segunda-feira, 9 de novembro de 2015

Uma nova versão do Vatileaks

Não raro os serviços, as personalidades e os atos do Vaticano e da Santa Sé são objeto de publicações que geram controvérsia ou porque tentam escrutinar parcelarmente ou em demasia esta estrutura eclesiástica ou porque exageram nos suportes da ficção que romanescamente constroem ou porque são recebidas como testemunhos e fatores de intriga.
Desta vez, é o já chamado Vatileaks 2 – pela similitude com o caso anterior em que foi condenado Paolo Gabriele, mordomo do papa Bento XVI, pelo roubo e divulgação de documentos reservados – e foi conhecido no passado dia 2 de novembro, quando foi comunicada a detenção de um padre espanhol, Lucio Anjo Vallejo Balda, e de uma cidadã italiana leiga, Francesca Chaouqui, responsável pelas relações públicas da Santa Sé.
Ambos integravam a COSEA (Comissão Investigadora dos Organismos Económicos e Administrativos da Santa Sé) – comissão que o Papa criou para investigar o estado das finanças do Vaticano e ajudar a preparar o estudo de reformas na Igreja, entretanto, extinta no fim de mandato, por ter sido criada a Secretaria para a Economia – e cujo secretário era o referido sacerdote espanhol, hoje com a idade de 54 anos.
Os dois altos funcionários foram detidos no fim de semana anterior no quadro da investigação sobre a divulgação dos documentos de carácter económico considerados “reservados” pela Santa Sé e que surgiram publicados no passado dia 5 nos livros Via Crucis, de Gianluigi Nuzzi, e Avarizia, de Emiliano Fittipaldi.
De acordo com o  comunicado adrede divulgado pelo Vaticano, Chaouqui, que era consultora para a reforma económica e organizacional da Santa Sé (aquando da renúncia de Bento XVI, declarou que tinha vencido a tendência de Bertone), foi libertada após aceitar cooperar com as investigações. Já o sacerdote, membro do Opus Dei, que era secretário da Prefeitura para os Assuntos Económicos, continua detido sob prisão preventiva no edifício da Gendarmaria do Vaticano. Os dois implicados esperam agora o fim das investigações preliminares para ficarem a conhecer a acusação judicial.
O aludido comunicado do Vaticano referia que as investigações continuam e que a divulgação de notícias sobre documentos reservados é “um delito” contemplado na legislação do Estado da Cidade do Vaticano com uma moldura penal que pode ir até oito anos de prisão.
***
Contra a informação de que dos fundos de caridade do Vaticano, como o óbolo de São Pedro, não sai dinheiro para ajudar os mais pobres, mas para investimentos em ações e obrigações fora de Itália, o Padre Frederico Lombardi, Diretor da Sala de Imprensa da Santa Sé, explicou, em relação ao Óbolo de S. Pedro, que se trata de uma contribuição voluntária dos fiéis para sustentar o ministério do Santo Padre Papa, salientando serem várias as suas finalidades, em particular, as obras de caridade do Santo Padre, mas também a Cúria Romana enquanto instrumento do serviço do Papa, as representações diplomáticas, a comunicação do ministério papal para os fiéis nas diversas partes do mundo. Mais afirmou que tudo isto fica demonstrado na história do próprio Óbolo.
Aliás, parece-me convir salientar as últimas diligências feitas na Praça de São Pedro em favor dos sem-abrigo, como o duche, o barbeiro, a entrega de tarefas, etc.
Relativamente aos dois livros referidos, que abordam a atividade económica e financeira vaticana, o Padre Lombardi sustenta que boa parte do que é publicado é “resultado de uma divulgação de notícias e documentos reservados e, portanto, de uma atividade ilícita”. Por outro lado, o porta-voz da Santa Sé afirmou que grande parte da informação publicada nos livros em causa é “informação já conhecida” pelo lado da COSEA, já mencionada.
Ademais, podemos recordar-nos de que já o Papa Bento XVI tinha encarregado uma comissão de cardeais de proceder a uma investigação à saúde logística, financeira, económica e comportamental na Santa Sé e no Vaticano – de que resultou um relatório que foi entregue ao Papa Francisco e que o levou a proceder a uma ampla reforma nestas áreas.
Entretanto, na sua intervenção Lombardi não deixou de sublinhar que, “naturalmente uma grande quantidade de informação deste género deve ser estudada e interpretada com cuidado, equilíbrio e atenção. Muitas vezes são possíveis leituras diferentes a partir dos mesmos dados.”.
No atinente a outros temas mais específicos, Lombardi remeteu as questões relacionadas com o Fundo de Pensões para uma leitura dos “comunicados oficiais publicados com fundamentação através da Sala de Imprensa da Santa Sé” e sobre a origem dos bens da Santa Sé e a isenção de alguns impostos, sugeriu a leitura dos “acordos  económicos entre a Itália e a Santa Sé no contexto dos Pactos Lateranenses” e a concordata.
À isenção de impostos, como se sabe, corresponde a responsabilidade pela manutenção e pelo benefício do património. O próprio Papa, ao ser questionado porque não se vende património imobiliário e outros tesouros da Igreja, respondeu que estas obras, criadas ao longo dos séculos, não são da Igreja, mas da Humanidade, competindo à Igreja a sua guarda, preservação e valorização.
Finalmente, o porta-voz da Santa Sé deixou claro que “é sem incertezas que o Vaticano prossegue o seu caminho de transparência e de boa administração”, pelo que prosseguirá o trabalho de reorganização das estruturas económico-financeiras, no seguimento da vontade do Papa Francisco.
Por seu turno, Monsenhor Angelo Becciu, o arcebispo Substituto da Secretaria de Estado para os Assuntos Gerais, assegurou que o Papa Francisco pretende que “sigamos em frente com serenidade e determinação”.
Também o secretário-geral da Conferência Episcopal Italiana (CEI), D. Nunzio Galantino, antigo bispo de Cassano, na Calábria, (que se encontrou com o Papa no dia 1, sem ter abordado este assunto, mas sublinhando que não o achou “particularmente amargurado”) disse à ‘Tv2000’, canal do episcopado italiano, que aqueles livros e a fuga de informação privilegiada constituem um “ataque à Igreja”. 
Afastando a ideia de que alguém esteja com medo do “processo de renovação que o Papa Francisco está a levar por diante”, considera que “alguns ataques são totalmente injustificáveis”, apontando o dedo aos autores das obras e às duas pessoas que foram detidas no fim de semana anterior, monsenhor Lucio Angel Vallejo Balda e Francesca Chaouqui, declarando que “não se quer o bem de uma pessoa apunhalando-a pelas costas ou roubando-lhe conversas privadas, fazendo mal à Igreja”. 
***
Hoje, dia 8, o Papa referiu-se expressamente ao assunto depois da oração do Angelus, declarando:
“Eu sei que muitos de vós ficastes perturbados com as últimas notícias sobre os documentos reservados da Santa Sé que foram roubados e publicados” […] “Gostaria de dizer, antes de mais nada, que roubar documentos é um crime”. “É um ato deplorável que não ajuda”.
Foi esta a primeira vez que o Pontífice falou publicamente sobre o caso de vazamento dos documentos privados da Santa Sé e deu conta de como Ele próprio havia pedido para se fazer aquele estudo, dizendo que “aqueles documentos eu e os meus colaboradores já os conhecíamos bem, e foram tomadas medidas que começaram a dar frutos, também alguns visíveis”.
Não obstante, Francisco quis assegurar que “este triste facto, certamente, não me distrai do trabalho de reforma que estamos realizando com os meus colaboradores e com o apoio de todos vós. Sim, com o apoio de toda a Igreja, porque a Igreja se renova com a oração e com a santidade diária de cada batizado”.
E terminou com um agradecimento e um apelo: “vos agradeço e vos peço que continueis a rezar pelo Papa e pela Igreja, sem vos deixardes perturbar, mas seguindo em frente com confiança e esperança”.
***
Como referi, várias vezes o Vaticano e a Santa Sé, como a Igreja em geral, são atingidos por algumas publicações controversas. Acho preferível, apesar de tudo, as publicações ditas de investigação e escrutínio, às de ficção.
As novelas e romances cujo objeto seja o Vaticano e a Santa Sé, a Igreja em geral ou o tratamento de algumas personalidades de referência eclesial não são suscetíveis de uma reação firme e convincente, dado que os autores e os críticos podem refugiar-se na liberdade de criação literária. Ao contrário, as publicações ditas de investigação, escrutínio, análise e crítica – independentemente da intenção com que sejam produzidas – podem suscitar uma resposta corretamente enquadrada no direito de resposta, na contracrítica e no processamento judicial por difamação ou apreciação parcelar, bem como podem servir de ocasião, se for o caso, à autocrítica e à mudança de atitudes e comportamentos e à reforma das estruturas e serviços.
Como em qualquer Estado, também a Santa Sé, se optar pela consignação rigorosa de receitas, pode enveredar por um caminho perigoso e insustentável. Tem é de acautelar os riscos de desperdício real neste ou naquele setor. De resto, desde tempos imemoriais, as ofertas eclesiais tiveram como destino as “razoáveis” despesas com o culto, a “côngrua” sustentação dos diretos servidores do culto e a “generosa” liberalidade para com os pobres (e todos os constituídos em necessidade de qualquer espécie), considerados pessoa a pessoa e/ou as estruturas que proveem às suas necessidades.
Isto da proliferação de corvos negros à cata de carnes podres nos banquetes campais não ajuda os atingidos e não dignifica quem lança as pretensas investigações. Nem tudo é vendável.
E quem não tem pecado, que atire a primeira pedra e que ela não lhe bata de ricochete!

2015.11.08 – Louro de Carvalho

Sem comentários:

Enviar um comentário