A 28 de
março, o Presidente da República (PR) promulgou três decretos da Assembleia da República (AR): o que procede à alteração, por apreciação
parlamentar, ao Decreto-Lei n.º 8-B/2021, de 22 de janeiro, que estabelece
medidas de apoio pela suspensão das atividades letivas e não letivas
presenciais; o que procede à alteração, por apreciação parlamentar, ao
Decreto-Lei n.º 6-E/2021, de 15 de janeiro, que estabelece mecanismos de apoio
no âmbito do estado de emergência; e o que altera, por apreciação parlamentar,
o Decreto-Lei n.º 10-A/2021, de 2 de fevereiro, que estabelece mecanismos
excecionais de gestão de profissionais de saúde para realização de atividade
assistencial, no âmbito da pandemia da covid-19.
Nisto,
diverge do Governo, que tem os diplomas por inconstitucionais por a iniciativa
dos deputados contrariar o n.º 2 do art.º 167.º da CRP, envolvendo aumento de
despesa no corrente ano económico, e acompanha a deliberação parlamentar. Com
efeito, trata-se de diplomas da AR que adotam medidas sociais ditas urgentes
para a situação pandémica vivida, um deles sem qualquer voto contra e os outros
dois com o voto favorável de todos os partidos parlamentares, salvo o do
partido do Governo, invocando este a inconstitucionalidade dos diplomas.
***
A justificação presidencial
O Chefe de
Estado, no uso dos seus poderes, como há dias referia António Costa, justificou
a decisão de promulgar nos termos seguintes:
A adoção das
medidas sociais corresponde, na substância e na urgência, a necessidades da situação
vivida, cobertas, em parte, por legislação do Governo.
As leis da
AR têm de respeitar a Constituição da República Portuguesa (CRP). Ora, a CRP proíbe, no seu artigo 167.º, n.º 2, que
possam ser apresentadas, pelos deputados, iniciativas que impliquem aumento de
despesas ou redução de receitas, em desconformidade com o Orçamento do Estado (OE) em vigor para o respetivo ano. Só o Governo pode
fazê-lo, como garantia de que a AR não desfigura o OE que ela aprovou, criando
problemas à sua gestão pelo Governo.
Os diplomas
em análise implicam potenciais aumentos de despesas ou reduções de receitas,
mas de montantes não definidos à partida, até porque largamente dependentes de
circunstâncias que só a evolução da pandemia permite concretizar, deixando em
aberto a incidência efetiva na execução do Orçamento do Estado. O Governo tem,
prudentemente, enfrentado a incerteza do processo pandémico, quer adiando a
aprovação do Decreto de Execução Orçamental, quer flexibilizando a sua gestão,
como aconteceu em 2020.
O PR pode
enviar ao Tribunal Constitucional (TC) para fiscalização preventiva (isto é, anterior à promulgação dos diplomas) – os que lhe suscitem dúvidas sobre se respeitam a
Constituição. Tem, porém, entendido, desde o primeiro mandato, e sobretudo na
presente crise, só o dever fazer no caso de não ser, de todo em todo, possível
uma interpretação dos diplomas que seja conforme à Constituição. E, quando é
possível essa interpretação, tem optado por promulgar, tornando claro em que
termos, no seu entender, os diplomas devem ser aplicados por forma a
respeitarem a Lei Fundamental. Sendo impossível tal interpretação e merecendo acolhimento
substancial a iniciativa parlamentar, tem recorrido ao uso do veto corretivo,
convidando a AR a aproveitar tal iniciativa, tornando-a conforme à
Constituição. Porém, em caso de convicção jurídica clara de se encontrar
perante uma inconstitucionalidade e nenhuma justificação substancial legitimar
o uso de veto, se reserva o recurso ao TC, tal como no caso de a prática
parlamentar passar a ser de constante desfiguração do OE. Tem o Presidente a
preocupação de evitar agravar querelas políticas em momentos e matérias
sensíveis, o que é mais evidente em situações extremas de confronto entre
Governo minoritário e os demais partidos com assento parlamentar, situações que
aconselham, de parte a parte, a concertação de posições e não a afrontamento,
sobretudo em crise tão grave, a exigir espírito de diálogo e não de dissensão
ou discórdia, e muito menos clima de crise política, a todos os títulos
indesejável.
Neste caso,
como noutros do mandato anterior, há uma interpretação conforme à Constituição.
A interpretação que justifica a promulgação dos presentes diplomas é simples e
conforme à Constituição: os diplomas podem ser aplicados, na medida em que
respeitem os limites resultantes do Orçamento do Estado vigente.
Para o
Presidente da República é visível o sinal político dado pelas medidas em causa,
não se justificando o juízo de inconstitucionalidade das medidas, o que parece
ser confirmado pela diversa votação do partido do Governo em diplomas com a
mesma essência no conteúdo, ora abstendo-se ora votando contra. Não obstante, o
Governo dispõe do poder de suscitar a fiscalização sucessiva da constitucionalidade
dos diplomas ora promulgados, como aconteceu noutras ocasiões. É a democracia e
o Estado de Direito a funcionar.
O Presidente
da República chama, no entanto, de forma particular neste momento, a atenção
para o essencial do presente debate. De um lado, não há Governo com maioria
parlamentar absoluta, sendo essencial o cumprimento da legislatura de quatro
anos; do outro, os tempos eleitorais podem levar, por vezes, as oposições a
afrontamentos em domínios económicos e sociais sensíveis. Compete ao Presidente
da República sublinhar a importância do entendimento “em plenas pandemias da saúde,
da economia e da sociedade” sensibilizando o Governo para o diálogo com as
oposições e tornando evidente às oposições que ninguém ganharia com o afrontamento
sistemático, potencial criador de crise lesiva para Portugal e para os portugueses.
***
Os recados do Presidente ao Governo e às oposições
O Primeiro-Ministro informou o PR de que a oposição não tem poder para
aumentar despesas no OE em curso. Marcelo discorda aduzindo que o OE tem verbas
e o tempo é de emergência e avisa a oposição de que não pode abusar e o Governo
de que não deve criar uma crise política.
A edição do Expresso online
adiantava, horas após o conhecimento da promulgação, verem-se nas justificações
do Chefe de Estado seis recados.
o primeiro é que se trata de medidas urgentes. Marcelo
trata os diplomas pelo valor intrínseco, sendo que o Governo parece ter
preferido olhar à questão processual em vez de olhar à substância, considerando
estar em causa a inconstitucionalidade orgânica. E o PR, alegando olhar à
substância, fala em “medidas sociais
urgentes para a situação pandémica vivida”. Em termos políticos deixa claro que olha para a
legislação, em tempos de emergência, não tanto do ponto de vista da sua admissão
constitucional, mas sobretudo pela “pertinência objetiva”.
Em segundo recado, alega a possibilidade de haver margem orçamental. As
leis, como lembra Marcelo, estão “cobertas, em parte, por legislação do
Governo”. Está subjacente a referência aos diplomas do Governo que reforçam
apoios sociais e que a AR se limita a roborar: o do aumento do apoio aos pais e
o do aumento do apoio a trabalhadores independentes e sócios-gerentes. Nos dois
casos, a oposição uniu-se apenas para os aumentar (num dos
casos para o nível de apoio atribuído em 2020). O PR, que é constitucionalista, admite o que o Governo tem vincado recentemente:
“As leis da Assembleia da República têm de
respeitar a Constituição da República Portuguesa, [que] proíbe que possam ser
apresentadas, pelos deputados, iniciativas que impliquem aumento de despesas ou
redução de receitas, em desconformidade com o Orçamento do Estado em vigor para
o respetivo ano (...), como garantia de que a Assembleia da República não
desfigura o Orçamento que ela própria aprovou, criando problemas à sua gestão
pelo Governo”.
Todavia, para Marcelo isso
não é um valor absoluto, pois se os diplomas “implicam potenciais aumentos de despesas
ou reduções de receitas”, são de “montantes não definidos à partida, até porque largamente dependentes de circunstâncias
que só a evolução da pandemia permite concretizar”. Ou seja, deixam “em aberto a incidência efetiva
na execução do Orçamento do Estado”. E, sabendo das incertezas da
pandemia, até o Governo tem agido “prudentemente”, “adiando a aprovação do
Decreto de Execução Orçamental” e “flexibilizando” a sua gestão. Ou seja, o PR diz que o Governo tem, no OE 2021,
margem nas dotações provisionais para gerir estes diplomas sem colocar
em causa a gestão orçamental.
Em terceiro recado, o PR mostra que evita o recurso ao TC. Reconhecendo que
possam permanecer dúvidas constitucionais, Marcelo entende que, “sobretudo durante a presente crise”, só
deve mandar para fiscalização prévia do TC “no caso de não ser, de todo em todo,
possível uma interpretação dos diplomas que seja conforme à Constituição”. Ou
seja, só em caso, em que veja que os diplomas são declaradamente
inconstitucionais. Até lembra que houve casos em que, face a lei com normas
inconstitucionais, recorreu ao veto corretivo, convidando a AR a aproveitar a
sua iniciativa, tornando-a conforme à Constituição.
A preocupação do PR parece a de não entregar aos juízes do Palácio Ratton a
gestão de diplomas sensíveis da governação em momento de crise, como sucedeu no
tempo da troika.
Em quarto lugar, deixa recado à oposição: que isto não se torne regra. Marcelo
não abdica do seu poder de enviar diplomas para o TC em caso de convicção
jurídica clara de se encontrar perante uma inconstitucionalidade e sem haver
argumento para veto, mas sobretudo se a oposição fizer desta prática um caso
reiterado.
Em quinto recado, reconhece que o Governo pode recorrer ao TC para
fiscalização sucessiva, como já aconteceu, mas não o recomenda: dum lado, não há Governo com maioria parlamentar
absoluta, sendo essencial o cumprimento da legislatura de 4 anos; do
outro, os tempos eleitorais podem levar as
oposições a afrontamentos em domínios económicos e sociais sensíveis.
Assim, Marcelo prefere que o
Governo não opte pelo confronto, mas pela procura de consenso com os partidos
da oposição por estarmos em crise e por não haver maioria parlamentar.
E é para todos o sexto recado: “que não criem um clima de crise”, o que vem
espelhado no segmento textual, que na justificação do PR não tem verbo no modo
finito em oração principal:
“Sempre com a preocupação de evitar agravar
querelas políticas, em momentos e matérias sensíveis, o que é ainda mais
evidente em situações extremas de confronto entre Governo minoritário e todos
os demais partidos com assento parlamentar, situações essas que aconselham, de parte a parte, a
concertação de posições e não a afrontamento, sobretudo numa crise tão grave, a
exigir espírito de diálogo e não espírito de dissensão ou discórdia, e muito
menos um clima de crise política, a todos os títulos indesejável”.
***
Apreciação desta postura presidencial
A este
respeito, é pertinente reter o que diz Vital Moreira no blogue “Causa nossa”,
que sintetizo a seguir.
Independentemente
da leitura política, a promulgação destas leis assenta em exercício de ficção constitucional. Não
compete ao Presidente fazer “interpretação conforme à Constituição” e refazer o
alcance normativo das leis submetidas para promulgação. Em caso de dúvida séria
sobre a conformidade constitucional dum diploma (aqui é mais que dúvida), é o obrigação do PR suscitar a fiscalização
preventiva, no cumprimento da missão de fazer cumprir a Constituição. Por outro
lado, é absurdo dizer que o Governo pode executar tais leis até onde o OE
permita, deixando o resto por executar, pela razão de que no Estado de Direito o
princípio da legalidade obriga o Governo a cumprir a lei, mesmo
inconstitucional, enquanto ela não for declarada como tal pelo órgão
competente.
Temos aqui,
segundo Vital Moreira, duas vítimas principais: a disciplina orçamental, que
inclui a segurança de que o Governo, aprovado o OE, está livre de ver aprovada
nova despesa pública, obrigando-o a aumentar a despesa global ou a cortar
noutra despesa para realizar aquela – função da norma-travão, ora sacrificada
pelo PR; e o governo minoritário, que vê inutilizada a única defesa
constitucional contra o oportunismo político de oposições coligadas, o que se
agrava se não há condições para governos de maioria, ficando a governação mais
imprevisível.
A interpretação
do PR das leis promulgadas no sentido de só obrigarem o Governo a executá-las
até onde houver orçamento não salva a sua constitucionalidade. A observância da
norma-travão tem a ver com a confiança, estabilidade e disciplina orçamental,
que o PR deve ser o primeiro a salvaguardar. E, com a promulgação, o PR não poupou o Governo a pagar os custos políticos
da falta dos apoios sociais em causa. Com efeito, o Governo tem o direito de
gerir os recursos de que dispõe e de pagar os custos políticos por isso, sem
precisar da tutela presidencial. É ele que é politicamente responsável pelos
seus atos perante a AR, não o PR.
Pode
pensar-se que o estado de emergência não serve
apenas para o PR suspender o exercício de alguns direitos fundamentais, mas
também para suspender partes da Constituição.
É óbvio que o PR, tendo deixado passar o prazo para submeter os ditos
diplomas ao TC, ou vetaria ou promulgaria. E, podendo o Governo impugnar essas
leis no TC, tal não resolve o problema, pois, na fiscalização sucessiva o TC
pode demorar meses a decidir e costuma salvaguardar os efeitos produzidos por
tais normas, pelo que seria praticamente inútil, pois a despesa já teria
sido feita, ao passo que a fiscalização preventiva tem um prazo curto para
decisão e, em caso de pronúncia de inconstitucionalidade, as leis não são
promulgadas sequer.
Assim, o PR não
se limitou a suspender a norma-travão; suspendeu também os principais parâmetros constitucionais que
balizam a sua ação, o que assinalará um momento o crítico no
entendimento do mandato presidencial.
Na
verdade, uma das tarefas constitucionais do PR, a cumprir através do poder de
promulgação e veto, é a salvaguarda da separação de poderes, uma das
traves-mestras do Estado de direito constitucional, desde a sua origem, ou
seja, a separação de poderes entre a AR e o Governo, impedindo a primeira de
invadir o território do segundo e vice-versa. No caso vertente, o PR
desconsiderou uma das mais estritas normas constitucionais de separação de
poderes, que é a reserva
governamental de criação de novas despesas além do OE em vigor, como
penhor da disciplina orçamental, pela qual o Governo é politicamente
responsável. Ou seja, coonestou deliberadamente o confisco parlamentar dum
poder exclusivo do Governo.
Sendo a presidência da República um
cargo partidariamente independente, não integrado no poder executivo, é
suposto o PR ser neutral na
disputa entre Governo e oposição, sem prejuízo de fazer respeitar
os direitos constitucionais de um e de outra. Contudo, no caso vertente, tomou partido
pelo posicionamento da oposição contra o Governo, sacrificando a norma-travão,
que exclui qualquer ponderação presidencial do mérito das soluções contidas nas
leis sujeitas a promulgação. Com efeito, no nosso sistema político, o PR não
governa nem é eleito para governar nem para interferir na esfera governativa, competência exclusiva do Governo, pela
qual responde politicamente perante a AR e perante os eleitores nas eleições
legislativas seguintes. Por isso, ressalvada a sua “magistratura de influência”
sobre o Governo e demais decisores, o PR não pode fazer prevalecer as suas opiniões
políticas nas decisões institucionais. E, na justificação de promulgação das ditas
leis, o PR deixa entender que optou pela promulgação, ignorando a lei-travão,
porque concorda com a solução política destas leis, sobrepondo abusivamente o
seu juízo de mérito político ao do Governo.
Para quem não deseja crises políticas
e afirma a solidariedade institucional e estratégica com o Governo, esta postura
presidencial não é exemplar, antes lhe deslegitima a exigência de cumprimento orçamental,
de manutenção de estabilidade ou de afugentamento de crises políticas. Até
devia perceber que, em matéria de apoios económicos e financeiros, bem
justificados, há sempre os que se aproveitam oportunisticamente dos benefícios.
Ademais, quando toca a sacrifícios, eles têm de ser repartidos um pouco por
todos. E a imprevisibilidade da evolução pandémica, mais do que abrir mais os
cofres do OE, deveria aconselhar prudência.
Por fim, se há conflito entre Governo
e AR em determinada matéria, tal como acontece noutras relações entre pares,
seria prudente, em razão da dúvida formal, suscitar a intervenção do tribunal,
neste caso o TC.
Só uma atitude de protagonismo pessoal,
de contemporização com as oposições em detrimento da solidariedade estratégica
com a governação ou de marcação de agenda política pode explicar esta postura presidencial,
constituindo um prenúncio de como pode vir a ser o exercício do segundo mandato.
A ver vamos.
2021.03.29 – Louro de Carvalho
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