site a alertar para a indisponibilidade do livro Sexual Misconduct in Academia (Conduta Sexual Inapropriada na Academia), publicado em março de 2023, por estar “em revisão”, a editora britânica Routledge assumiu a decisão de retirar da obra o seu capítulo 12, sob o título “As paredes falaram quando ninguém se atrevia”, sobre o Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra (UC).

A retirada do capítulo que aponta Boaventura de Sousa Santos (BSS) por assédio sexual é qualificada pelas coordenadoras como a atitude de “ficar do lado de quem quer silenciá-lo” e apoiar “o abuso sistemático de poder na academia”, pois a editora não fez qualquer tentativa de apoiar o livro contra as ameaças legais e, portanto, não defendeu a liberdade académica, nem o direito dos sobreviventes de assédio sexual de falarem das suas experiências. A decisão de retirada permanente do capítulo é “uma forma de apoiar o abuso de poder sistemático na academia”.

Em declarações ao Diário de Notícias (DN), as coordenadoras da obra, Erin Pritchard e Delyth Edwards, investigadoras nas universidades de Liverpool e de Leeds, falaram publicamente, a 31 de agosto, pela primeira vez desde que, em junho, a Routledge a retirou de venda o livro.

Confirmando a ablação do capítulo que narra acontecimentos alegadamente ocorridos no CES da UC, referem que tal decisão foi tomada a 31 de agosto, revertendo os direitos autorais do livro para as autoras, por comunicação através de e-mail, que não menciona o facto, de que, aliás discordam taxativamente.

Como refere Fernanda Câncio no DN, em artigo sobre o tema, contam que receberam, a 5 de junho, um e-mail da Routledge a informar da receção de carta de um advogado português, em nome de uma pessoa, não sendo claro, para a editora, se tal pessoa era cliente do advogado. A 7 de junho, receberam também um e-mail da Routledge a informar de uma carta de cease-and-desist de uma pessoa que afirmava ser um dos assediadores descritos no capítulo. A carta requeria a paragem da publicação, a promoção do capítulo em causa e a proposta de formas de mitigação do dano causado à reputação, à saúde e ao trabalho académico do indivíduo, assim como à reputação do centro académico em causa. Foi então que a editora decidiu suspender temporariamente o livro.

Uma carta de cease-and-desist é um procedimento legal recorrente no sistema jurídico anglo-saxónico, pelo qual alguém que se considera lesado avisa o responsável dessa lesão, pedindo-lhe que cesse a ação em causa, o que pressupõe que, se o responsável da lesão não agir de forma a remediá-la, se seguirá processo formal nos tribunais.

As coordenadoras mencionam uma reunião com a editora, a 16 de agosto, em que foram informadas da existência de “múltiplos queixosos”, mas sem mais informação. Foi sugerida a “possível opção de reverter os direitos do capítulo em questão e de todos os outros capítulos às autoras”, mas nada foi acordado na reunião.

Quinze dias depois, Pritchard e Edwards foram confrontadas com a decisão final da Routledge, em relação à qual requerem uma explicação pública. Todavia, mesmo instados, nem a Routledge, nem o grupo editorial que a detém, a Taylor & Francis, assumiram a decisão de retirar o capítulo ou de “despublicar” o livro, o que foi uma opção em cima da mesa, apesar de terem apagado dos seus sites as páginas referentes a ele.

Também nada disseram desta decisão os principais acusados no capítulo, Boaventura de Sousa Santos e o antropólogo Bruno Sena Martins. Um e outro tinham garantido ao DN, em julho e em agosto, não terem tomado qualquer iniciativa legal junto da editora. BSS admitiu ter constituído um advogado, em Portugal, para sua defesa, mas que este ainda não tinha tomado qualquer ação, por aguardar que a Comissão Independente nomeada pelo CES da UC para investigar o caso iniciasse os seus trabalhos, o que sucedeu a 1 de agosto, decorrendo até 30 de setembro o prazo de receção de queixas/denúncias.

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É de recordar que, no capítulo 12 do livro Sexual Misconduct in Academia, editado no final de março pela Routledge, as autoras – a belga Lieselotte Viaene, a portuguesa Catarina Laranjeiro e americana Myie Nadia Tom – descrevem, sem nomear a instituição nem os intervenientes, os casos alegadamente ocorridos no CES da UC, com BSS, o “Professor Estrela”, como protagonista, título que, além da descrição, se tornou num presságio: a editora decidiu, após em junho suspender o livro para “revisão”, retirar o capítulo 12.

A notícia, antecedida pelo “apagão”, em junho, da obra no site da Routledge e, desde o início da última semana do mês de agosto, também no da Taylor & Francis, considerada a mais importante editora internacional na área das Ciências Sociais, foi conhecida, na manhã do dia 31, pelas mais de 20 autoras e pelas duas coordenadoras da publicação, Erin Pritchard e Delyth Edwards.

Pelos vistos, foi Marta Lança, uma das autoras do manifesto “Todas Sabemos”, de apoio às autoras do capítulo 12, a identificar o tipo de ação legal em causa, num post no Facebook, a 21 de agosto no qual cita como fonte da informação as coordenadoras do livro.

Não foi, até agora, revelado quem o dito advogado português representa, embora seja óbvio que os principais interessados na retirada do capítulo são o sociólogo, fundador do CES e seu diretor emérito BSS, que é nele acusado de assédio sexual e de “extrativismo intelectual”, e o antropólogo Bruno de Sena Martins (BSM), acusado de agressão ou abuso sexual, assim como, em menor grau, a académica designada como “a Sentinela”, Maria Paula Menezes. Porém, apesar de, em abril, ao serem confrontados com o conteúdo do capítulo, os dois académicos, suspensos, preventivamente de quaisquer atividades no CES, terem anunciado processos/recurso aos tribunais contra as autoras do capítulo – BSS anunciou que iria avançar com “uma queixa-crime por difamação” contra Viaene, Laranjeiro e Tom, e BSM garantiu ir “procurar justiça nas instâncias competentes” – ambos asseguraram não serem fonte de qualquer iniciativa ou ação legal junto da editora.

Se, na sua primeira entrevista de viva voz, sobre o assunto, BSS foi taxativo na certificação de que a decisão da Routledge – editora na qual tem várias obras publicadas, uma das quais, From the Pandemic to Utopia, the Future Begins Now, já após o rebentar do escândalo da supressão do capítulo ou da “revisão” do livro, disse ao DN não conhecer “os detalhes da decisão”, mas reforçava a ideia de que esta está relacionada com as acusações que lhe são feitas.

O sociólogo chegou a revelar a opinião da Routledge sobre o capítulo 12: “Eles próprios estão um pouco perplexos com a qualidade deste capítulo.” Isto, obviamente, pressupõe a existência de conversa com a editora sobre o capítulo.

Também Ana Bull, a copresidente do Grupo 1752 (organização de investigação, consultoria e ativismo, fundada, em 2016, para “acabar com o conduta sexual inapropriada de funcionários e de professores na educação superior”), autora do posfácio do livro, disse esperar que a editora fizesse “a coisa certa, recolocando o livro em circulação muito em breve”, mas não fez, até agora, qualquer comentário à decisão da editora. Seja como for, já tinha caraterizado a ação da Routledge/Taylor & Francis como “silenciamento”, silenciamento que foi, até ao momento, assumido pela maioria das 23 autoras do livro. “Todas sabemos”, lia-se nas paredes do CES, em 2018, nos graffiti referidos no título do capítulo 12, os quais, de acordo com as autoras funcionaram como repto de empoderamento e de consciencialização, face ao que tinham vivido naquele centro académico – um repto para romper o silêncio.

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Resta saber se um livro alegadamente gizado segundo os parâmetros da qualidade e do interesse público vai ser definitivamente truncado e se os leitores continuarão a adquiri-lo e a lê-lo. Segundo a boa lógica do consumidor-leitor, livro truncado deveria ser livro perdido.

Por outro lado, importa saber se efetivamente a Justiça confirma ou não os factos de que os dois académicos são indiciados – significando laxismo ou abuso de poder – ou se as autoras entraram numa de difamação ou de exagero, podendo ter sido aliciadas, forçadas, ou oportunisticamente coniventes. E é de questionar se à liberdade de expressão será outorgada a ausência de qualquer limitação ou se poderá ser amordaçada pela censura de poder ou de interesses particulares. 

O que não vale é a tática do silenciamento editorial ou o dos ofendidos, nem a inépcia da administração ou da Justiça, pois, não valendo tudo na liberdade de expressão, esta é uma liberdade pessoal garantida constitucionalmente e cujo exercício é fundamental em democracia.

Por fim, importa clarificar, pela verdade, e proceder à sanação do clima das academias. Não se pode, à partida, condenar ninguém sem provas, nem ignorar que, provavelmente, “onde há fumo, há fogo”, nem cair em generalizações, que podem ser injustas e perigosas. É bom que a verdade venha à tona, pois só ela é fonte de libertação, e que a eficácia e o prestígio das academias não fiquem abalados. A procura insana, a produção dialética, a receção apetecida e a ampla divulgação do conhecimento merecem toda a atenção e todo o esforço dos sábios. E que tal a ideia de criar uma Comissão Independente que faça o apuramento de “vita et moribus” das nossas academias?!

2023.09.02 – Louro de Carvalho

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