O
Ministro da Administração Interna João Calvão
da Silva visitou, a 2 de novembro, várias localidades do Algarve severamente assoladas
pelas inundações da véspera, designadamente Quarteira, Boliqueime e, sobretudo,
Albufeira, o município algarvio mais afetado pelas cheias resultantes do
violento temporal do passado domingo, o dia de Todos os Santos.
O presidente da Câmara Municipal de Albufeira estimou
em “largos milhares de euros” os prejuízos causados pelas inundações de
domingo, que abrangem redes de esgotos, águas e eletricidade, estradas e ruas,
um pouco por todo o concelho, e também as praias.
No centro da cidade de Albufeira, a zona mais atingida
pelas fortes chuvas e onde a água atingiu cerca de 1,80 metros de altura, as
equipas de limpeza e os comerciantes têm andado a remover lamas e objetos arrastados
pela corrente.
É óbvio que
é de sublinhar a natural presença deste membro do Governo junto das populações
desoladas, no dia 2, para deixar uma palavra de conforto e solidariedade da
parte do Estado, e junto dos responsáveis do município, para concerto de vias
de solução.
Parece-me
que o Ministro esteve bem, quando declarou que “esta gente precisa de ajuda
imediata, que passa por uma palavra de solidariedade imediata” e, quando
afirmou, perante a hipótese de integrar um Governo a prazo, que “Estou aqui hoje, mesmo que logo à noite já
não fosse ministro”. Também me parece certo que, sobre a declaração do
estado de calamidade pública, tenha afirmado que o Governo só decidirá se
declara o estado de calamidade pública quando estiver feito o levantamento dos
estragos causados pela chuva em Albufeira e se estiverem preenchidos os requisitos
necessários, remetendo para o presidente do município o cálculo dos prejuízos. E
salientou a necessidade de se fazer esse levantamento e de o verificar, pois, “com
os requisitos legais preenchidos, aplica-se a lei”.
Calvão da Silva, por outro lado, fez questão de
começar a visita pelos cumprimentos de condolências à família enlutada, lamentando
“a perda de uma vida humana” ali, devido ao temporal que assolou a região.
Também, ao ser questionado pela suficiência e
prontidão de meios de socorro, refutou as críticas de que os alertas da
Proteção Civil não teriam funcionado e elogiou o trabalho dos agentes
distritais e, também, dos voluntários que estão a participar nos trabalhos de
limpeza das zonas afetadas. A este respeito, assegurou que “os alertas
funcionaram, as pessoas tomaram as medidas preventivas; o que acontece é que as
medidas preventivas normais aqui [em Albufeira] não foram suficientes”. E sublinhou que aquelas
pessoas que tomaram medidas de prevenção terão conseguido atenuar alguns dos danos.
Nas medidas de prevenção, incluiu a necessidade de os
comerciantes terem seguro de bens, referindo a propósito ter verificado que há
muita gente que diz que já acionou os seus seguros, pois, “as pessoas estão
conscientes de que há outros mecanismos para além dos auxílios estatais”.
***
Se a prestação do novel governante é assim tão
positiva, como é que se justifica o enunciado em epígrafe de abrenuntio a ministros destes?
Antes de mais, no contexto das condolências à família
enlutada, o governante exorbitou, do meu ponto de vista, as suas competências quando
popularucha e paternalisticamente perorou:
“Era um
homem que já tinha vindo do estrangeiro, tinha 80 anos, fica a sua mulher
Fátima. Ele, que era um homem de apelido Viana, entregou-se a Deus e Deus com
certeza que lhe reserva um lugar adequado.”.
Por outro lado, assume desnecessariamente o papel de
apóstolo angelical, como se a entrega do ancião a Deus tivesse resolvido os
problemas cuja resolução incumbe aos homens, maxime aos governantes. Depois, quando lhes interessar, não venham
os neoliberais aduzir que o Estado é laico ou aconfessional.
Também, ao defender que, previamente à declaração de
calamidade pública, havia necessidade do adequado levantamento da extensão dos
prejuízos e afirmar que, “com os requisitos legais preenchidos, aplica-se a lei”,
bem podia ter omitido a enunciação, de todos conhecida, de que “as leis são
para cumprir e os requisitos legais têm de se verificar”. Aliás, que eu saiba, ninguém
pôs em causa o cumprimento das leis. E, acima de tudo, devia ter deixado de
ofender os circunstantes ao frisar que “a declaração do estado de calamidade
pública não é uma lei que se faz por qualquer coisinha”. As populações sofrentes
e os seus dramas não são qualquer coisinha, como não é qualquer
coisinha um governante nem um governo, mesmo que a prazo.
Além disso, a declaração do estado de calamidade
pública não é objeto de uma lei, mas de uma Resolução do Conselho de Ministros
ou, em caso de
urgência, de um Despacho Conjunto do Ministro da Administração Interna e do Primeiro-Ministro,
a preceder a Resolução do Conselho de Ministros. A lei de enquadramento está em
vigor: é a Lei n.º 27/2006, de 3 de julho – a Lei de Bases da Proteção Civil.
Sobre os seguros, o rico ministro deveria abster-se
de, nesta emergência, dar lições sobre seguros e orientação de vida das
pessoas, bem como de dar o exemplo da sua história de vida (Até parece
que estava a submeter-se a um processo de RVCC no âmbito do velho CNO). Foi excessivamente paternal e remocante o seu
discurso,
- Quando fala daqueles que lutam contra as agruras da
vida:
“Cada um tem
um pequeno pé-de-meia. Em vez de o gastar a mais aqui ou além, paga um prémio
de seguro. Não imagina a quantidade de pessoas que falaram que já acionaram o
seguro. Isto é uma lição de vida para todos nós, que é bom reservar sempre um
bocadinho para no futuro ter seguro.”.
[É-lhe bem feito comentário que as más línguas lhe
atribuem como subjacente de que os portugueses estariam ou estarão melhor com Seguro
(o António
José). E todos sabemos como as
seguradoras são prontas para receber os prémios e lentas para honrar os
contratos de seguros]
- Ao responder a um comerciante que declarou não ter
seguro e ter perdido tudo:
“Eu sei que
há muitas carteiras magras. Mas está a falar com uma pessoa que nasceu em
Trás-os-Montes, que sabe o que é ser pobre e vir do pobre e tentar ser alguém.
A mobilidade social funciona para todos. E todos temos de ter a nossa responsabilidade
no sentido e dizer: eu tenho um negócio, vou fazer o meu seguro para que, se o
infortúnio me bater à porta, tenha valido a pena pagar o prémio.”.
[Não se dão lições destas em situação de real emergência,
muito menos com tiradas autobiográficas.]
E o ministro, dotado como é de largo currículo
académico, profissional, social e político, devia sabê-lo e sabe-o. Será síndrome
da governança por dias que estará a fazer das suas?
***
Porém, o que mais me incomodou no discurso neoministerial
foi o tratamento que deu às questões atinentes a Deus, até de forma contraditória.
Por um lado, na ótica de Calvão da Silva, Deus é
credível porque o homem de 80 anos se entregou a Deus, que lhe reservou um
lugar adequado e este desastre natural não pode ser lido como Ato de Deus (Act of God – devemos até fazer desta expressão
inglesa uma tradução diferente). Mas, a contrario, parece pretender consolar
os deserdados das catástrofes naturais como se fossem “fúria demoníaca da
Natureza” (o que se entende em sentido metafórico num contexto da cultura judeo-cristã
caraterizadora da nossa idiossincrasia). E, no seu
fervor religioso (?!), vocifera,
de modo blasfemo, que “Deus nem sempre é amigo” e, ao mesmo tempo, de acordo com a doutrina
bíblico-teológica, observa que “de vez em
quando nos dá uns períodos de provação”.
O Padre Malagrida não teve tanta habilidade na segunda
metade do século XVIII…
É caso para perguntar a Sua Excelência o Ministro em
que ficamos:
- Nos princípios maniqueístas, um do Mal, que nos
manda as enxurradas (a Natureza), e o do
Bem, que acolhe os seus eleitos anciãos, os que O merecem, deserdando os outros
(Deus)?
- Na blasfémia de que Deus é mau, não é amigo?
- Na doutrina bíblico-teológica de que Deus é amigo,
respeita o curso normal da Natureza que criou e permite que tenhamos uns períodos
de provação?
***
Em suma, parece-me que ninguém – cristão, agnóstico ou
ateu, mesmo que seja Ministro – pode licitamente dizer que Deus nem sempre é
amigo. E os crentes sabem muito bem que não se pode tentar a Deus, sobretudo
invocando-o em vão.
Por fim, tanto os católicos como os políticos devem
saber da autonomia das realidades terrestres. E os governantes agem perante os
males que acossam as populações e assolam o território, à luz de critérios
políticos e não outros.
2015.11.03 –
Louro de Carvalho
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