quinta-feira, 7 de maio de 2015

A propósito da prisão perpétua

Pode ser considerada como decorrente da resposta de um Chefe de Estado a um pedido de clemência que redunda na comutação da pena de morte em prisão perpétua ou como pena de grau imediatamente menos pesada que a pena capital.
Por outro lado, há quem afirme que a pena de morte se torna mais onerosa para o erário público e para a diplomacia que a prisão perpétua – razão por que alguns poderes judiciários, não por questões humanitárias, mas pelos custos a ela inerentes, quando não executada de imediato (dando azo a reiteradas revisões de processos e outros apoios ao condenado), fazem opção por ela.
Seja como for, alguns peritos entendem que a prisão perpétua não passa de uma forma mascarada de pena capital, pelo que significa de igual menosprezo pela dignidade da pessoa humana e por igual privação de perspetiva de futuro do condenado.
Também o Papa Francisco, no discurso que pronunciou perante a Delegação da Associação Internacional de Direito Penal, a 23 de outubro de 2014, estende à matéria da prisão perpétua a mesma obrigação que a de lutar contra “a pena de morte – legal ou ilegal e em todas as suas formas – por parte de todos os cristãos e homens de boa vontade”, porque, na convicção do Pontífice, “a prisão perpétua é uma pena de morte escondida”.
É óbvio que a enunciação pelo Papa da necessidade de melhoria dos sistemas judiciários e das “condições carcerárias, no respeito pela dignidade humana das pessoas privadas da liberdade”, a ter em conta em qualquer tipo de prisão, preventiva ou por motivo de sentença condenatória tramitada em julgado, é de exigir a fortiori tratando-se da prisão perpétua ou o tempo da moratória existente entre a sentença e a execução da pena capital. O mesmo se deve dizer da proibição da tortura como pena ou como método para obter confissão de crime, das sevícias, mutilações e outras crueldades, bem como dos trabalhos forçados. E condenável a todos os títulos humanitários se tornam as execuções extrajudiciais ou decorrentes de processos sumários ou em tribunais plenários, bem como a prisão preventiva sem motivo suficientemente grave ou por demasiado tempo.
Este ano, em carta que, a 20 de março passado, endereçou ao Presidente da Comissão Internacional contra a Pena de Morte, o mesmo Papa Francisco também se referiu à pena de prisão perpétua e quase similares. E fê-lo nos termos seguintes:
Por outro lado, a pena da prisão perpétua, assim como as que pela sua duração incluem a impossibilidade para o condenado de projetar um futuro em liberdade, podem ser consideradas penas de morte ocultas, dado que com elas não se priva o culpado da sua liberdade, mas procura-se privá-lo da esperança. Mas, mesmo se o sistema penal pode dispor do tempo dos culpados, nunca poderá apoderar-se da sua esperança.

O respeito pelo princípio da dignidade da pessoa humana implica que as penas não ultrapassem a justa medida da sua finalidade, designadamente a proporcionalidade entre o crime cometido e o ónus da pena. De outro modo, não cumprem a sua função de prevenção social do crime.
Pode, a este respeito, pensar-se que há crimes para os quais alguns sistemas penais preveem moldura penal demasiado suave, tendo em conta a gravidade do crime, o dano para as vítimas e suas famílias e o alarme social.
Deve, no entanto, ter-se em conta que a punição não constitui a finalidade única da pena. O sistema judicial, ao fazer justiça, não deve alinhar com qualquer sede de vingança, muito menos vingança sistémica ou popular, mas deve procurar também a cura ou a regeneração do delinquente e a sua reinserção na sociedade e, se possível, na família. E, como declara o Papa, o sistema penal não pode capturar a esperança do culpado.
Por outro lado, se é legítimo e necessário privar o condenado da sua liberdade, essa privação não pode ser definitiva, deve limitar-se à coarctação da liberdade de circular, não pode limitar a liberdade de pensar e sentir e sobretudo impedir de sonhar o futuro.
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Talvez à perspetiva do combate à pena de morte e à prisão perpétua seja útil a reflexão sobre a finalidade das penas.
O n.º 2266 do Catecismo da Igreja Católica (CIC) dá-nos uma síntese da sua finalidade:
A pena tem como primeiro objetivo reparar a desordem introduzida pela culpa. Quando esta pena é voluntariamente aceite pelo culpado, adquire um valor de expiação. A pena tem ainda como objetivo, para além da defesa da ordem pública e da proteção da segurança das pessoas, uma finalidade medicinal, posto que deve, na medida do possível, contribuir para a emenda do culpado.

São assim múltiplos os objetivos da pena, que um regime de direito democrático deve ter em consideração:
- Reparação da desordem induzida pela culpa;
- Defesa da ordem pública;
- Segurança das pessoas;
- Prevenção social do crime;
- Expiação pelo crime cometido;
- Emenda do culpado.
Ora tais objetivos não serão atingidos se destrói a vida do condenado ou o seu futuro.
Não está nem nunca esteve em causa a legitimidade e o dever do Estado em reprimir o crime. Porém, deve fazê-lo de forma proporcionada e eficaz.
O mesmo n.º 2266 do CIC começa por estabelecer:
O esforço do Estado em reprimir a difusão de comportamentos que lesam os direitos humanos e as regras fundamentais da convivência civil corresponde a uma exigência de preservar o bem comum. É direito e dever da autoridade pública legítima infligir penas proporcionadas à gravidade do delito.

Todavia, o Estado não pode pensar que atinge os objetivos acima enunciados somente com a aplicação da pena ou apenas mediante a ação judiciária. Tem de mobilizar outros sistemas como o da educação, o da saúde, o da segurança social, o da segurança pública, o do mundo do trabalho e da economia, o da cultura e das artes.
O culpado e condenado não pode deixar de ter pontes para a família e para a sociedade. E estas não podem oferecer-lhe o estigma e a rejeição. Porém, a reintegração não se faz sem as devidas cautelas, assim como não basta a ação repressiva e a ação reintegradora: é necessário promover a prevenção nos seus diversos níveis, imunizar o sistema judiciário e o sistema prisional de seus erros, desvios e insuficiências, bem como de alguns dos seus facilitismos.
Não pode partir-se da insuficiência dos sistemas de poder para decretar penas mais pesadas que os crimes, como não pode insistir-se na seletividade da ação judiciária nem ignorar-lhe os erros.
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Certamente que a Constituição da República Portuguesa (CRP), se for observada pelos poderes, servirá de insigne guia normativo. O seu art.º 30.º, no quadro dos “limites das penas e das medidas de segurança”, estabelece:
1. Não pode haver penas nem medidas de segurança privativas ou restritivas da liberdade com caráter perpétuo ou de duração ilimitada ou indefinida.
2. Em caso de perigosidade baseada em grave anomalia psíquica, e na impossibilidade de terapêutica em meio aberto, poderão as medidas de segurança privativas ou restritivas da liberdade ser prorrogadas sucessivamente enquanto tal estado se mantiver, mas sempre mediante decisão judicial.
3. A responsabilidade penal é insuscetível de transmissão.
4. Nenhuma pena envolve como efeito necessário a perda de quaisquer direitos civis, profissionais ou políticos.
5. Os condenados a quem sejam aplicadas pena ou medida de segurança privativas da liberdade mantêm a titularidade dos direitos fundamentais, salvas as limitações inerentes ao sentido da condenação e às exigências próprias da respetiva execução.

Em suma, a CRP proíbe a duração perpétua, ilimitada ou indefinida de penas e medidas de segurança restritivas de liberdade; permite a prorrogação daquelas medidas de segurança, por motivos psíquicos, pelo tempo necessário, mas sob decisão judicial; determina a intransmissibilidade da responsabilidade penal; e declara a manutenção dos direitos civis, profissionais e políticos, apesar da pena, e outros direitos fundamentais, exceto os inerentes à tipicidade da pena ou da medida de segurança decretada.
Por seu turno, o código penal, no seu art.º 40.º, que elenca as “finalidades das penas e das medidas de segurança”, estabelece:
 “A aplicação de penas e medidas de segurança visa a proteção de bens jurídicos e a reintegração da pena” – n.º 1; “Em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa” – n.º 2;A medida de segurança só pode ser aplicada se for proporcionada à gravidade do facto e à perigosidade do agente” – n.º 3.

Ora, as finalidades em si sintetizam-se em duas: a proteção dos bens jurídicos (acima enunciados: vida, segurança, ordem, justiça…); e a reintegração da pena (em função do direito à vida e ao reconhecimento da dignidade). Por outro lado, o código penal estabelece a observância da proporcionalidade da pena em relação ao crime. A este respeito, o art.º 41.º estabelece o limite da pena de prisão:
1- A pena de prisão tem, em regra, a duração mínima de 1 mês e a duração máxima de 20 anos. 2 - O limite máximo da pena de prisão é de 25 anos nos casos previstos na lei. 3 - Em caso algum pode ser excedido o limite máximo referido no número anterior.

Parece tratar-se de um regime penal equilibrado, se tivermos em conta as diversas finalidades das penas, o contributo de outros sistemas sociais e políticos e a correta reavaliação das penas e a boa gestão das saídas da prisão.
A legitimidade do poder punitivo do Estado, por um lado, decorre da necessidade teleológica da realização dos fins do próprio Estado, definidos democraticamente; e, por outro lado, assenta na estrita necessidade humanista de assegurar a realização da liberdade individual, a autonomia de cada cidadão e a paz social.
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Partindo do princípio de que, se a justiça for levada até às últimas consequências, sem olhar a outros valores, deixa de ser justiça e passa a ser injúria, convém terminar esta reflexão com algumas das palavras de Francisco, a 20 de março, com alguns sublinhados, mas sem mais comentários:
“Encorajo-vos a continuar com a obra que estais a realizar, porque o mundo tem necessidade de testemunhas da misericórdia e da ternura de Deus.
“Despeço-me confiando-vos ao Senhor Jesus, que nos dias da sua vida terrena não quis que ferissem os seus perseguidores em sua defesa – “Embainha a tua espada” (Mt 26,52) – foi capturado e condenado injustamente à morte, e identificou-se com todos os presos, culpados ou não: “Estava na prisão e viestes visitar-me” (Mt 25,36). Ele, que diante da mulher adúltera não se interrogou sobre a sua culpabilidade, mas convidou os acusadores a examinar a própria consciência antes de a lapidarem (cf Jo 8,1-11), vos conceda o dom da sabedoria, para que as ações que empreendereis a favor da abolição desta pena cruel sejam oportunas e fecundas.”.

Prosit!

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