O trecho
do Evangelho do 5.º domingo da Quaresma no Ano B (Jo 12,20-33) relata um episódio ocorrido nos últimos dias da vida de Cristo, pouco antes da
Paixão. Enquanto Jesus estava em Jerusalém para a festa da Páscoa, alguns
gregos, intrigados com o que Ele fazia, exprimiram a Filipe, também oriundo de
terra semipagã, o seguinte desejo: “Queremos
ver Jesus” (“thélomen tòn Iesoûn ideîn”).
Escudando-se nas costumeiras trilogias do Papa Francisco, o
Padre José
Paulo Fernandes de Oliveira Machado, pároco da Fajã de Baixo, nos
Açores, apontou a seguinte receita: cruz, evangelho e testemunho.
Na verdade,
querer ver Jesus não resulta de simples impulso, mas da curiosidade que
representa um cuidado (do latim “cura, ae”) com a vida que se quer perfeita
e feliz. Por isso, a resposta tem de ser consentânea com o sentimento profundo
que tal desejo contém hoje tal como no tempo da passagem de Jesus por este
mundo.
De facto,
o Senhor, na obediência ao desígnio do Pai escolheu, não a via do triunfo
entendido à maneira mudança, mas a via da cruz. Não consta que Jesus tenha
respondido diretamente ao desejo daqueles gregos, mas foi mais longe, como diz
o Papa:
“É chegada a hora em que o Filho do homem é
glorificado. [...] Se o grão de trigo cair no chão não morre, fica
sozinho; mas se morrer, dá muito fruto. ”.
Daqui resulta
que o caminho é o da abnegação até à morte, para que a glorificação seja uma
realidade transcendente e incontornável. Aliás, Jesus é claro quando diz a quem
se propõe um caminho de maior perfeição: venda tudo o que tem e dê aos pobres
todo o lucro e obterá um tesouro nos céus (cf Lc 18,22). E aos discípulos que chamou a
segui-Lo propôs renunciar cada um a si mesmo, tomar a sua cruz e ir atrás Dele (cf
Mt 16,24), tal como
fez o cireneu (cf Lc 23,26).
Agregada
à cruz vem a ressurreição de Cristo, penhor da nossa ressurreição para a Vida
eterna. E esta Boa Nova ou Evangelho tem de ser anunciada a todos aqueles e a
todas aquelas que mostram o desejo de ver Jesus e proposta a todos quantos e a
todas quantas se cruzam nos caminhos dos que são discípulos e apóstolos. Depois,
a vida tem de estar consonante com a cruz de cada dia que assumimos e com o anúncio
que fazemos da Boa Nova do perdão enquanto fruto da ressurreição e do Espírito
Santo como dom de Deus derramado sobre cada um de nós.
Aqueles gregos, que vinham a Jerusalém adorar Deus no Templo,
quiseram encontrar-se com Jesus e contactar com a salvação que Ele veio
oferecer. Sugere o autor do 4.º Evangelho que o Templo e o culto antigo já não
são os lugares onde o homem encontra Deus e a salvação; quem estiver
interessado em encontrar a verdadeira libertação deve dirigir-se ao próprio
Jesus. Além disso, a salvação que Jesus nos traz tem um alcance universal
destinando-se a todos os homens.
Os gregos
não se dirigem a Jesus, mas a um dos discípulos.
É um aceno à responsabilidade missionária da comunidade de Jesus, encarregada
da missão de levar Jesus a todos os povos. O facto de Filipe falar primeiro com
André e só depois os dois irem contar o que se passa a Jesus reflete a
dificuldade com que as comunidades cristãs deram o passo para a evangelização
dos pagãos. João sugere que a decisão de integrar os pagãos na comunidade não é
individual, mas decisão que a comunidade tomou depois de haver consultado o
Senhor.
No horizonte de Jesus, está a cruz. E Ele sabe que vai sofrer
morte violenta e que todos o abandonarão como fracassado, mas que na cruz se
manifestará a glória do Filho do Homem.
A sua morte não é momento isolado, mas culmina o processo de
doação total de Si mesmo, que se iniciou quando “o Verbo Se fez carne e armou a sua tenda no meio dos homens” (Jo 1,14); é o último ato duma vida de entrega total ao desígnio de
Deus, feita amor até ao extremo. Em toda a sua existência terrena, Jesus
procurou, em cada palavra e gesto, tornar o homem livre de todas as opressões,
dotá-lo de dignidade, dar-lhe a vida em plenitude, o que suscitou o ódio do
sistema opressor, interessado em manter o homem escravo. Porém, como não teve
medo, levou avante a sua luta pela libertação da humanidade. E, ao dar a vida
por amor, deixa aos discípulos a suprema lição que eles devem aprender. Com a
morte de Jesus na cruz, os discípulos aprendem o amor até ao extremo, o dom da
vida, a entrega ao plano de Deus e à libertação dos irmãos.
Deste dom
de Jesus nasce a nova humanidade, a que Jesus
libertou da opressão, da injustiça, dos mecanismos que geram sofrimento e medo,
a humanidade que venceu o egoísmo e aprendeu que a vida é para ser dada, sem
limites, por amor.
Quem pretende conhecer Jesus deve olhar para o Homem que põe toda
a sua vida ao serviço do projeto de Deus e que morre na cruz para ensinar aos
homens o amor. Aprenderá que não se gera vida sem entregar a própria vida. É o
mistério do grão de trigo: “se o grão de trigo caído na terra não morrer,
permanece só; mas, se morrer, produz (“phérei”) muito fruto”. Assim, quem se ama só a si mesmo e se fecha num
egoísmo estéril perde o ensejo de chegar à vida verdadeira, a vida eterna (“eis dzôèn aiôniôn”,
não “bíon”). Ao invés, quem é totalmente livre do medo, se esquece dos próprios
interesses e seguranças e se compromete com a luta pela justiça, pelos
direitos, pela dignidade e liberdade do homem, quem ama tanto os outros que
entrega a sua vida por eles, esse dará frutos de vida e viverá uma vida plena,
que nem a morte calará.
Jesus viveu esta dinâmica da vida dada por amor, sem medo de
enfrentar o mundo. E àqueles que querem “ver Jesus” e conhecê-Lo, propõe o
mesmo caminho. Ser discípulo é colaborar com Jesus na libertação dos homens,
mesmo que isso signifique enfrentar as forças de opressão do “mundo” e
enfrentar a própria morte (“se alguém Me quer
servir, siga-Me”).
O trecho evangélico em referência termina com a “voz do céu” (“phônê ek toû ouranoû”) que glorifica
Jesus – uma forma de mostrar que o caminho de Jesus tem o selo de garantia de
Deus.
Jesus, porém, esclarece que a voz do céu veio não por causa
Dele, mas por causa dos que O ouviam. Com efeito, Ele terminará a suprema revelação
desta hora, dizendo: “Quando eu for levantado da terra, arrastarei (“hélkýsô”) todos a mim”. E os próprios fariseus tinham
confessado imediatamente antes do início deste trecho: “O mundo (“ho kósmos”) veio atrás dele (“opísô autoû apêlthen”) (Jo
12,19).
***
A antecipar este texto evangélico parece ter estado a
profecia de Jeremias (Jr 31,31-34) com a promessa mais
doce de todos os tempos veterotestamentários. A aliança com Noé ficou espelhada
no arco-íris concomitante com a bonança subsequente às tempestades, já pouco
dizendo às pessoas; a aliança com Abraão é fundacional e espelha-se nas
estrelas e nas areias do mar, mas não aglutina em torno de si um povo livre e permanentemente
afeiçoado ao seu Deus; a aliança firmada com o Povo eleito, através de Moisés,
subsequente à libertação da escravidão do Egito está na pedra e sustenta-se nos
sacrifícios oferecidos ritualmente em nome do Povo, mas não impedem que este caia
na idolatria, na exploração dos elementos do povo e sobretudo no esmagamento ou
ostracização dos estrangeiros. As pedras passaram a simbolizar as cervizes
duras e os corações empedernidos.
Então, Jeremias, que assistiu a calamidades e derrotas e desolações
do Povo, prega uma nova aliança, já não assente na pedra, mas nos corações, não
nos sacrifícios de touros e carneiros, mas na conversão interior que dará novos
homens, um povo novo.
Verificada a falência das antigas alianças, Deus segue outro
caminho e propõe uma nova Aliança que se fundamenta noutras bases. Deus intervirá
no sentido de gravar as suas leis e preceitos no coração, no íntimo de cada
membro do Povo.
Repare-se que a antropologia semita, além de pôr no coração a
sede dos sentimentos, dos pensamentos, dos projetos, das decisões e das ações
do homem, faz dele o centro do ser, onde o homem dialoga consigo mesmo, toma as
decisões e assume as responsabilidades.
Assim, a iniciativa de Deus possibilitará a interiorização das
exigências da Aliança por cada membro do Povo de Deus, estando presentes na
sede onde nascem os pensamentos, se definem os valores, se decidem as ações. Com
um coração assim transformado, cada crente poderá viver na fidelidade à
Aliança, na obediência aos mandamentos, no respeito pelas leis, no amor ao
Senhor. Javé será efetivamente o Deus de Israel; Israel será verdadeiramente o
Povo que vive de acordo com a proposta de Deus e que testemunha Deus no meio do
mundo.
Com este novo modo de relação, Deus não será mais um
desconhecido para o seu Povo. Entre Deus e Israel será possível a relação
pessoal de proximidade, de intimidade, de familiaridade. A comunhão com Deus
não será uma lição dificilmente aprendida, mas algo de inato e natural, que
brota dum coração em permanente diálogo com Deus.
Por fim, Deus anuncia o perdão para as faltas do seu Povo. Um
perdão total e sem reservas é o primeiro resultado desta nova relação a
estabelecer entre Deus e o seu Povo, a qual manifesta o amor eterno de Deus.
É a aliança nova prometida para os últimos tempos e realizada
neste Jesus que o Pai glorificou na cruz e cuja glorificação foi confirmada
pela ressurreição. É a aliança no sangue de Cristo, de Cristo que “recebeu do
Pai o Espírito Santo prometido e o derramou” (At
2,32‑33), tornando-se a única fonte do Espírito Santo para nós, a vida nova de
Deus derramada nos nossos corações. Com o dom do perdão dos pecados, Deus dá-Se
age sempre por excesso: é até anulada a memória divina do pecado. Deus tinha escrito
no nosso coração os nossos pecados (Jr
17,1), mas agora apaga essa escrita para escrever o perdão infinito,
sem causa nem motivo nem suporte, que é a chave que abre todos os escaninhos ou
todas as avenidas do humano coração (Jr 31,33-34).
2021.03.21
– Louro de Carvalho
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