quarta-feira, 14 de fevereiro de 2024

Obrigar médicos a cumprir tempo mínimo de serviço no SNS?

 

A 12 de fevereiro, Rita Ferreira, editora de “Sociedade”, do Expresso, publicava um texto sob o título “PS recupera ideia polémica de Marta Temido de obrigar médicos a cumprir tempo mínimo de serviço no SNS após a especialização”, ancorada no programa eleitoral do Partido Socialista (PS), denominado “Plano de Ação para Portugal Inteiro, 2024”, então apresentado.

A articulista não olvida o pano de fundo e sublinha a aposta no reforço da dedicação plena dos médicos, mas adianta que o PS quer “ir mais além”, pelo que relança “a ideia de que os profissionais de saúde formados pelo Estado devem, de alguma forma, retribuir a formação que receberam com trabalho dedicado no serviço público”.

No verão de 2019, a então ministra da Saúde, Marta Temido, avaliava “a ideia de exigir um tempo mínimo de serviço no SNS [Serviço Nacional de Saúde] aos jovens médicos, de maneira a compensar o Estado pelo valor gasto na formação destes profissionais”. Logo se multiplicaram as críticas, as quais pressagiavam o fracasso da ideia, que não avançou. Com efeito, a toda a polémica levantada sobrepôs-se a pandemia e, depois, Marta Temido abandonou a pasta da Saúde.

Entretanto, a pandemia acabou, embora não os casos de covid-19, e começou a luta dos médicos por aumentos salariais na ordem dos 30%, processo em cessar-fogo, após acordo com uma das estruturas sindicais, para não adicionar estranha turbulência ao período pré-eleitoral.

Porém, logo que os atuais protagonistas do partido que ainda governa e se candidata a eleições retomaram a ideia de Marta Temido, veio a Ordem dos Médicos (OM) acusar a hipotética medida de estalinista, muito embora sem pressagiar, como Miguel Guimarães, bastonário em 2019 (e, agora, elemento da AD – Aliança Democrática), que “vai correr mal”.

Não tendo de me rever na globalidade do programa do PS, mas concordando com a ideia, não pelo lado da retribuição, mas pelo ângulo da necessidade de meios do país, fui espreitar o texto apresentado a público.

No âmbito da 2.ª MISSÃO: UM ESTADO SOCIAL FORTE, MODERNO E INCLUSIVO, no apartado “2. Um Serviço Nacional de Saúde universal, forte e Saúde universal, forte e resiliente”, depois de discorrer sobre a relevância e o histórico do SNS, o texto mostra um subapartado 2.1 referente ao compromisso “na valorização dos profissionais de saúde”.

Tal compromisso materializa-se em encetar negociações com vista um plano de revisão das carreiras e de valorização salarial, reforçando a formação e a investigação e melhorando as condições de trabalho; equiparar a posição de entrada dos enfermeiros aos licenciados da carreira geral da Administração Pública; incentivar a dedicação plena e em exclusividade ao SNS; atribuir incentivos especiais aos profissionais que trabalhem em territórios menos atrativos, através de apoios ao alojamento e às famílias, assegurando-lhes o desenvolvimento profissional e o acesso à telemedicina e a pertença a equipas multidisciplinares; rever o quadro de alocação de tarefas aos profissionais do SNS, visando a elevação dos níveis de eficiência e de eficácia, na linha dos cuidados aos utentes; promover maior abrangência de atividade de enfermagem, sobretudo nos contextos em que a resposta médica é insuficiente, aumentando a capacidade de prestação de cuidados de proximidade; rever e dignificar a carreira dos administradores hospitalares e das chefias intermédias, promovendo a sua valorização salarial e a adoção de um modelo de avaliação de desempenho adequado; (temos, a seguir, os dois itens polémicos) avaliar a possibilidade de introdução de um tempo mínimo de dedicação ao SNS pelos profissionais de saúde, nomeadamente médicos, na sequência do período de especialização; e avaliar a possibilidade de introdução de um quadro de compensações, pelo investimento público do país na sua formação, por parte de médicos que pretendam emigrar ou ingressar no setor privado.

O verbo “avaliar” pode significar “querer fazer”, mas experimentando a ver se resulta. Não afiança que haja suporte epistemológico que ancore a medida em causa. 

Discordo do argumento de que, se é o Estado a custear a formação dos médicos, deve ser compensado por isso, ou seja, de que o investimento na formação deve ser pago em tempo de serviço, em dinheiro ou em espécie. Sou do tempo em que, por exemplo, os sacerdotes diocesanos eram ordenados a título de serviço à diocese que os formou; e, ainda, se mencionavam casos de ex-seminaristas que, ao solicitarem uma certidão de estudos, eram obrigados a pagar uma quantia avultada para o tempo. A justiça com a formação não passa por tais critérios, na minha ótica.

O PS aponta dois grupos de médicos a abranger por este mecanismo: os recém especialistas e os que pretendem emigrar ou ingressar no setor privado. Para os primeiros, aponta a possibilidade de “introdução de um tempo mínimo de dedicação ao SNS pelos profissionais de saúde, nomeadamente médicos, na sequência do período de especialização”; e, para os segundos, a “possibilidade de introdução de um quadro de compensações, pelo investimento público do país na sua formação, por parte de médicos que pretendam emigrar ou ingressar no setor privado”.

Fonte do PS esclareceu, mais tarde, que “avaliar a possibilidade” significa que qualquer uma dessas medidas não será tomada sem avaliação, negociação e aceitação por parte das estruturas representativas dos médicos. Não se espera que a classe médica, em luta por aumentos salariais e pretendendo a retoma das negociações, mal haja novo governo, aceite as duas medidas em evidência. Pedro Nuno Santos prometeu chamar, de imediato, os profissionais de saúde para negociar “um plano concertado de revisão das carreiras e de valorização salarial, reforçando a vertente de formação e investigação e melhorando as condições de trabalho”.

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Para os enfermeiros a proposta é mais clara: “equiparar a posição de entrada dos enfermeiros aos licenciados da carreira geral da Administração Pública”; e aos administradores hospitalares é prometido “rever e dignificar a carreira” destes profissionais, a par da das chefias intermédias.

Outro ponto polémico é o da promoção de “uma maior abrangência de atividade de enfermagem, sobretudo nos contextos em que a resposta médica é insuficiente, aumentando a capacidade de prestação de cuidados de proximidade”. A ideia agrada aos enfermeiros, mas não aos médicos. São de recordar as críticas da OM, quando a Direção-Geral da Saúde (DGS) publicou uma norma sobre a assistência ao parto de baixo risco, que poderia ser feita por enfermeiros especialistas. E, em contraponto, é de referir que alguns enfermeiros emigram para o Reino Unido e para a Suíça, porque, além da valorização salarial, lhes são confiados atos de maior responsabilidade. 

Com a referenciação dos doentes para terem acesso às urgências hospitalares – já no quadro da governação do SNS –, o PS propõe o regresso dos atendimentos permanentes nos centros de saúde de referência. Os Serviços de Atendimento Permanente (SAP), existentes por todo o país, foram encerrando com Ana Jorge.

O PS promete “criar uma rede de atendimento permanente, a funcionar em centros de saúde de referência, servindo uma área geográfica delimitada e contribuindo assim para reduzir o recurso às urgências hospitalares”.

Na área dos cuidados de saúde primários o PS fala, a par da AD, do recurso a médicos e enfermeiros aposentados, para os quais vigora, desde 2010, um regime de contratação especial. Segundo dados de junho de 2023, trabalhavam no SNS cerca de 500 médicos aposentados, principalmente de Medicina Geral e Familiar.

Sem afastar a articulação do SNS com o sistema privado de saúde, o PS define como objetivo a definição de uma estratégia “plurianual de cooperação com setor privado, assumindo o princípio da supletividade e colocando o utente no centro dos processos de articulação e cooperação”. Aqui, por mais que o PS queira traçar um separador da AD, que existe, a verdade é que foram os seus governos que, nos últimos anos, recorreram ao setor privado na criação dos cheques-consulta, na articulação durante a pandemia, na contratualização de camas de cuidados continuados e na transferência de grávidas para unidades de saúde privadas da Grande Lisboa quando a falta de obstetras levou à impossibilidade de completar escalas de urgências em vários hospitais.

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Voltando à questão em apreço, é de salientar que, Também a 12 de fevereiro, o constitucionalista Vital Moreira, no blogue “Causa nossa”, se regozija por ver perfilhada politicamente pelo PS a ideia que vem defendendo há seis anos. Admite que pode ser polémica “à luz da lente política da direita liberal” a retoma da ideia imputada pelo Expresso “a Marta Temido, em 2019”, de exigir aos médicos formados nos SNS “um período de dedicação ao serviço público, antes de mudarem para o setor privado (ou para o estrangeiro), como forma de retribuição da formação de especialidade e correspondente qualificação profissional recebida, ‘cortesia’ dos contribuintes”.

Recorda que já tinha defendido, em 2017, a ideia no “Causa nossa”, nos seguintes termos: “Julgo, mesmo, que os médicos formados pelo SNS deveriam ficar vinculados um certo número de anos ao setor público (salvo havendo redundância) para ‘retribuir’ os custos da sua formação, sendo obrigados a candidatar-se às vagas abertas em qualquer ponto do país. É inadmissível que fiquem desertos concursos no SNS, só porque os médicos recém-formados preferem, logo, locais mais confortáveis e mais rendosos.”

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Como referi, acompanho a ideia, mas não pelos motivos apresentados.

Não me preocupa se a proposta é estalinista ou totalitária (não o será, se negociada e justamente compensada), mas preocupa-me que um SNS – cada vez mais necessário, porque temos um país envelhecido, cada vez mais pobre e com gente com mais morbidades – se esteja a esboroar, face à ambiciosa competição negocial do setor privado. Também me parece inaceitável resolver o problema através do pagamento da formação, que não é mercantilizável. Ouvi falar de eclesiásticos, a quem a respetiva diocese ou instituto patrocinou formação além da eclesiástica, e de outros profissionais que fizeram formação tutelada por instituições às quais deviam servir. E, desavindos das respetivas entidades tutelares, resolveram pagar a formação.   

O Estado, que se sente obrigado a formar alguns profissionais, como médicos, magistrados (em exclusivo, bem como polícias e militares), professores, enfermeiros, etc., deve dispor de autoridade suficiente para, em caso de insuficiência dos seus quadros e crescendo as necessidades da população, alocar (obrigatoriamente, durante um certo período de tempo) um número razoável de profissionais ao seu serviço, para colmatar as necessidades do sistema. E, quando não acautela esse desiderato, pode entrar em défice de funcionamento. É o que está a acontecer nas forças armadas, depois da abolição do serviço militar obrigatório, passando a haver mais oficiais do que praças, e pode vir a acontecer com os professores ou com os polícias.

De modo semelhante, pode agir, em caso de necessidade, quando a formação em causa é prestada por entidades privadas, neste caso, através de negociação com tais entidades.

Obviamente, deve evitar-se qualquer laivo de totalitarismo, continuar o processo de valorização das carreiras, e compensar, de forma justa, o serviço que for prestado em regime obrigatório. Com efeito, a liberdade de iniciativa e de escolha, sendo bens preciosos, não superam o serviço ao bem comum. Sempre foi válida e imperativa a máxima: “Salus Reipublicae lex suprema esto” (seja a salvação da comunidade a lei suprema).

É legítima a iniciativa privada da formação e da atividade, com a obtenção do lucro, mas incumbe ao Estado prover, de forma gratuita e a nível universal, à saúde dos cidadãos.

20234.02.14 – Louro de Carvalho

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