Na homilia da missa a que
presidiu no passado dia 10 de novembro, no Estádio Municipal Artemio Franchi,
Florença, no quadro da sua visita pastoral às duas cidades toscanas de Prato e
Florença, o Santo Padre Francisco, depois de colocar as duas questões sobre
quem é Jesus (cf Mt 16,13.15), afirma a excelência do
que poderíamos designar como a relação Deus-homem-Deus.
Para se perceber esta relação, nós dispomos de dois tipos de chaves: o da
razão e o da revelação. Elas poderiam ser consideradas em separado. Todavia, a
sua coexistência interdependente constituirá a melhor forma de encarar esta
relação.
Que a razão leva ao conhecimento de Deus atestam-no inúmeros pensadores,
que o consideram como origem do bom, verdadeiro e belo ou daquilo que é justo;
o motor imóvel ou o ideal para que tendem os anseios do homem. Descobrindo que
o ente que está na invisibilidade por trás do que é visível, o homem assumiu
racionalmente como norma de vida o que a Bíblia do Antigo Testamento ensina
consignado fundamentalmente no decálogo proveniente da parte de Deus e que se
pode sintetizar em fazer o bem e evitar o mal, dar a cada um aquilo que é seu e
prover às necessidades de todos. Estes ditames axiais resultam da ação de
discernimento produzida pela consciência pessoal, que depois retorna ao
indivíduo o juízo avaliativo sobre os atos praticados.
Paulo, na carta aos Romanos, corrobora estas afirmações e, se os homens
não chegam a Deus pela razão, os únicos responsáveis por essa incapacidade são
os mesmos homens. Diz-nos o apóstolo missionário:
“A ira de Deus, vinda do céu, revela-se contra
toda a impiedade e injustiça dos homens que, com a injustiça, reprimem a
verdade. Porquanto, o que de Deus
se pode conhecer está à vista deles, já que Deus lho manifestou. Com efeito, o que é invisível nele – o
seu eterno poder e divindade – tornou-se visível à inteligência, desde a
criação do mundo, nas suas obras. Por isso não se podem desculpar.” (Rm 1,18-20).
Segundo, Paulo de Tarso, tornado apóstolo dos
gentios, as consequências desse fechamento da inteligência à obra divina
tornaram a situação entre os homens dramática e mesmo nefasta:
“E como não julgaram por bem manter o conhecimento de Deus, entregou-os
Deus a uma inteligência sem discernimento. E é assim que fazem o que não devem: estão repletos de toda a espécie de
injustiça, perversidade, ambição, maldade; cheios de inveja, homicídios,
discórdia, falsidade, malícia; são difamadores, maldizentes, inimigos de Deus,
insolentes, orgulhosos, arrogantes, engenhosos para o mal, rebeldes para com os
pais, insensatos, desleais,
inclementes, impiedosos.” (Rm 1,28-31).
O mesmo apóstolo, no seu discurso aos atenienses
sobre o “Deus desconhecido”, no areópago, não deixou de esclarecer:
“O Deus que criou o mundo e quanto nele se encontra, Ele, que é o Senhor do
Céu e da Terra, não habita em santuários construídos pela mão do
homem, nem é servido por mãos humanas, como se precisasse de alguma coisa,
Ele, que a todos dá a vida, a respiração e tudo mais. Fez, a partir de um
só homem, todo o género humano, para habitar em toda a face da Terra; e fixou a
sequência dos tempos e os limites para a sua habitação, a fim de que os
homens procurem a Deus e se esforcem por encontrá-lo, mesmo tacteando, embora
não se encontre longe de cada um de nós. É nele, realmente, que vivemos, nos
movemos e existimos, como também o disseram alguns dos vossos poetas: ‘Pois nós
somos também da sua estirpe’.” (At 17,24-28).
Porém, a razão dos filósofos não ultrapassa por
si só a relação criador-criatura; a antinomia transcendente-imanente; a
condição absoluto-relativo.
***
Do lado da revelação abrem-se possibilidades maiores. Porquê e como? O
prólogo da carta aos Hebreus elucida-nos:
“Muitas vezes e de muitos modos, falou Deus aos
nossos pais, nos tempos antigos, por meio dos profetas. Nestes dias, que são os últimos, Deus
falou-nos por meio do Filho, a quem constituiu herdeiro de todas as coisas, e
por meio de quem fez o mundo. Este
Filho, que é resplendor da sua glória e imagem fiel da sua substância e que
tudo sustenta com a sua palavra poderosa, depois de ter realizado a purificação
dos pecados, sentou-se à direita da Majestade nas alturas, tão superior aos anjos quanto superior
ao deles é o nome que recebeu em herança.” (Heb 1,1-4).
E Paulo, na
carta aos Gálatas, ensina:
“Quando chegou a plenitude do tempo, Deus enviou
o seu Filho, nascido de mulher, nascido sob o domínio da Lei, para resgatar os que se encontravam
sob o domínio da Lei, a fim de recebermos a adoção de filhos. E, porque sois filhos, Deus enviou aos
nossos corações o Espírito do seu Filho, que clama ‘Abbá! - Pai!’. Assim, já não és escravo, mas filho;
e, se és filho, és também herdeiro, por graça de Deus.” (Gl 4,4-7).
A revelação,
que não prescinde da razão e não propõe nada que repugne à razão profunda, robustecendo
a ideia do Deus criador, assinala o estatuto especial do homem em relação aos
restantes elementos da criação e, sobretudo, mostra que Deus e o homem têm a
relação intensa de Pai e filho – o que leva ao dinamismo da mútua procura e ao
diálogo Pai-Filho-Pai como estilo de vida e de ascensão. São João ensina com
enlevo na sua primeira carta:
“Vede que amor tão
grande o Pai nos concedeu, a ponto de nos podermos chamar filhos de Deus; e,
realmente, o somos!” (1Jo 3,1).
E é importante saber quem tomou a iniciativa do
estabelecimento desta relação tão íntima? Que a ação criadora é iniciativa de
Deus, é óbvio. Mas também é certo e seguro que a iniciativa de nos tornarmos
filhos de Deus e de amar vem de Deus. Os textos transcritos espelham ações de
Deus como: criou, fez, falou, enviou,
constituiu, concedeu, fixou… Mas o apóstolo São João declara: “Nós amamos, porque Ele nos amou primeiro”
(1Jo 4,19).
Por seu turno, o salmo 8, celebrando simultaneamente a grandeza de Deus e do universo e, em
especial, a elevada dignidade do ser humano, define o estatuto do homem sobre a
Terra:
“Quando contemplo os céus, obra das tuas mãos, a Lua e as estrelas que Tu
criaste: que é o homem para Te lembrares dele, o filho do homem para com ele Te
preocupares? Quase fizeste dele um ser divino; de glória e de honra o coroaste.
Deste-lhe domínio sobre as obras das tuas mãos, tudo submeteste a seus pés.” (Sl
8,4-7).
É estatuto que decorre da literatura evocativa
da criação do homem:
“Deus disse: ‘Façamos o ser humano à nossa
imagem, à nossa semelhança, para que domine sobre os peixes do mar, sobre as
aves do céu, sobre os animais domésticos e sobre todos os répteis que rastejam
pela terra’. Deus criou o ser humano à sua imagem, criou-o à imagem de Deus; Ele
os criou homem e mulher. Abençoando-os, Deus disse-lhes: ‘Crescei,
multiplicai-vos, enchei e submetei a terra’.” (Gn 1,26-27).
Esta criação
do homem à imagem e semelhança de Deus e a atribuição ao homem do domínio sobre
todas as coisas que há na Terra (e não sobre os outros seres humanos) é ação deliberada de Deus, da inteligência e da
vontade divinas. Todavia, este não é um domínio absoluto nem compatível com a
destruição. O homem, concriador, chamado à liberdade, responde ante o criador
pela administração da obra sobre a qual exerce o seu domínio: presta contas da sua administração (cf Lc 16,2). Na perspetiva paulina, a relação do homem com as
coisas e com Deus sintetiza-se na seguinte formulação: “Tudo é vosso. Mas vós sois de Cristo e
Cristo é de Deus.” (1Cor 3,22-23).
Deus, assim como se remira permanentemente na sua glória de Deus uno e
trino (um só, mas na comunidade das três divinas pessoas), pode remirar-se na sua obra criada, em especial
no homem, o microcosmos e coroa da criação. E, neste dinamismo, a revelação fornece
à razão a iluminação que supre o embotamento da inteligência criado pela
devassidão humana por motivo da sua presumida autossuficiência.
Ora, esta
relação do Deus criador com o homem criado à sua semelhança e a entrega de um
domínio não próprio, mas concedido, tem implicações. O homem deveria ter
permanecido fiel ao desígnio divino. Porém, ao invés, esqueceu-se de Deus, excedeu-se,
abusou da confiança, dominou o outro homem, destruiu a Terra. Considerou-se
proprietário e senhor absoluto, em vez de usufrutuário responsável. Mas Deus,
que respeitosa e pacientemente lhe permitiu o abuso das liberdades, sempre esteve
disponível para o acolhimento e veio ao encontro do homem, falando-lhe e
oferecendo-lhe a libertação: primeiro, escolhendo um povo, com que se aliou, para
ensaiar a plenitude da salvação, falando-lhe, nem sempre com êxito, pelos patriarcas,
juízes e profetas; depois, em Seu Filho, que Se encarnou na pessoa de Jesus de
Nazaré, que pregou o Reino de Deus, Se imolou por nós, às mãos dos chefes do
povo, e criou a Igreja a partir dos que escolhera para discípulos diletos. E, em
consonância com a sua missão e com o desígnio do Pai, deu um mandamento novo,
que serve de sinal do seguimento de Jesus – Caminho, Verdade e Vida:
“Dou-vos um novo mandamento: que vos ameis uns
aos outros; que vos ameis uns aos outros assim como Eu vos amei. Por isto é que todos conhecerão
que sois meus discípulos: se vos amardes uns aos outros.” (Jo 13,34-35).
E formulou o mandato de missão imperativa, não
podendo os discípulos encurralar-se nos limites do judaísmo:
“Ide, pois, fazei discípulos de todos os povos,
batizando-os em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, ensinando-os a cumprir tudo
quanto vos tenho mandado. E sabei que Eu estarei sempre convosco até ao fim dos
tempos.” (Mt 28,19-20).
É este caminho
de missão e de amor fraterno, radicado no amor de Cristo, aquele em que “nos
cruzamos com a humanidade e onde podemos encontrá-la com o espírito do bom
samaritano”.
***
E quem é este
Jesus de Nazaré?
O próprio
Jesus interrogou os discípulos sobre o que dizem por aí os homens que é o Filho
do Homem (cf. Mt 16,13).
O Papa vê na
questão um desejo do Senhor de conhecer o pensar do povo, demonstrando assim a
abertura a todos do coração e dos olhos de Jesus. Jesus – diz o Pontífice – “interessa-se
por aquilo que as pessoas pensam, não para as contentar, mas para poder
comunicar-se com elas”. Deste interesse do Mestre deve aprender o discípulo,
pois, “sem saber o que as pessoas pensam, o discípulo isola-se e começa a
julgá-las segundo os próprios pensamentos e convicções pessoais”. Por isso, “manter
um contacto sadio com a realidade, com o que as pessoas vivem, com as suas
lágrimas e as suas alegrias” constituirá o único modo para as poder ajudar,
poder formá-las e se comunicar com elas” e será “a única forma de abrir o seu
coração à escuta de Deus”. E o Papa aduz o exemplo de Deus, para falar da
atitude imperativa dos discípulos de Jesus de se meterem no meio do povo no
dinamismo do mistério da encarnação:
“Quando Deus
quis falar connosco, encarnou-se. Os discípulos de Jesus nunca devem esquecer
de onde foram escolhidos, ou seja, do meio do povo, e jamais devem cair na
tentação de assumir atitudes desapegadas, como se o que as pessoas pensam e
vivem não lhes dissesse respeito, ou não fosse importante para eles.”.
Depois, vem a verificação papal:
“A Igreja,
como Jesus, vive no meio do povo e para o povo. Por isso, em toda a sua
história, a Igreja sempre trouxe no seu seio a mesma pergunta: Para os
homens e as mulheres de hoje, quem é Jesus? O próprio Papa São Leão Magno,
originário da Toscana, cuja memória celebramos hoje [era o 10 de novembro],
tinha no seu coração esta pergunta, este anseio apostólico, a fim de que todos
pudessem conhecer Jesus, e conhecê-lo por aquilo que realmente é, não uma sua
imagem ofuscada pelas filosofias ou ideologias do tempo.”.
Mas, a seguir, vem a pergunta a interpelar cada um:
E vós, quem dizeis que Eu sou? (Mt 16,15). Esta interrogação ressoa ainda hoje “na nossa
consciência de discípulos” e é decisiva para a nossa identidade e missão,
porque mostra que é necessário amadurecer uma fé pessoal nele:
“Somente se
reconhecermos Jesus na sua verdade, seremos capazes de olhar para a verdade da
nossa condição humana, e conseguiremos oferecer a nossa contribuição para a plena
humanização da sociedade”.
À pergunta direta de Cristo, Simão Pedro, adiantou-se
a responder “Tu és Cristo, o Filho
de Deus vivo!” (Mt 16,16). A sua pronta
resposta encerra, segundo Francisco toda a missão de Pedro e sintetiza o que se
tornará para a Igreja o ministério petrino, isto é, preservar e
proclamar a fé; defender e promover a comunhão entre todas as Igrejas; e
conservar a disciplina da Igreja. Depois, faz consistir “o cerne da nossa
identidade cristã” em “preservar
e anunciar a reta fé em Jesus Cristo”, “porque só no reconhecimento do mistério do Filho
de Deus feito homem nós poderemos penetrar no mistério de Deus e no
mistério do homem”.
Temos também nós hoje – insiste Francisco – a alegria
de reconhecer em Jesus a presença de Deus, o Enviado do Pai, o Filho que veio
fazer-se instrumento de salvação para a humanidade. Por isso, esta proclamação
de profissão de fé petrina permanece também imperativa para nós: “ela não
representa apenas o fundamento da nossa salvação, mas também o caminho ao
longo do qual ela se realiza e a meta para a qual tende”. Esta
profissão de fé é caminho para Cristo e adesão a Ele que é caminho para o Pai.
Cristo é caminho e meta. Por Ele vamos e Nele paramos para nos torarmos íntimos
de Deus.
E, se é certo, como refere o Papa, que na raiz do
mistério da salvação se encontra a vontade de “um Deus misericordioso” – que não se rende “diante da
incompreensão, da culpa e da miséria do homem”, mas que se entrega a ele a
ponto de se fazer Ele mesmo homem, para se encontrar com cada pessoa
na sua condição concreta – também é verdade que nesta fé sintonizada em pleno
com a revelação os homens encontram o lastro para o estilo de vida em oração e
para o crescimento como pessoas e a edificar comunidades. E neste lastro de oração
e comunidade, tantos místicos e místicas encontram forma de união permanente
com Cristo, não sendo já esses que vivem, mas Cristo que vive neles assumindo tanto
as generosidades como as contradições dos mesmos, como quer o apóstolo das
gentes: “Já não sou eu que vivo,
mas é Cristo que vive em mim. E a vida que agora tenho na carne, vivo-a na fé
do Filho de Deus que me amou e a Si mesmo Se entregou por mim” (Gl 2,20).
***
Finalmente, o Papa propõe a profundeza de um novo
humanismo assente na comunhão entre
o divino e o humano, realizada plenamente em Jesus, que “é a
nossa meta, o ponto de chegada da história humana segundo o desígnio
do Pai”. É a maravilha do encontro entre a sua grandeza e a nossa debilidade,
entre a sua misericórdia e a nossa pequenez, que preencherá todas as nossas lacunas
e contribuirá “para criar uma humanidade nova, renovada, onde ninguém é deixado
à margem nem descartado, onde quem serve é o maior e onde os mais pequenos e os
pobres são acolhidos e ajudados”. No entanto, Francisco defende que “esta meta
não é apenas o horizonte que ilumina o nosso caminho, mas é aquilo que nos
atrai com a sua força suave”, o que já aqui se “começa a saborear e a viver”, “o
que se constrói dia após dia com todos os bens que semeamos ao nosso redor”.
Assim, conclui, “Deus e o homem não são os dois
extremos de uma oposição: eles procuram-se desde sempre, porque Deus reconhece
no homem a própria imagem, e o homem só se reconhece a si mesmo olhando para
Deus”.
E, sintetizando o dinamismo do mistério com Santo
Agostinho – lex orandi lex credendi –,
rezamos:
“Criaste-nos
para Ti, Senhor, e o nosso coração não descansa enquanto não repousar em Ti”.
2015.11.19 –
Louro de Carvalho
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