sábado, 24 de fevereiro de 2024

Militares sairão à rua, se não tiverem aumento remuneratório

 

Num momento em que a direção nacional da Polícia de Segurança Pública (PSP) e o comando geral da Guarda Nacional Republicana (GNR) estão, a instâncias da Inspeção-Geral da Administração Interna (IGAI), a averiguar da irregularidade da manifestação noturna, a 19 de fevereiro, da PSP não autorizada (aliás, não comunicada à Câmara Municipal de Lisboa) e da eventual participação de militares da GNR, os militares das Forças Armadas (FA) ameaçam protestar na rua, se as polícias tiverem aumento remuneratório igual ao da Policia Judiciária (PJ).

Efetivamente, a 19 de fevereiro, os protestos das polícias geraram polémica com a concentração não oficial de agentes e militares em frente ao cineteatro Capitólio, em Lisboa, durante o debate entre os dois principais candidatos às eleições legislativas. Horas antes, os polícias tinham estado em manifestação no Terreiro do Paço, em protesto legal organizado pela plataforma que representa os sindicatos da PSP e as associações sindicais da GNR. No final, largas centenas rumaram ao Capitólio, em marcha a que já não se juntaram os sindicatos, porque que este novo percurso não tinha sido comunicado à Câmara Municipal de Lisboa. Porém, esta fase noturna do protesto tinha já sido combinada através das plataformas digitais do movimento inorgânico INOP, que substituiu o Movimento Zero. Não houve desacatos, mas Pedro Nuno Santos avisou, no debate, que não negociaria sob coação, numa alusão aos agentes na rua, em frente ao cineteatro. A PSP e a GNR abriram inquéritos ao caso para apurar responsabilidades disciplinares. E também a IGAI quer saber como foi organizado este protesto ilegal. 

Uma semana depois dos megaprotestos da PSP, da iniciativa de alguns polícias e, em especial, do INOP, a Associação dos Oficiais das Forças Armadas (AOFA) reuniu-se com a Casa Militar do Presidente República (PR) e a Associação Nacional de Sargentos (ANS) colocou a hipótese de ir para a rua, em protesto. Os oficiais querem que o PR tenha uma atitude em relação ao “fosso” criado entre as FA e as forças de segurança; os sargentos acusam o governo de se preparar para mexer nos subsídios das polícias, mas esquecer a tropa. Ex-chefes militares já alertaram para a eventualidade de contestação “inadequada”. E até próprio almirante Gouveia e Melo já lançou um alerta sobre os “perigos para o sistema” do descontentamento.

Em dezembro, numa entrevista à Lusa, o chefe Estado-Maior da Armada (CEMA) fez soar o alerta: “Um sistema político democrático equilibrado tem de conseguir perceber que quem não tem direito a manifestar-se deve ser protegido.” Se não o fizer, “pode causar uma distorção tão grande que poderá ser perigoso para o sistema”, considerou Gouveia e Melo.

Já a 6 de fevereiro, numa reunião, em Belém, com o chefe da Casa Militar do PR, vice-almirante Sousa Pereira, que recebeu, com assessores militares, os oficiais em plena crise dos protestos das polícias, a AOFA avisava que os quartéis estavam em “efervescência” e que “há um grande fosso em relação às forças de segurança”. E a ANS, que vem percorrendo unidades por todo o país, tem verificado “a sensação de mal-estar pelo tratamento diferenciado a vários níveis” entre militares e forças de segurança, pelo que não exclui ações de rua, após as eleições, se houver uma aproximação dos subsídios das polícias aos da PJ, sem atender à tropa. “Nenhuma ação está posta de parte”, admitiu o sargento-mor António Lima Coelho, presidente da ANS.

Os militares mais jovens (abaixo dos 40 anos) estarão mais disponíveis para assumir formas de luta com maior visibilidade, o que pode passar por movimentações na rua. “Depois das eleições, vamos ponderar a forma de fazer sentir esse mal-estar, tendo em conta quem tiver de reparar essas matérias”, garantiu Lima Coelho. “Poderá passar pelo que a nossa imaginação e criatividade originar, sejam ações de maior ou menor visibilidade, [sejam] de maior ou menor dimensão”, assume o dirigente, lembrando não serem devidamente tratados os subsídios e suplementos de paraquedistas, de submarinistas, de mergulhadores, de tripulantes de voo e, caso extremo, dos inativadores de engenhos explosivos, que, há 44 anos, “andam a bater-se por isso”. Em 2023, morreu em serviço um militar dessa especialidade (de inativadores de engenhos explosivos).

Pelos oficiais, o coronel António Mota, presidente da AOFA, diz que, se o fosso entre polícias e militares se “alargar ainda mais, a malta nos quartéis e nas bases está com as garras de fora”.

Mesmo ex-chefes militares receiam que a situação resvale. O ex-chefe CEMA almirante Fernando Melo Gomes escreveu um artigo na edição do Expresso de 23 de fevereiro, em que aponta, num contexto social complexo, a “desastrosa iniquidade”, que os militares das FA “bem conhecem, por serem, há anos, discriminados negativamente, em relação aos demais servidores do Estado”.

O almirante reformado recorda que, antes do 25 de Abril, foram as questões de carreiras no Exército a gota de água que desencadeou o golpe dos capitães. “A desproporção em relação às forças de segurança tem-se acelerado”, observou. E, se o próximo governo ceder às polícias, sem reconhecer os militares, “ninguém sabe o que pode acontecer”. “Não ponho as mãos no fogo pelo que possa suceder”, diz aquele antigo CEMA e dirigente do Grupo de Reflexão Estratégico Independente (GREI), que junta vários ofi­ciais-generais reformados e que, recentemente, fez chegar aos líderes políticos, ao PR e ao governo, uma carta bastante crítica. Os generais avisaram para o risco de contestação “inadequada” e de se poderem alterar “as condições éticas e de vínculo do exercício da profissão”. A ida dos militares para a rua, na opinião daquele ex-CEMA, “é a última das coisas” que espera ver, “para Portugal não parecer uma ‘República das Bananas’”.

O presidente da AOFA revela que o PR “está perfeitamente a par de todas as matérias” e “sensibilizado, embora os resultados sejam nulos”. A direção da associação, como ficou já dito, foi recebida em Belém, durante quatro horas, uma semana depois das megamanifestações das polícias. E Marcelo Rebelo de Sousa tem vincado a necessidade de os militares recuperarem rendimento, em relação a carreiras a que estavam equiparados, como a dos oficiais à dos magistrados, e chegou a deixar isso plasmado em documentos e discursos. Porém, os efeitos têm sido nulos: “O próprio Presidente está a criar uma caldeirada muito grande, porque tem vindo a público dizer que as polícias têm razão. Mas não temos ouvido o comandante supremo dizer rigorosamente nada sobre as Forças Armadas”, critica António Mota.

No Orçamento do Estado para 2024 (OE 2024), a ministra da Defesa Nacional, Helena Carreiras, fez equivaler o suplemento da condição militar ao subsídio de risco da GNR, mas a subida de 30 euros brutos mensais para 100 euros, com retroativos a janeiro de 2023, não satisfez as tropas. Os dirigentes associativos alegam que a GNR teve mais um ano de retroativos do que os militares, que este valor é consumido pelos impostos e que se vai degradar, porque a governante deixou cair o artigo que permitia a atualização do subsídio ao valor da inflação.

O cabo-mor Paulo Amaral, presidente da Associa­ção de Praças (AP) – que só integra militares da Marinha –, sustenta que o subsídio concedido à PJ não tem equivalente nos militares, que já têm suplementos de condição militar, de missão e de embarque, mas entende que os valores “devem ser atualizados” e que não deve haver desigualdade em relação à GNR. Contudo, não pondera ações de rua, pois trata-se da única classe trabalhadora que não tem “poder reivindicativo”. Podem, como refere, “estudar formas de luta”, mas não no “paradigma da PSP e da GNR”.

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A situação foi colocada em pratos limpos, a 23 de fevereiro. As associações representativas dos oficiais, sargentos e praças das Forças Armadas admitem protestos na rua, se o próximo governo atender às reivindicações das forças de segurança, mas não der “atenção especial” aos militares.

Entendem que devem ser tratados os assuntos das forças e serviços de segurança, mas querem o tratamento em dobro para as FA, caso contrário, equacionam todas as formas de luta, dentro da legalidade democrática, “inclusivamente vir para a rua”, alertou o presidente da AOFA.

O CEMA, em entrevista à Rádio Renascença, considerou que a possibilidade de manifestação dos militares nas ruas é “completamente inaceitável” e “contra o próprio regime democrático”, aduzindo que “as reivindicações que os militares possam ter são tratadas, através do nível hierárquico, nos fóruns apropriados que a democracia tem”. Essas manifestações “não devem ser feitas, nem permitidas, porque os militares são o último refúgio da estabilidade do país e, portanto, são inadmissíveis”, reforçou, garantindo opor-se “veementemente” a essa eventual posição dos militares, até porque essas manifestações “criam instabilidade”.

Questionado sobre a possibilidade de haver uma radicalização das FA, o CEMA foi contido nas declarações: “Isso já não quero comentar. […] As Forças Armadas são o último esteio da Nação. Como tal, não devem fazer nenhuma ação que comprometa não só a democracia como a estabilidade do país. E, portanto, nós – militares – não devemos ir para a rua. Não faz parte da nossa missão, da nossa ética e da forma como nos devemos comportar em democracia.”

Em declarações à Lusa, António Mota, apesar de apoiar as reivindicações das forças de segurança, alertou que o fosso entre as remunerações dos militares da GNR e as FA “é cada vez maior”.

Estas preocupações já foram transmitidas pela AOFA à Casa Militar da Presidência da República e ao próprio chefe de Estado e Comandante Supremo das Forças Armadas. “Espero que o poder político não nos obrigue a optar ou ter de recorrer a formas de luta mais mediáticas, porque, quando os militares das Forças Armadas saem à rua não é bonito, mesmo que façamos uma manifestação completamente em silêncio, com cartazes, sem fardas”, observou.

Também o presidente da ANS disse à Lusa que “todos os cenários devem estar colocados em cima da mesa”, frisando que os militares têm direito a manifestar-se dentro do que a lei prevê.

O artigo 30.º da Lei de Defesa Nacional (Lei Orgânica n.º 1-B/2009, de 7 de julho, alterada e republicada pelas Leis Orgânicas n.º 5/2014, de 29 de agosto, e n.º 3/2021, de 9 de agosto) estipula que “os militares na efetividade de serviço podem participar em manifestações legalmente convocadas sem natureza político-partidária ou sindical, desde que estejam desarmados, trajem civilmente e não ostentem qualquer símbolo nacional ou das Forças Armadas e desde que a sua participação não ponha em risco a coesão e a disciplina das Forças Armadas”. Aqueles que, a partir do dia 10 [de março], depois da eleição dos 230 deputados, de acordo com a correlação de forças no parlamento, venham a ter responsabilidades governativas, será bom que ponderem tudo isto e atendam aos militares como cidadãos que também o são e que também carecem de algum sentido de justiça na resolução de alguns dos problemas que os afetam”, defendeu.

Paulo Amaral, pela AP, em segundo momento, declarou-se disposto a “qualquer tipo de ação”, incluindo protestos na rua, salientando que uma eventual decisão terá de ser tomada, em conjunto, pelas três associações. “Vamos ver como será a configuração da Assembleia da República e a, partir daí, estaremos sempre disponíveis e dispostos para falar com quem de direito […] Isto não significa que não continuemos com atenção e dispostos a trabalhar e a decidir se entretanto, até lá, houver alguma decisão, quanto à questão salarial e de suplementos atribuídos à GNR.”

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A ministra da Defesa considerou que isto “não é aceitável num Estado de direito democrático”, pois quem defende o país “não pode ser fonte de insegurança e de desestabilização”. Reafirmou a confiança nas chefias, disse que tem dialogado com as estruturas militares e está certa de que importa “valorizar a carreira militar e investir na Defesa”, sobretudo quando a guerra está na Europa e que são esses “valores constitucionais que estão a ser desafiados”. E tudo isto se faz “com políticas, com instituições e com diálogo”, diz. Porém, é o que tem faltado.

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O problema das FA é grave (e o que delas se diz deve aplicar-se à PSP e à GNR). Moderará o conflito o PR, tão assertivo como seu comandante supremo? É que a PJ viu o problema resolvido; a seguir, vieram a PSP e a GNR; agora, temos as FA; e resta saber que grupos virão mais tarde. Há muitos grupos profissionais de risco!

2024.02.23 – Louro de Carvalho

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