segunda-feira, 29 de março de 2021

O Presidente da República promulga medidas de apoio social urgentes

 

A 28 de março, o Presidente da República (PR) promulgou três decretos da Assembleia da República (AR): o que procede à alteração, por apreciação parlamentar, ao Decreto-Lei n.º 8-B/2021, de 22 de janeiro, que estabelece medidas de apoio pela suspensão das atividades letivas e não letivas presenciais; o que procede à alteração, por apreciação parlamentar, ao Decreto-Lei n.º 6-E/2021, de 15 de janeiro, que estabelece mecanismos de apoio no âmbito do estado de emergência; e o que altera, por apreciação parlamentar, o Decreto-Lei n.º 10-A/2021, de 2 de fevereiro, que estabelece mecanismos excecionais de gestão de profissionais de saúde para realização de atividade assistencial, no âmbito da pandemia da covid-19.

Nisto, diverge do Governo, que tem os diplomas por inconstitucionais por a iniciativa dos deputados contrariar o n.º 2 do art.º 167.º da CRP, envolvendo aumento de despesa no corrente ano económico, e acompanha a deliberação parlamentar. Com efeito, trata-se de diplomas da AR que adotam medidas sociais ditas urgentes para a situação pandémica vivida, um deles sem qualquer voto contra e os outros dois com o voto favorável de todos os partidos parlamentares, salvo o do partido do Governo, invocando este a inconstitucionalidade dos diplomas.

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A justificação presidencial

O Chefe de Estado, no uso dos seus poderes, como há dias referia António Costa, justificou a decisão de promulgar nos termos seguintes: 

A adoção das medidas sociais corresponde, na substância e na urgência, a necessidades da situação vivida, cobertas, em parte, por legislação do Governo.

As leis da AR têm de respeitar a Constituição da República Portuguesa (CRP). Ora, a CRP proíbe, no seu artigo 167.º, n.º 2, que possam ser apresentadas, pelos deputados, iniciativas que impliquem aumento de despesas ou redução de receitas, em desconformidade com o Orçamento do Estado (OE) em vigor para o respetivo ano. Só o Governo pode fazê-lo, como garantia de que a AR não desfigura o OE que ela aprovou, criando problemas à sua gestão pelo Governo.

Os diplomas em análise implicam potenciais aumentos de despesas ou reduções de receitas, mas de montantes não definidos à partida, até porque largamente dependentes de circunstâncias que só a evolução da pandemia permite concretizar, deixando em aberto a incidência efetiva na execução do Orçamento do Estado. O Governo tem, prudentemente, enfrentado a incerteza do processo pandémico, quer adiando a aprovação do Decreto de Execução Orçamental, quer flexibilizando a sua gestão, como aconteceu em 2020.

O PR pode enviar ao Tribunal Constitucional (TC) para fiscalização preventiva (isto é, anterior à promulgação dos diplomas) – os que lhe suscitem dúvidas sobre se respeitam a Constituição. Tem, porém, entendido, desde o primeiro mandato, e sobretudo na presente crise, só o dever fazer no caso de não ser, de todo em todo, possível uma interpretação dos diplomas que seja conforme à Constituição. E, quando é possível essa interpretação, tem optado por promulgar, tornando claro em que termos, no seu entender, os diplomas devem ser aplicados por forma a respeitarem a Lei Fundamental. Sendo impossível tal interpretação e merecendo acolhimento substancial a iniciativa parlamentar, tem recorrido ao uso do veto corretivo, convidando a AR a aproveitar tal iniciativa, tornando-a conforme à Constituição. Porém, em caso de convicção jurídica clara de se encontrar perante uma inconstitucionalidade e nenhuma justificação substancial legitimar o uso de veto, se reserva o recurso ao TC, tal como no caso de a prática parlamentar passar a ser de constante desfiguração do OE. Tem o Presidente a preocupação de evitar agravar querelas políticas em momentos e matérias sensíveis, o que é mais evidente em situações extremas de confronto entre Governo minoritário e os demais partidos com assento parlamentar, situações que aconselham, de parte a parte, a concertação de posições e não a afrontamento, sobretudo em crise tão grave, a exigir espírito de diálogo e não de dissensão ou discórdia, e muito menos clima de crise política, a todos os títulos indesejável.

Neste caso, como noutros do mandato anterior, há uma interpretação conforme à Constituição. A interpretação que justifica a promulgação dos presentes diplomas é simples e conforme à Constituição: os diplomas podem ser aplicados, na medida em que respeitem os limites resultantes do Orçamento do Estado vigente.

Para o Presidente da República é visível o sinal político dado pelas medidas em causa, não se justificando o juízo de inconstitucionalidade das medidas, o que parece ser confirmado pela diversa votação do partido do Governo em diplomas com a mesma essência no conteúdo, ora abstendo-se ora votando contra. Não obstante, o Governo dispõe do poder de suscitar a fiscalização sucessiva da constitucionalidade dos diplomas ora promulgados, como aconteceu noutras ocasiões. É a democracia e o Estado de Direito a funcionar.

O Presidente da República chama, no entanto, de forma particular neste momento, a atenção para o essencial do presente debate. De um lado, não há Governo com maioria parlamentar absoluta, sendo essencial o cumprimento da legislatura de quatro anos; do outro, os tempos eleitorais podem levar, por vezes, as oposições a afrontamentos em domínios económicos e sociais sensíveis. Compete ao Presidente da República sublinhar a importância do entendimento “em plenas pandemias da saúde, da economia e da sociedade” sensibilizando o Governo para o diálogo com as oposições e tornando evidente às oposições que ninguém ganharia com o afrontamento sistemático, potencial criador de crise lesiva para Portugal e para os portugueses.

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Os recados do Presidente ao Governo e às oposições

O Primeiro-Ministro informou o PR de que a oposição não tem poder para aumentar despesas no OE em curso. Marcelo discorda aduzindo que o OE tem verbas e o tempo é de emergência e avisa a oposição de que não pode abusar e o Governo de que não deve criar uma crise política.

A edição do Expresso online adiantava, horas após o conhecimento da promulgação, verem-se nas justificações do Chefe de Estado seis recados.

o primeiro é que se trata de medidas urgentes. Marcelo trata os diplomas pelo valor intrínseco, sendo que o Governo parece ter preferido olhar à questão processual em vez de olhar à substância, considerando estar em causa a inconstitucionalidade orgânica. E o PR, alegando olhar à substância, fala em “medidas sociais urgentes para a situação pandémica vivida”. Em termos políticos deixa claro que olha para a legislação, em tempos de emergência, não tanto do ponto de vista da sua admissão constitucional, mas sobretudo pela “pertinência objetiva”.

Em segundo recado, alega a possibilidade de haver margem orçamental. As leis, como lembra Marcelo, estão “cobertas, em parte, por legislação do Governo”. Está subjacente a referência aos diplomas do Governo que reforçam apoios sociais e que a AR se limita a roborar: o do aumento do apoio aos pais e o do aumento do apoio a trabalhadores independentes e sócios-gerentes. Nos dois casos, a oposição uniu-se apenas para os aumentar (num dos casos para o nível de apoio atribuído em 2020). O PR, que é constitucionalista, admite o que o Governo tem vincado recentemente:

As leis da Assembleia da República têm de respeitar a Constituição da República Portuguesa, [que] proíbe que possam ser apresentadas, pelos deputados, iniciativas que impliquem aumento de despesas ou redução de receitas, em desconformidade com o Orçamento do Estado em vigor para o respetivo ano (...), como garantia de que a Assembleia da República não desfigura o Orçamento que ela própria aprovou, criando problemas à sua gestão pelo Governo”. 

Todavia, para Marcelo isso não é um valor absoluto, pois se os diplomas “implicam potenciais aumentos de despesas ou reduções de receitas”, são de “montantes não definidos à partida, até porque largamente dependentes de circunstâncias que só a evolução da pandemia permite concretizar”. Ou seja, deixam “em aberto a incidência efetiva na execução do Orçamento do Estado”. E, sabendo das incertezas da pandemia, até o Governo tem agido “prudentemente”, “adiando a aprovação do Decreto de Execução Orçamental” e “flexibilizando” a sua gestão. Ou seja, o PR diz que o Governo tem, no OE 2021, margem nas dotações provisionais para gerir estes diplomas sem colocar em causa a gestão orçamental.

Em terceiro recado, o PR mostra que evita o recurso ao TC. Reconhecendo que possam permanecer dúvidas constitucionais, Marcelo entende que, “sobretudo durante a presente crise”, só deve mandar para fiscalização prévia do TC “no caso de não ser, de todo em todo, possível uma interpretação dos diplomas que seja conforme à Constituição”. Ou seja, só em caso, em que veja que os diplomas são declaradamente inconstitucionais. Até lembra que houve casos em que, face a lei com normas inconstitucionais, recorreu ao veto corretivo, convidando a AR a aproveitar a sua iniciativa, tornando-a conforme à Constituição.

A preocupação do PR parece a de não entregar aos juízes do Palácio Ratton a gestão de diplomas sensíveis da governação em momento de crise, como sucedeu no tempo da troika.

Em quarto lugar, deixa recado à oposição: que isto não se torne regra. Marcelo não abdica do seu poder de enviar diplomas para o TC em caso de convicção jurídica clara de se encontrar perante uma inconstitucionalidade e sem haver argumento para veto, mas sobretudo se a oposição fizer desta prática um caso reiterado.

Em quinto recado, reconhece que o Governo pode recorrer ao TC para fiscalização sucessiva, como já aconteceu, mas não o recomenda: dum lado, não há Governo com maioria parlamentar absoluta, sendo essencial o cumprimento da legislatura de 4 anos; do outro, os tempos eleitorais podem levar as oposições a afrontamentos em domínios económicos e sociais sensíveis. Assim, Marcelo prefere que o Governo não opte pelo confronto, mas pela procura de consenso com os partidos da oposição por estarmos em crise e por não haver maioria parlamentar.

E é para todos o sexto recado: “que não criem um clima de crise”, o que vem espelhado no segmento textual, que na justificação do PR não tem verbo no modo finito em oração principal:

Sempre com a preocupação de evitar agravar querelas políticas, em momentos e matérias sensíveis, o que é ainda mais evidente em situações extremas de confronto entre Governo minoritário e todos os demais partidos com assento parlamentar, situações essas que aconselham, de parte a parte, a concertação de posições e não a afrontamento, sobretudo numa crise tão grave, a exigir espírito de diálogo e não espírito de dissensão ou discórdia, e muito menos um clima de crise política, a todos os títulos indesejável”.

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Apreciação desta postura presidencial

A este respeito, é pertinente reter o que diz Vital Moreira no blogue “Causa nossa”, que sintetizo a seguir.

Independentemente da leitura política, a promulgação destas leis assenta em exercício de ficção constitucional. Não compete ao Presidente fazer “interpretação conforme à Constituição” e refazer o alcance normativo das leis submetidas para promulgação. Em caso de dúvida séria sobre a conformidade constitucional dum diploma (aqui é mais que dúvida), é o obrigação do PR suscitar a fiscalização preventiva, no cumprimento da missão de fazer cumprir a Constituição. Por outro lado, é absurdo dizer que o Governo pode executar tais leis até onde o OE permita, deixando o resto por executar, pela razão de que no Estado de Direito o princípio da legalidade obriga o Governo a cumprir a lei, mesmo inconstitucional, enquanto ela não for declarada como tal pelo órgão competente.

Temos aqui, segundo Vital Moreira, duas vítimas principais: a disciplina orçamental, que inclui a segurança de que o Governo, aprovado o OE, está livre de ver aprovada nova despesa pública, obrigando-o a aumentar a despesa global ou a cortar noutra despesa para realizar aquela – função da norma-travão, ora sacrificada pelo PR; e o governo minoritário, que vê inutilizada a única defesa constitucional contra o oportunismo político de oposições coligadas, o que se agrava se não há condições para governos de maioria, ficando a governação mais imprevisível.

A interpretação do PR das leis promulgadas no sentido de só obrigarem o Governo a executá-las até onde houver orçamento não salva a sua constitucionalidade. A observância da norma-travão tem a ver com a confiança, estabilidade e disciplina orçamental, que o PR deve ser o primeiro a salvaguardar. E, com a promulgação, o PR não poupou o Governo a pagar os custos políticos da falta dos apoios sociais em causa. Com efeito, o Governo tem o direito de gerir os recursos de que dispõe e de pagar os custos políticos por isso, sem precisar da tutela presidencial. É ele que é politicamente responsável pelos seus atos perante a AR, não o PR. 

Pode pensar-se que o estado de emergência não serve apenas para o PR suspender o exercício de alguns direitos fundamentais, mas também para suspender partes da Constituição.

É óbvio que o PR, tendo deixado passar o prazo para submeter os ditos diplomas ao TC, ou vetaria ou promulgaria. E, podendo o Governo impugnar essas leis no TC, tal não resolve o problema, pois, na fiscalização sucessiva o TC pode demorar meses a decidir e costuma salvaguardar os efeitos produzidos por tais normas, pelo que seria praticamente inútil, pois a despesa já teria sido feita, ao passo que a fiscalização preventiva tem um prazo curto para decisão e, em caso de pronúncia de inconstitucionalidade, as leis não são promulgadas sequer.

Assim, o PR não se limitou a suspender a norma-travão; suspendeu também os principais parâmetros constitucionais que balizam a sua ação, o que assinalará um momento o crítico no entendimento do mandato presidencial.

Na verdade, uma das tarefas constitucionais do PR, a cumprir através do poder de promulgação e veto, é a salvaguarda da separação de poderes, uma das traves-mestras do Estado de direito constitucional, desde a sua origem, ou seja, a separação de poderes entre a AR e o Governo, impedindo a primeira de invadir o território do segundo e vice-versa. No caso vertente, o PR desconsiderou uma das mais estritas normas constitucionais de separação de poderes, que é a reserva governamental de criação de novas despesas além do OE em vigor, como penhor da disciplina orçamental, pela qual o Governo é politicamente responsável. Ou seja, coonestou deliberadamente o confisco parlamentar dum poder exclusivo do Governo.

Sendo a presidência da República um cargo partidariamente independente, não integrado no poder executivo, é suposto o PR ser neutral na disputa entre Governo e oposição, sem prejuízo de fazer respeitar os direitos constitucionais de um e de outra. Contudo, no caso vertente, tomou partido pelo posicionamento da oposição contra o Governo, sacrificando a norma-travão, que exclui qualquer ponderação presidencial do mérito das soluções contidas nas leis sujeitas a promulgação. Com efeito, no nosso sistema político, o PR não governa nem é eleito para governar nem para interferir na esfera governativa, competência exclusiva do Governo, pela qual responde politicamente perante a AR e perante os eleitores nas eleições legislativas seguintes. Por isso, ressalvada a sua “magistratura de influência” sobre o Governo e demais decisores, o PR não pode fazer prevalecer as suas opiniões políticas nas decisões institucionais. E, na justificação de promulgação das ditas leis, o PR deixa entender que optou pela promulgação, ignorando a lei-travão, porque concorda com a solução política destas leis, sobrepondo abusivamente o seu juízo de mérito político ao do Governo.

Para quem não deseja crises políticas e afirma a solidariedade institucional e estratégica com o Governo, esta postura presidencial não é exemplar, antes lhe deslegitima a exigência de cumprimento orçamental, de manutenção de estabilidade ou de afugentamento de crises políticas. Até devia perceber que, em matéria de apoios económicos e financeiros, bem justificados, há sempre os que se aproveitam oportunisticamente dos benefícios. Ademais, quando toca a sacrifícios, eles têm de ser repartidos um pouco por todos. E a imprevisibilidade da evolução pandémica, mais do que abrir mais os cofres do OE, deveria aconselhar prudência.

Por fim, se há conflito entre Governo e AR em determinada matéria, tal como acontece noutras relações entre pares, seria prudente, em razão da dúvida formal, suscitar a intervenção do tribunal, neste caso o TC.

Só uma atitude de protagonismo pessoal, de contemporização com as oposições em detrimento da solidariedade estratégica com a governação ou de marcação de agenda política pode explicar esta postura presidencial, constituindo um prenúncio de como pode vir a ser o exercício do segundo mandato. A ver vamos.

2021.03.29 – Louro de Carvalho

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