sexta-feira, 20 de novembro de 2015

Na homilia da missa a que presidiu no passado dia 10 de novembro, no Estádio Municipal Artemio Franchi, Florença, no quadro da sua visita pastoral às duas cidades toscanas de Prato e Florença, o Santo Padre Francisco, depois de colocar as duas questões sobre quem é Jesus (cf Mt 16,13.15), afirma a excelência do que poderíamos designar como a relação Deus-homem-Deus.
Para se perceber esta relação, nós dispomos de dois tipos de chaves: o da razão e o da revelação. Elas poderiam ser consideradas em separado. Todavia, a sua coexistência interdependente constituirá a melhor forma de encarar esta relação.
Que a razão leva ao conhecimento de Deus atestam-no inúmeros pensadores, que o consideram como origem do bom, verdadeiro e belo ou daquilo que é justo; o motor imóvel ou o ideal para que tendem os anseios do homem. Descobrindo que o ente que está na invisibilidade por trás do que é visível, o homem assumiu racionalmente como norma de vida o que a Bíblia do Antigo Testamento ensina consignado fundamentalmente no decálogo proveniente da parte de Deus e que se pode sintetizar em fazer o bem e evitar o mal, dar a cada um aquilo que é seu e prover às necessidades de todos. Estes ditames axiais resultam da ação de discernimento produzida pela consciência pessoal, que depois retorna ao indivíduo o juízo avaliativo sobre os atos praticados.
Paulo, na carta aos Romanos, corrobora estas afirmações e, se os homens não chegam a Deus pela razão, os únicos responsáveis por essa incapacidade são os mesmos homens. Diz-nos o apóstolo missionário:
“A ira de Deus, vinda do céu, revela-se contra toda a impiedade e injustiça dos homens que, com a injustiça, reprimem a verdade. Porquanto, o que de Deus se pode conhecer está à vista deles, já que Deus lho manifestou. Com efeito, o que é invisível nele – o seu eterno poder e divindade – tornou-se visível à inteligência, desde a criação do mundo, nas suas obras. Por isso não se podem desculpar.” (Rm 1,18-20).

Segundo, Paulo de Tarso, tornado apóstolo dos gentios, as consequências desse fechamento da inteligência à obra divina tornaram a situação entre os homens dramática e mesmo nefasta:
E como não julgaram por bem manter o conhecimento de Deus, entregou-os Deus a uma inteligência sem discernimento. E é assim que fazem o que não devem: estão repletos de toda a espécie de injustiça, perversidade, ambição, maldade; cheios de inveja, homicídios, discórdia, falsidade, malícia; são difamadores, maldizentes, inimigos de Deus, insolentes, orgulhosos, arrogantes, engenhosos para o mal, rebeldes para com os pais, insensatos, desleais, inclementes, impiedosos.” (Rm 1,28-31).

O mesmo apóstolo, no seu discurso aos atenienses sobre o “Deus desconhecido”, no areópago, não deixou de esclarecer:
O Deus que criou o mundo e quanto nele se encontra, Ele, que é o Senhor do Céu e da Terra, não habita em santuários construídos pela mão do homem, nem é servido por mãos humanas, como se precisasse de alguma coisa, Ele, que a todos dá a vida, a respiração e tudo mais. Fez, a partir de um só homem, todo o género humano, para habitar em toda a face da Terra; e fixou a sequência dos tempos e os limites para a sua habitação, a fim de que os homens procurem a Deus e se esforcem por encontrá-lo, mesmo tacteando, embora não se encontre longe de cada um de nós. É nele, realmente, que vivemos, nos movemos e existimos, como também o disseram alguns dos vossos poetas: ‘Pois nós somos também da sua estirpe’.” (At 17,24-28).

Porém, a razão dos filósofos não ultrapassa por si só a relação criador-criatura; a antinomia transcendente-imanente; a condição absoluto-relativo.
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Do lado da revelação abrem-se possibilidades maiores. Porquê e como? O prólogo da carta aos Hebreus elucida-nos:
“Muitas vezes e de muitos modos, falou Deus aos nossos pais, nos tempos antigos, por meio dos profetas. Nestes dias, que são os últimos, Deus falou-nos por meio do Filho, a quem constituiu herdeiro de todas as coisas, e por meio de quem fez o mundo. Este Filho, que é resplendor da sua glória e imagem fiel da sua substância e que tudo sustenta com a sua palavra poderosa, depois de ter realizado a purificação dos pecados, sentou-se à direita da Majestade nas alturas, tão superior aos anjos quanto superior ao deles é o nome que recebeu em herança.” (Heb 1,1-4).

E Paulo, na carta aos Gálatas, ensina:
“Quando chegou a plenitude do tempo, Deus enviou o seu Filho, nascido de mulher, nascido sob o domínio da Lei, para resgatar os que se encontravam sob o domínio da Lei, a fim de recebermos a adoção de filhos. E, porque sois filhos, Deus enviou aos nossos corações o Espírito do seu Filho, que clama ‘Abbá! - Pai!’. Assim, já não és escravo, mas filho; e, se és filho, és também herdeiro, por graça de Deus.” (Gl 4,4-7).

A revelação, que não prescinde da razão e não propõe nada que repugne à razão profunda, robustecendo a ideia do Deus criador, assinala o estatuto especial do homem em relação aos restantes elementos da criação e, sobretudo, mostra que Deus e o homem têm a relação intensa de Pai e filho – o que leva ao dinamismo da mútua procura e ao diálogo Pai-Filho-Pai como estilo de vida e de ascensão. São João ensina com enlevo na sua primeira carta:
Vede que amor tão grande o Pai nos concedeu, a ponto de nos podermos chamar filhos de Deus; e, realmente, o somos!” (1Jo 3,1).

E é importante saber quem tomou a iniciativa do estabelecimento desta relação tão íntima? Que a ação criadora é iniciativa de Deus, é óbvio. Mas também é certo e seguro que a iniciativa de nos tornarmos filhos de Deus e de amar vem de Deus. Os textos transcritos espelham ações de Deus como: criou, fez, falou, enviou, constituiu, concedeu, fixou… Mas o apóstolo São João declara: “Nós amamos, porque Ele nos amou primeiro” (1Jo 4,19).
Por seu turno, o salmo 8, celebrando simultaneamente a grandeza de Deus e do universo e, em especial, a elevada dignidade do ser humano, define o estatuto do homem sobre a Terra:
“Quando contemplo os céus, obra das tuas mãos, a Lua e as estrelas que Tu criaste: que é o homem para Te lembrares dele, o filho do homem para com ele Te preocupares? Quase fizeste dele um ser divino; de glória e de honra o coroaste. Deste-lhe domínio sobre as obras das tuas mãos, tudo submeteste a seus pés.” (Sl 8,4-7).

É estatuto que decorre da literatura evocativa da criação do homem:
“Deus disse: ‘Façamos o ser humano à nossa imagem, à nossa semelhança, para que domine sobre os peixes do mar, sobre as aves do céu, sobre os animais domésticos e sobre todos os répteis que rastejam pela terra’. Deus criou o ser humano à sua imagem, criou-o à imagem de Deus; Ele os criou homem e mulher. Abençoando-os, Deus disse-lhes: ‘Crescei, multiplicai-vos, enchei e submetei a terra’.” (Gn 1,26-27).

Esta criação do homem à imagem e semelhança de Deus e a atribuição ao homem do domínio sobre todas as coisas que há na Terra (e não sobre os outros seres humanos) é ação deliberada de Deus, da inteligência e da vontade divinas. Todavia, este não é um domínio absoluto nem compatível com a destruição. O homem, concriador, chamado à liberdade, responde ante o criador pela administração da obra sobre a qual exerce o seu domínio: presta contas da sua administração (cf Lc 16,2). Na perspetiva paulina, a relação do homem com as coisas e com Deus sintetiza-se na seguinte formulação: “Tudo é vosso. Mas vós sois de Cristo e Cristo é de Deus.” (1Cor 3,22-23).
Deus, assim como se remira permanentemente na sua glória de Deus uno e trino (um só, mas na comunidade das três divinas pessoas), pode remirar-se na sua obra criada, em especial no homem, o microcosmos e coroa da criação. E, neste dinamismo, a revelação fornece à razão a iluminação que supre o embotamento da inteligência criado pela devassidão humana por motivo da sua presumida autossuficiência.
Ora, esta relação do Deus criador com o homem criado à sua semelhança e a entrega de um domínio não próprio, mas concedido, tem implicações. O homem deveria ter permanecido fiel ao desígnio divino. Porém, ao invés, esqueceu-se de Deus, excedeu-se, abusou da confiança, dominou o outro homem, destruiu a Terra. Considerou-se proprietário e senhor absoluto, em vez de usufrutuário responsável. Mas Deus, que respeitosa e pacientemente lhe permitiu o abuso das liberdades, sempre esteve disponível para o acolhimento e veio ao encontro do homem, falando-lhe e oferecendo-lhe a libertação: primeiro, escolhendo um povo, com que se aliou, para ensaiar a plenitude da salvação, falando-lhe, nem sempre com êxito, pelos patriarcas, juízes e profetas; depois, em Seu Filho, que Se encarnou na pessoa de Jesus de Nazaré, que pregou o Reino de Deus, Se imolou por nós, às mãos dos chefes do povo, e criou a Igreja a partir dos que escolhera para discípulos diletos. E, em consonância com a sua missão e com o desígnio do Pai, deu um mandamento novo, que serve de sinal do seguimento de Jesus – Caminho, Verdade e Vida:       
“Dou-vos um novo mandamento: que vos ameis uns aos outros; que vos ameis uns aos outros assim como Eu vos amei. Por isto é que todos conhecerão que sois meus discípulos: se vos amardes uns aos outros.” (Jo 13,34-35).

E formulou o mandato de missão imperativa, não podendo os discípulos encurralar-se nos limites do judaísmo:
“Ide, pois, fazei discípulos de todos os povos, batizando-os em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, ensinando-os a cumprir tudo quanto vos tenho mandado. E sabei que Eu estarei sempre convosco até ao fim dos tempos.” (Mt 28,19-20).

É este caminho de missão e de amor fraterno, radicado no amor de Cristo, aquele em que “nos cruzamos com a humanidade e onde podemos encontrá-la com o espírito do bom samaritano”.
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E quem é este Jesus de Nazaré?
O próprio Jesus interrogou os discípulos sobre o que dizem por aí os homens que é o Filho do Homem (cf. Mt 16,13).
O Papa vê na questão um desejo do Senhor de conhecer o pensar do povo, demonstrando assim a abertura a todos do coração e dos olhos de Jesus. Jesus – diz o Pontífice – “interessa-se por aquilo que as pessoas pensam, não para as contentar, mas para poder comunicar-se com elas”. Deste interesse do Mestre deve aprender o discípulo, pois, “sem saber o que as pessoas pensam, o discípulo isola-se e começa a julgá-las segundo os próprios pensamentos e convicções pessoais”. Por isso, “manter um contacto sadio com a realidade, com o que as pessoas vivem, com as suas lágrimas e as suas alegrias” constituirá o único modo para as poder ajudar, poder formá-las e se comunicar com elas” e será “a única forma de abrir o seu coração à escuta de Deus”. E o Papa aduz o exemplo de Deus, para falar da atitude imperativa dos discípulos de Jesus de se meterem no meio do povo no dinamismo do mistério da encarnação:
“Quando Deus quis falar connosco, encarnou-se. Os discípulos de Jesus nunca devem esquecer de onde foram escolhidos, ou seja, do meio do povo, e jamais devem cair na tentação de assumir atitudes desapegadas, como se o que as pessoas pensam e vivem não lhes dissesse respeito, ou não fosse importante para eles.”.

Depois, vem a verificação papal:
“A Igreja, como Jesus, vive no meio do povo e para o povo. Por isso, em toda a sua história, a Igreja sempre trouxe no seu seio a mesma pergunta: Para os homens e as mulheres de hoje, quem é Jesus? O próprio Papa São Leão Magno, originário da Toscana, cuja memória celebramos hoje [era o 10 de novembro], tinha no seu coração esta pergunta, este anseio apostólico, a fim de que todos pudessem conhecer Jesus, e conhecê-lo por aquilo que realmente é, não uma sua imagem ofuscada pelas filosofias ou ideologias do tempo.”.

Mas, a seguir, vem a pergunta a interpelar cada um: E vós, quem dizeis que Eu sou? (Mt 16,15). Esta interrogação ressoa ainda hoje “na nossa consciência de discípulos” e é decisiva para a nossa identidade e missão, porque mostra que é necessário amadurecer uma fé pessoal nele:
“Somente se reconhecermos Jesus na sua verdade, seremos capazes de olhar para a verdade da nossa condição humana, e conseguiremos oferecer a nossa contribuição para a plena humanização da sociedade”.

À pergunta direta de Cristo, Simão Pedro, adiantou-se a responder “Tu és Cristo, o Filho de Deus vivo!” (Mt 16,16). A sua pronta resposta encerra, segundo Francisco toda a missão de Pedro e sintetiza o que se tornará para a Igreja o ministério petrino, isto é, preservar e proclamar a fé; defender e promover a comunhão entre todas as Igrejas; e conservar a disciplina da Igreja. Depois, faz consistir “o cerne da nossa identidade cristã” em “preservar e anunciar a reta fé em Jesus Cristo”, “porque só no reconhecimento do mistério do Filho de Deus feito homem nós poderemos penetrar no mistério de Deus e no mistério do homem.
Temos também nós hoje – insiste Francisco – a alegria de reconhecer em Jesus a presença de Deus, o Enviado do Pai, o Filho que veio fazer-se instrumento de salvação para a humanidade. Por isso, esta proclamação de profissão de fé petrina permanece também imperativa para nós: “ela não representa apenas o fundamento da nossa salvação, mas também o caminho ao longo do qual ela se realiza e a meta para a qual tende”. Esta profissão de fé é caminho para Cristo e adesão a Ele que é caminho para o Pai. Cristo é caminho e meta. Por Ele vamos e Nele paramos para nos torarmos íntimos de Deus.
E, se é certo, como refere o Papa, que na raiz do mistério da salvação se encontra a vontade de “um Deus misericordioso” – que não se rende “diante da incompreensão, da culpa e da miséria do homem”, mas que se entrega a ele a ponto de se fazer Ele mesmo homem, para se encontrar com cada pessoa na sua condição concreta – também é verdade que nesta fé sintonizada em pleno com a revelação os homens encontram o lastro para o estilo de vida em oração e para o crescimento como pessoas e a edificar comunidades. E neste lastro de oração e comunidade, tantos místicos e místicas encontram forma de união permanente com Cristo, não sendo já esses que vivem, mas Cristo que vive neles assumindo tanto as generosidades como as contradições dos mesmos, como quer o apóstolo das gentes: “Já não sou eu que vivo, mas é Cristo que vive em mim. E a vida que agora tenho na carne, vivo-a na fé do Filho de Deus que me amou e a Si mesmo Se entregou por mim” (Gl 2,20).
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Finalmente, o Papa propõe a profundeza de um novo humanismo assente na comunhão entre o divino e o humano, realizada plenamente em Jesus, que “é a nossa meta, o ponto de chegada da história humana segundo o desígnio do Pai”. É a maravilha do encontro entre a sua grandeza e a nossa debilidade, entre a sua misericórdia e a nossa pequenez, que preencherá todas as nossas lacunas e contribuirá “para criar uma humanidade nova, renovada, onde ninguém é deixado à margem nem descartado, onde quem serve é o maior e onde os mais pequenos e os pobres são acolhidos e ajudados”. No entanto, Francisco defende que “esta meta não é apenas o horizonte que ilumina o nosso caminho, mas é aquilo que nos atrai com a sua força suave”, o que já aqui se “começa a saborear e a viver”, “o que se constrói dia após dia com todos os bens que semeamos ao nosso redor”.
Assim, conclui, “Deus e o homem não são os dois extremos de uma oposição: eles procuram-se desde sempre, porque Deus reconhece no homem a própria imagem, e o homem só se reconhece a si mesmo olhando para Deus”.
E, sintetizando o dinamismo do mistério com Santo Agostinho – lex orandi lex credendi –, rezamos:
Criaste-nos para Ti, Senhor, e o nosso coração não descansa enquanto não repousar em Ti”.

2015.11.19 – Louro de Carvalho

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