quinta-feira, 14 de maio de 2015

O Papa das surpresas. Qual deles?

No termo da pretérita peregrinação internacional aniversária de 12 e 13 de maio, o Bispo de Leiria-Fátima, referindo-se ao Papa Francisco, chamou-lhe “o Papa das Surpresas”. A razão de ser desta rara denominação tem a ver com o facto de inesperadamente Francisco, no fim da sua catequese de quarta-feira, ter pedido ao padre português que rezasse uma Ave-Maria em português, que os demais peregrinos acompanharam em silêncio, no contexto da oração que o Pontífice fizera em silêncio junto de uma imagem de Nossa Senhora de Fátima e de referências explícitas que fez à Mãe de Deus e ao 13 de maio.
E também aquele prelado português, que não deixa de valorizar os pequenos gestos e os momentos significativos, pediu aos portugueses que rezassem uma Ave-Maria pelo Santo Padre.
Na verdade, o Papa assinalou ontem, dia 13, na Praça de São Pedro, a memória da primeira das aparições de Fátima, junto da imagem de Nossa Senhora de Fátima, previamente colocada junto da sua cadeira, e convidou os católicos a manter viva esta devoção, proferindo estas palavras:
“Neste dia de Nossa Senhora de Fátima, convido-vos a multiplicar os gestos diários de veneração e imitação da Mãe de Deus. Confiai-Lhe tudo o que sois, tudo o que tendes; e assim conseguireis ser um instrumento da misericórdia e ternura de Deus para os vossos familiares, vizinhos e amigos”.

A audiência geral de quarta-feira, um encontro catequético com milhares de peregrinos, começou com um momento de silêncio, quando Francisco se deslocou para junto da imagem, colocada, como se disse, perto da sua cadeira, para rezar e fazer um pequeno gesto de carinho.
No momento das saudações a grupos específicos de peregrinos, depois de saudar os peregrinos lusófonos presentes, disse de improviso ao padre português que, tal como fizera uma síntese em português do conteúdo da catequese papal, tinha acabado de traduzir a saudação aos lusófonos:
“Agora, peço ao meu irmão português que, neste dia de Nossa Senhora de Fátima, reze em português uma Ave-Maria à Virgem, com todos em silêncio”.

Francisco voltou a referir-se ao 13 de maio, no final da audiência, durante a tradicional saudação aos grupos de jovens, doentes e recém-casados, fazendo o pertinente apelo:
“Hoje é a memória litúrgica da Beata Virgem Maria de Fátima. Caros jovens, aprendei a cultivar a devoção à Mãe de Deus com a recitação diária do Rosário; caros doentes, senti Maria presente na hora da cruz; e vós, caros esposos, rezai-lhe para que não falte nunca na vossa casa o amor e o respeito recíproco”.

Na rota das celebrações centenárias fatimitas, uma imagem peregrina da Virgem de Fátima está na Itália para uma visita de cinco meses às comunidades católicas da região, com especial destaque para as dioceses de Lácio, Campânia e Puglia. Em Roma, o 13 de maio, além das solenes referências papais acima descritas, ficou vincado com uma procissão com a referida imagem de Nossa Senhora de Fátima entre a basílica romana de Santa Cruz de Jerusalém e a basílica papal de São João de Latrão (a sé catedral do Papa enquanto Bispo de Roma).
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Francisco surpreendeu o mundo logo que se apresentou à multidão na tarde da sua eleição, a 13 de março de 2013, para o sumo pontificado, fazendo explícita menção do seu predecessor imediato, o Papa emérito, desejando que Deus o conserve com vida e saúde e pedindo aos peregrinos que rezassem consigo, pelo emérito, um Pai-Nosso, bem como solicitando àquele povo, perante o qual se inclinou, que rezasse pelo Papa antes de este proferir a sua primeira bênção Urbi et Orbi (recitada, que não cantada).
O Papa argentino continua a surpreender como profeta, testemunha e apóstolo da ternura e da compaixão de Deus, pelas imagens de Igreja que levanta das brumas da memória, pelas teclas que bate – o risco, a inclusão, a procura, a guarda, a guia, a saída às periferias – pelo combate ao carreirismo e a outras tentações que assolam os homens da Igreja, pela pastoral com o odor das ovelhas, pela noção de Igreja como “hospital de campanha em socorro da humanidade ferida”. E o Papa tem ido em missão, evidenciando os problemas candentes, destacando corajosamente os temas fraturantes, denunciando os males um pouco por todo o lado e encarando frontalmente os males e as causas deles, mas semeando a esperança e soprando forte aos ventos de mudança provindos do Espírito que dá vida e força à Igreja.
Todavia, não posso deixar de sublinhar como os rasgos mais surpreendentes de Francisco até hoje a proclamação do “Ano da Vida Consagrada” e a proclamação do “Jubileu Extraordinário da Misericórdia”, bem como o alinhamento do fio condutor de sua realização discursiva com os valores inerentes à misericórdia e à ternura, de que não há que ter medo. Depois, é o tom coloquial das suas intervenções que fascina quem o ouve, bem como o incitamento a que se diga tudo o que se tem para dizer e o acolhimento que presta a quem se lhe dirige pessoalmente para lhe contar alguma experiência de vida, mesmo que considerada impertinente ou inoportuna.
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Porém, ao enaltecermos os rasgos de surpresa do pontificado do Papa Francisco, não podemos ignorar ou minorar os rasgos de surpresa dos predecessores, em especial os daqueles cujo pontificado foi mais meteórico.
João XXIII surpreendeu com a convocação do Concílio Vaticano II, as encíclicas Pacem in Terris (dignidade humana) e Mater et Magistra (o social) e a postura otimista e próxima dos fiéis.  
Paulo VI, que levou por diante a condução da atividade conciliar (com a promulgação dos seus 16 documentos e todos os instrumentos deles decorrentes, que levaram à respetivas reformas), foi assaz surpreendente: retomou a tradição, perdida nos séculos, da visita às paróquias romanas, fez aposta clara no diálogo (especialmente com a encíclica Ecclesiam Suam), inaugurou o mecanismo das viagens apostólicas fora de Itália (com a osculação do solo do território que visitava, à semelhança do que fez quando dera entrada em Milão como seu arcebispo), foi um bom leitor dos “sinais dos tempos”, proclamou o Ano da Fé no XX centenário do martírio dos apóstolos Pedro e Paulo, professou o extenso Credo de Povo de Deus, conduziu a celebração do ano jubilar de 1975, optou pelo figurino da exortação apostólica (notável ficou a Evangelii Nuntiandi), iniciou a instituição da caminhada sinodal, renunciou à sede gestatória e à tiara pontifícia, acompanhou o dinamismo da autodeterminação e independência dos povos, desenvolveu largamente a doutrina social, sobretudo com a Populorum Progressio e a Octogesima adveniens e instituiu uma série de dias mundiais temáticos.
João Paulo I foi surpreendente com o seu sorriso, a assunção do duplo nome, a renúncia à cerimónia da coroação, o discurso informal e coloquial, a evidência do rosto materno de Deus, a sede de reforma da Igreja e o abandono do plural majestático no discurso como Bispo de Roma.
João Paulo II (com um pontificado longo) surpreendeu logo com a pequena preleção prévia à sua primeira bênção Urbi et Orbi, o pedido de correção dos seus erros de língua italiana, a multiplicidade de anos temáticos (Ano Santo da Redenção, 1983; Grande Jubileu milenar, 2000; Ano Mariano, 1986), as Jornadas Mundiais da Juventude, a multiplicidade das viagens apostólicas, a profusão magisterial (encíclicas; exortações apostólicas, sobretudo as pós-sinodais; os discursos; as homilias; as cartas apostólicas; as constituições apostólicas; as mensagens papais; …), a promulgação do Código de Direito Canónico e do Catecismo da Igreja Católica, bem como a publicação do Compêndio da Doutrina Social da Igreja, as múltiplas orações que compôs e propôs e a forma como reagiu ao atentado de 13 de maio de 1981 e aos acidentes pessoais por que passou.
E Bento XVI, que entrou no exercício do ministério petrino, marcado pelo estigma da Congregação da Doutrina da Fé – dicastério a partir do qual chamou à atenção muitos teólogos, travou a teologia da libertação e “apertou” algumas das ideias e atitudes de Wojtyla que pareciam arejadas – também protagonizou algumas surpresas, a mais tocante das quais foi a da renúncia ao sumo pontificado e a expressão antecipada de reverência e adesão ao futuro Papa.
Mas não é de descartar a diária afabilidade de trato; a simplicidade de alguns dos gestos; a acutilância de algumas afirmações; a produção de alguns volumes de mera reflexão teológica, à margem do magistério papal, e o convívio com antigos alunos; a adesão dos jovens às jornadas mundiais (sobretudo a de Madrid); as suas três encíclicas e as exortações apostólicas pós-sinodais; a proclamação do Ano Sacerdotal, do Ano Paulino e do Ano da Fé (com a preparação da que veio a ser a encíclica Lumen Fidei, assumida pelo sucessor).
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Por ocasião do 5.º aniversário da sua eleição para o sumo pontificado, a Libreria Editrice Vaticana publicou o livro Com il Papa a Roma e per le vie del mondo, preparada pelo secretário particular de Bento XVI, que mereceu o 27.º prémio “Capri San Michele per le Sezione Immagini Verità, atribuído à obra Benedetto XVI urbi et orbi, entregue na tarde de 25 de setembro. Mons. Gänswein disse, entre outras coisas, sobre o “estilo e coragem de um homem que fala de Deus, o seguinte, transcrito de forma livre:
A água é sempre a mesma: composição de hidrogénio e oxigénio. E no entanto, a água em toda a parte é diferente, porque adquire caraterísticas singulares em relação ao terreno que a filtra. Assim acontece com os Papas: desempenham a mesma missão e respondem ao mesmo chamamento de Jesus; no entanto, cada um responde com a própria personalidade e sensibilidade irrepetível. Tudo isto é maravilhosamente bonito: é sinal da unidade na diversidade, milagre de novidade na continuidade, manifestação suprema daquilo que acontece em todo o corpo da santa Igreja, onde a novidade e a continuidade convivem e se harmonizam incessantemente. Bento XVI não é igual a João Paulo II, Deo gratias: Deus não ama a repetição nem as fotocópias. (…). Porém – facto singular e edificante – Bento XVI apresentou-se ao mundo como o primeiro devoto do seu predecessor – gesto de grande humildade, que surpreende e suscita uma admiração comovida. A 20 de abril de 2005, falando aos cardeais, assim se expressou:
“Convivem no meu coração nestas horas dois sentimentos contrastantes. Por um lado, um sentido de inaptidão e de humana perturbação pela responsabilidade (...). Por outro, sinto viva em mim uma profunda gratidão a Deus que não abandona o rebanho, mas o orienta através dos tempos, sob a guia de quantos Ele elegeu vigários do seu Filho e constituiu pastores. (…) Este reconhecimento íntimo pelo dom da divina misericórdia prevalece apesar de tudo no meu coração. E considero este facto uma graça especial que me foi obtida pelo meu venerado Predecessor. Tenho a impressão de sentir a sua mão forte que estreita a minha, de ver os seus olhos sorridentes e de ouvir as suas palavras, dirigidas neste momento particularmente a mim: Não tenhas medo!”.

(…) Bento XVI deu à Igreja e ao mundo uma lição de estilo pastoral: quem começa um serviço eclesial não deve apagar os vestígios de quem trabalhou antes, mas tem o dever de pôr com humildade os pés nas pegadas que encontrou. Se acontecesse sempre assim, seria salvaguardado um grande património de bem, que muitas vezes é demolido e delapidado. O Papa recolheu esta herança e continua a elaborá-la no seu estilo manso e reservado, com suas palavras pacatas e profundas, com seus gestos comedidos mas incisivos. (…) É necessário ressaltar como nos surpreendeu: em primeiro lugar pela suavidade com que assumiu a tarefa do seu predecessor, interpretando-a de maneira nova e todavia igualmente cheia de vida. João Paulo II foi o Pontífice das grandes imagens, do poder imediatamente evocativo; Bento XVI é o Papa da palavra, da força da palavra: é um teólogo, mais do que um homem de grandes gestos, um homem que ‘fala’ de Deus. Do mesmo modo, surpreendeu-nos o modo como o ex-prefeito da CDF, com a sua intensidade e simplicidade tão espontânea e verdadeira, consegue sem qualquer esforço conquistar o coração dos homens. Foi inesperada a coragem que marca o pontificado do Papa alemão. Não teme confrontos nem debates. Chama por nome as insuficiências e os erros do Ocidente e critica a violência que pretende ter justificação religiosa. E recorda-nos que se rejeita Deus com o relativismo e com o hedonismo bem como com a imposição da religião pela ameaça e pela violência. No centro do seu pensamento encontra-se o problema da relação entre fé e razão, entre religião e renúncia à violência. (…) A razão deve deixar espaço à fé; e a fé deve dar testemunho da razão, para que ambas não se diminuam mutuamente no horizonte limitado da ontologia. Ao Papa interessa reafirmar o núcleo da fé cristã: o amor de Deus pelo homem, que, encontrando expressão insuperável na morte de Jesus na cruz e na ressurreição, constitui o fulcro imutável em que se fundamenta a confiança cristã no mundo e o compromisso a favor da misericórdia, caridade e renúncia à violência. (…) A mensagem papal é tão simples quão profunda: a fé não é um problema que deve ser resolvido, mas um dom que é preciso descobrir novamente, dia após dia. Ela confere alegria e plenitude. Todavia, a fé tem um rosto humano – Jesus Cristo. Nele, o Deus escondido tornou-se visível, tangível. Na sua grandeza incomensurável, Deus oferece-se a nós no seu Filho. O Papa faz questão de anunciar o Deus que se fez carne, urbi et orbi , para pequenos e grandes, para quem tem poder e para quem não o tem, dentro e fora da Igreja, quer se queira quer não. (Cf Osservatore Romano, 2010.09.26).
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Voltando ao perfil de Francisco, a revista Sábado, de 14 de maio, relata um caso emblemático do estado atual que necessita de reconversão e de que se dá conta em magra síntese. Um padre irlandês fora acusado, há mais de uma década, de um crime que sempre negou ter cometido. Apesar de as investigações policiais e judiciárias o terem declarado inocente, foi “excomungado e desparamentado”. Regressado à comunidade, foi impedido do exercício das ordens; e, após ter visto muitas portas episcopais encerradas, encontrou abrigo longe do lugar de origem.
Recentemente, no Vaticano, Francisco recebeu-o e, numa longa conversa, disse-lhe emocionado: “Obrigado por teres mantido a Fé, em 11 anos de tortura e desesperança”.

Francisco segue e lembra Urbi et Orbi, com consequências devastadoramente positivas, o mandamento que frisa a condição do amor evangélico ao próximo, ser fruto da liberdade.

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