Pode ser considerada como decorrente da resposta de um Chefe
de Estado a um pedido de clemência que redunda na comutação da pena de morte em
prisão perpétua ou como pena de grau imediatamente menos pesada que a pena capital.
Por outro lado, há quem afirme que a pena de morte se torna
mais onerosa para o erário público e para a diplomacia que a prisão perpétua –
razão por que alguns poderes judiciários, não por questões humanitárias, mas
pelos custos a ela inerentes, quando não executada de imediato (dando
azo a reiteradas revisões de processos e outros apoios ao condenado), fazem
opção por ela.
Seja como for, alguns peritos entendem que a prisão perpétua
não passa de uma forma mascarada de pena capital, pelo que significa de igual
menosprezo pela dignidade da pessoa humana e por igual privação de perspetiva de
futuro do condenado.
Também o Papa Francisco, no discurso que pronunciou perante a
Delegação da Associação Internacional de Direito Penal, a 23 de outubro de
2014, estende à matéria da prisão perpétua a mesma obrigação que a de lutar
contra “a pena de morte – legal ou ilegal e em todas as suas formas – por parte
de todos os cristãos e homens de boa vontade”, porque, na convicção do
Pontífice, “a prisão perpétua é uma pena de morte escondida”.
É óbvio que a enunciação pelo Papa da necessidade de melhoria
dos sistemas judiciários e das “condições carcerárias, no respeito pela
dignidade humana das pessoas privadas da liberdade”, a ter em conta em qualquer
tipo de prisão, preventiva ou por motivo de sentença condenatória tramitada em
julgado, é de exigir a fortiori
tratando-se da prisão perpétua ou o tempo da moratória existente entre a
sentença e a execução da pena capital. O mesmo se deve dizer da proibição da
tortura como pena ou como método para obter confissão de crime, das sevícias,
mutilações e outras crueldades, bem como dos trabalhos forçados. E condenável a
todos os títulos humanitários se tornam as execuções extrajudiciais ou
decorrentes de processos sumários ou em tribunais plenários, bem como a prisão
preventiva sem motivo suficientemente grave ou por demasiado tempo.
Este ano, em carta que, a 20 de março passado, endereçou ao Presidente da Comissão Internacional contra a Pena de Morte, o
mesmo Papa Francisco também se referiu
à pena de prisão perpétua e quase similares. E fê-lo nos termos seguintes:
Por outro lado, a pena da prisão perpétua, assim como
as que pela sua duração incluem a impossibilidade para o condenado de projetar
um futuro em liberdade, podem ser consideradas penas de morte ocultas, dado que
com elas não se priva o culpado da sua liberdade, mas procura-se privá-lo da
esperança. Mas, mesmo se o sistema penal pode dispor do tempo dos culpados,
nunca poderá apoderar-se da sua esperança.
O respeito
pelo princípio da dignidade da pessoa humana implica que as penas não
ultrapassem a justa medida da sua finalidade, designadamente a proporcionalidade
entre o crime cometido e o ónus da pena. De outro modo, não cumprem a sua
função de prevenção social do crime.
Pode, a este
respeito, pensar-se que há crimes para os quais alguns sistemas penais preveem
moldura penal demasiado suave, tendo em conta a gravidade do crime, o dano para
as vítimas e suas famílias e o alarme social.
Deve, no
entanto, ter-se em conta que a punição não constitui a finalidade única da
pena. O sistema judicial, ao fazer justiça, não deve alinhar com qualquer sede
de vingança, muito menos vingança sistémica ou popular, mas deve procurar
também a cura ou a regeneração do delinquente e a sua reinserção na sociedade
e, se possível, na família. E, como declara o Papa, o sistema penal não pode
capturar a esperança do culpado.
Por outro
lado, se é legítimo e necessário privar o condenado da sua liberdade, essa
privação não pode ser definitiva, deve limitar-se à coarctação da liberdade de
circular, não pode limitar a liberdade de pensar e sentir e sobretudo impedir
de sonhar o futuro.
***
Talvez à
perspetiva do combate à pena de morte e à prisão perpétua seja útil a reflexão
sobre a finalidade das penas.
O n.º 2266 do
Catecismo da Igreja Católica (CIC) dá-nos uma
síntese da sua finalidade:
A pena tem como primeiro objetivo reparar a desordem introduzida pela culpa. Quando esta pena é
voluntariamente aceite pelo culpado, adquire um valor de expiação. A pena tem ainda como objetivo, para além da defesa da ordem pública e da proteção da segurança das pessoas, uma finalidade medicinal, posto que
deve, na medida do possível, contribuir para a emenda do culpado.
São assim múltiplos os
objetivos da pena, que um regime de direito democrático deve ter em
consideração:
- Reparação da desordem induzida pela culpa;
- Defesa da ordem pública;
- Segurança das pessoas;
- Prevenção social do crime;
- Expiação pelo crime cometido;
- Emenda do culpado.
Ora tais objetivos não
serão atingidos se destrói a vida do condenado ou o seu futuro.
Não está nem nunca esteve
em causa a legitimidade e o dever do Estado em reprimir o crime. Porém, deve
fazê-lo de forma proporcionada e eficaz.
O mesmo n.º 2266 do CIC
começa por estabelecer:
O esforço do Estado em reprimir a difusão de comportamentos que
lesam os direitos humanos e as regras fundamentais da convivência civil
corresponde a uma exigência de preservar o bem comum. É direito e dever da
autoridade pública legítima infligir penas proporcionadas à gravidade do
delito.
Todavia, o
Estado não pode pensar que atinge os objetivos acima enunciados somente com a
aplicação da pena ou apenas mediante a ação judiciária. Tem de mobilizar outros
sistemas como o da educação, o da saúde, o da segurança social, o da segurança
pública, o do mundo do trabalho e da economia, o da cultura e das artes.
O culpado e
condenado não pode deixar de ter pontes para a família e para a sociedade. E
estas não podem oferecer-lhe o estigma e a rejeição. Porém, a reintegração não
se faz sem as devidas cautelas, assim como não basta a ação repressiva e a ação
reintegradora: é necessário promover a prevenção nos seus diversos níveis,
imunizar o sistema judiciário e o sistema prisional de seus erros, desvios e
insuficiências, bem como de alguns dos seus facilitismos.
Não pode
partir-se da insuficiência dos sistemas de poder para decretar penas mais
pesadas que os crimes, como não pode insistir-se na seletividade da ação
judiciária nem ignorar-lhe os erros.
***
Certamente
que a Constituição da República Portuguesa (CRP),
se for observada pelos poderes, servirá de insigne guia normativo. O seu art.º
30.º, no quadro dos “limites das penas e das medidas de segurança”, estabelece:
1. Não pode haver
penas nem medidas de segurança privativas ou restritivas da liberdade com caráter
perpétuo ou de duração ilimitada ou indefinida.
2. Em caso de
perigosidade baseada em grave anomalia psíquica, e na impossibilidade de
terapêutica em meio aberto, poderão as medidas de segurança privativas ou
restritivas da liberdade ser prorrogadas sucessivamente enquanto tal estado se
mantiver, mas sempre mediante decisão judicial.
3. A responsabilidade
penal é insuscetível de transmissão.
4. Nenhuma pena
envolve como efeito necessário a perda de quaisquer direitos civis,
profissionais ou políticos.
5. Os condenados
a quem sejam aplicadas pena ou medida de segurança privativas da liberdade
mantêm a titularidade dos direitos fundamentais, salvas as limitações inerentes
ao sentido da condenação e às exigências próprias da respetiva execução.
Em suma, a
CRP proíbe a duração perpétua, ilimitada ou indefinida de penas e medidas de
segurança restritivas de liberdade; permite a prorrogação daquelas medidas de
segurança, por motivos psíquicos, pelo tempo necessário, mas sob decisão
judicial; determina a intransmissibilidade da responsabilidade penal; e declara
a manutenção dos direitos civis, profissionais e políticos, apesar da pena, e
outros direitos fundamentais, exceto os inerentes à tipicidade da pena ou da
medida de segurança decretada.
Por seu
turno, o código penal, no seu art.º 40.º, que elenca as “finalidades das penas
e das medidas de segurança”, estabelece:
“A aplicação de
penas e medidas de segurança visa a proteção de bens jurídicos e a reintegração
da pena” – n.º 1; “Em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa” –
n.º 2; “A medida de segurança só pode ser
aplicada se for proporcionada à gravidade do facto e à perigosidade do agente”
– n.º 3.
Ora, as
finalidades em si sintetizam-se em duas: a proteção dos bens jurídicos (acima enunciados: vida, segurança,
ordem, justiça…); e a
reintegração da pena (em
função do direito à vida e ao reconhecimento da dignidade). Por outro lado, o código penal estabelece
a observância da proporcionalidade da pena em relação ao crime. A este
respeito, o art.º 41.º estabelece o limite da pena de prisão:
1- A pena de prisão tem, em regra, a duração mínima de
1 mês e a duração máxima de 20 anos. 2 - O limite máximo da pena de prisão é de
25 anos nos casos previstos na lei. 3 - Em caso algum pode ser excedido o
limite máximo referido no número anterior.
Parece
tratar-se de um regime penal equilibrado, se tivermos em conta as diversas
finalidades das penas, o contributo de outros sistemas sociais e políticos e a
correta reavaliação das penas e a boa gestão das saídas da prisão.
A
legitimidade do poder punitivo do Estado, por um lado, decorre da necessidade
teleológica da realização dos fins do próprio Estado, definidos
democraticamente; e, por outro lado, assenta na estrita necessidade humanista de
assegurar a realização da liberdade individual, a autonomia de cada cidadão e a
paz social.
***
Partindo do
princípio de que, se a justiça for levada até às últimas consequências, sem
olhar a outros valores, deixa de ser justiça e passa a ser injúria, convém
terminar esta reflexão com algumas das palavras de Francisco, a 20 de março,
com alguns sublinhados, mas sem mais comentários:
“Encorajo-vos a continuar com a obra que estais a realizar,
porque o mundo tem necessidade de testemunhas
da misericórdia e da ternura de Deus.
“Despeço-me confiando-vos ao Senhor Jesus, que nos dias da
sua vida terrena não quis que ferissem os seus perseguidores em sua defesa – “Embainha
a tua espada” (Mt 26,52) – foi
capturado e condenado injustamente à morte, e identificou-se com todos os presos, culpados ou não: “Estava na
prisão e viestes visitar-me” (Mt 25,36). Ele, que diante da mulher adúltera não se interrogou
sobre a sua culpabilidade, mas convidou os acusadores a examinar a própria
consciência antes de a lapidarem (cf Jo 8,1-11), vos conceda o dom da sabedoria, para que as ações que empreendereis a favor da abolição desta pena cruel sejam
oportunas e fecundas.”.
Prosit!
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