Não raro os
serviços, as personalidades e os atos do Vaticano e da Santa Sé são objeto de
publicações que geram controvérsia ou porque tentam escrutinar parcelarmente ou
em demasia esta estrutura eclesiástica ou porque exageram nos suportes da
ficção que romanescamente constroem ou porque são recebidas como testemunhos e
fatores de intriga.
Desta vez, é
o já chamado Vatileaks 2 – pela similitude com o caso anterior em que foi
condenado Paolo Gabriele, mordomo do papa Bento XVI, pelo roubo e divulgação de
documentos reservados – e foi conhecido no passado dia 2 de novembro, quando
foi comunicada a detenção de um padre espanhol, Lucio Anjo Vallejo Balda, e de uma cidadã italiana leiga, Francesca Chaouqui, responsável pelas
relações públicas da Santa Sé.
Ambos
integravam a COSEA (Comissão
Investigadora dos Organismos Económicos e Administrativos da Santa Sé) – comissão que o Papa criou para
investigar o estado das finanças do Vaticano e ajudar a preparar o estudo de reformas na Igreja, entretanto, extinta no
fim de mandato, por ter sido criada a Secretaria para a Economia – e cujo
secretário era o referido sacerdote espanhol, hoje com a idade de 54 anos.
Os dois altos
funcionários foram detidos no fim de semana anterior no quadro da investigação
sobre a divulgação dos documentos de carácter económico considerados
“reservados” pela Santa Sé e que surgiram publicados no passado dia 5 nos
livros Via Crucis, de Gianluigi Nuzzi,
e Avarizia, de Emiliano Fittipaldi.
De acordo com o comunicado adrede divulgado pelo Vaticano, Chaouqui,
que era consultora para a reforma económica e organizacional da Santa Sé (aquando da renúncia
de Bento XVI, declarou que tinha vencido a tendência de Bertone), foi libertada
após aceitar cooperar com as investigações. Já o sacerdote, membro do Opus Dei,
que era secretário da Prefeitura para os Assuntos Económicos, continua detido sob prisão preventiva no edifício da
Gendarmaria do Vaticano. Os dois implicados esperam agora o fim das
investigações preliminares para ficarem a conhecer a acusação judicial.
O aludido comunicado
do Vaticano referia que as investigações continuam e que a divulgação de
notícias sobre documentos reservados é “um delito” contemplado na legislação do
Estado da Cidade do Vaticano com uma moldura penal que pode ir até oito anos de
prisão.
***
Contra a informação de que dos fundos de caridade do
Vaticano, como o óbolo de São Pedro, não sai dinheiro para ajudar os mais
pobres, mas para investimentos em ações e obrigações fora de Itália, o Padre Frederico
Lombardi, Diretor da Sala de Imprensa da Santa Sé, explicou, em relação ao
Óbolo de S. Pedro, que se trata de uma contribuição voluntária dos fiéis para
sustentar o ministério do Santo Padre Papa, salientando serem várias as suas
finalidades, em particular, as obras de caridade do Santo Padre, mas também a
Cúria Romana enquanto instrumento do serviço do Papa, as representações
diplomáticas, a comunicação do ministério papal para os fiéis nas diversas
partes do mundo. Mais afirmou que tudo isto fica demonstrado na história do
próprio Óbolo.
Aliás, parece-me convir salientar as últimas diligências
feitas na Praça de São Pedro em favor dos sem-abrigo, como o duche, o barbeiro,
a entrega de tarefas, etc.
Relativamente aos dois livros referidos, que abordam a
atividade económica e financeira vaticana, o Padre Lombardi sustenta que boa
parte do que é publicado é “resultado de uma divulgação de notícias e
documentos reservados e, portanto, de uma atividade ilícita”. Por outro lado, o
porta-voz da Santa Sé afirmou que grande parte da informação publicada nos
livros em causa é “informação já conhecida” pelo lado da COSEA, já mencionada.
Ademais, podemos recordar-nos de que já o Papa Bento XVI
tinha encarregado uma comissão de cardeais de proceder a uma investigação à
saúde logística, financeira, económica e comportamental na Santa Sé e no
Vaticano – de que resultou um relatório que foi entregue ao Papa Francisco e
que o levou a proceder a uma ampla reforma nestas áreas.
Entretanto, na sua intervenção Lombardi não deixou de sublinhar
que, “naturalmente uma grande quantidade de informação deste género deve ser
estudada e interpretada com cuidado, equilíbrio e atenção. Muitas vezes são
possíveis leituras diferentes a partir dos mesmos dados.”.
No atinente a outros temas mais específicos, Lombardi remeteu
as questões relacionadas com o Fundo de Pensões para uma leitura dos
“comunicados oficiais publicados com fundamentação através da Sala de Imprensa
da Santa Sé” e sobre a origem dos bens da Santa Sé e a isenção de alguns
impostos, sugeriu a leitura dos “acordos económicos entre a Itália e a
Santa Sé no contexto dos Pactos Lateranenses” e a concordata.
À isenção de impostos, como se sabe, corresponde a
responsabilidade pela manutenção e pelo benefício do património. O próprio
Papa, ao ser questionado porque não se vende património imobiliário e outros tesouros
da Igreja, respondeu que estas obras, criadas ao longo dos séculos, não são da
Igreja, mas da Humanidade, competindo à Igreja a sua guarda, preservação e
valorização.
Finalmente, o porta-voz da Santa Sé deixou claro que “é sem
incertezas que o Vaticano prossegue o seu caminho de transparência e de boa
administração”, pelo que prosseguirá o trabalho de reorganização das estruturas
económico-financeiras, no seguimento da vontade do Papa Francisco.
Por seu turno, Monsenhor Angelo Becciu, o arcebispo Substituto
da Secretaria de Estado para os Assuntos Gerais, assegurou que o Papa Francisco
pretende que “sigamos em frente com serenidade e determinação”.
Também o secretário-geral da Conferência
Episcopal Italiana (CEI), D. Nunzio Galantino, antigo bispo de Cassano, na Calábria,
(que se
encontrou com o Papa no dia 1, sem ter abordado este assunto, mas sublinhando
que não o achou “particularmente amargurado”) disse à ‘Tv2000’, canal do episcopado italiano,
que aqueles livros e a fuga de informação privilegiada constituem um “ataque à
Igreja”.
Afastando a ideia de que
alguém esteja com medo do “processo de renovação que o Papa Francisco está a
levar por diante”, considera que “alguns ataques são totalmente
injustificáveis”, apontando o dedo aos autores das obras e às duas pessoas que
foram detidas no fim de semana anterior, monsenhor Lucio Angel Vallejo Balda e
Francesca Chaouqui, declarando que “não
se quer o bem de uma pessoa apunhalando-a pelas costas ou roubando-lhe
conversas privadas, fazendo mal à Igreja”.
***
Hoje, dia 8, o Papa referiu-se expressamente ao assunto depois da
oração do Angelus, declarando:
“Eu sei que muitos de vós ficastes
perturbados com as últimas notícias sobre os documentos reservados da Santa Sé que
foram roubados e publicados” […] “Gostaria de dizer, antes de mais nada, que
roubar documentos é um crime”. “É um ato deplorável que não ajuda”.
Foi esta a primeira vez que o
Pontífice falou publicamente sobre o caso de vazamento dos documentos privados da
Santa Sé e deu conta de como Ele próprio havia pedido para se fazer aquele
estudo, dizendo que “aqueles documentos eu e os meus colaboradores já os
conhecíamos bem, e foram tomadas medidas que começaram a dar frutos, também
alguns visíveis”.
Não obstante, Francisco quis assegurar que
“este triste facto, certamente, não me
distrai do trabalho de reforma que estamos realizando com os meus colaboradores
e com o apoio de todos vós. Sim, com o apoio de toda a Igreja, porque a Igreja
se renova com a oração e com a santidade diária de cada batizado”.
E terminou com um agradecimento e um
apelo: “vos agradeço e vos peço que
continueis a rezar pelo Papa e pela Igreja, sem vos deixardes perturbar, mas
seguindo em frente com confiança e esperança”.
***
Como referi, várias vezes o Vaticano e a Santa Sé, como a Igreja em
geral, são atingidos por algumas publicações controversas. Acho preferível,
apesar de tudo, as publicações ditas de investigação e escrutínio, às de ficção.
As novelas e romances cujo objeto seja o Vaticano e a Santa Sé, a
Igreja em geral ou o tratamento de algumas personalidades de referência eclesial
não são suscetíveis de uma reação firme e convincente, dado que os autores e os
críticos podem refugiar-se na liberdade de criação literária. Ao contrário, as
publicações ditas de investigação, escrutínio, análise e crítica –
independentemente da intenção com que sejam produzidas – podem suscitar uma resposta
corretamente enquadrada no direito de resposta, na contracrítica e no
processamento judicial por difamação ou apreciação parcelar, bem como podem
servir de ocasião, se for o caso, à autocrítica e à mudança de atitudes e comportamentos
e à reforma das estruturas e serviços.
Como em qualquer Estado, também a Santa Sé, se optar pela consignação
rigorosa de receitas, pode enveredar por um caminho perigoso e insustentável. Tem
é de acautelar os riscos de desperdício real neste ou naquele setor. De resto,
desde tempos imemoriais, as ofertas eclesiais tiveram como destino as “razoáveis”
despesas com o culto, a “côngrua” sustentação dos diretos servidores do culto e
a “generosa” liberalidade para com os pobres (e todos os constituídos em
necessidade de qualquer espécie), considerados pessoa a pessoa e/ou as estruturas
que proveem às suas necessidades.
Isto da proliferação de corvos negros à cata de carnes podres nos banquetes
campais não ajuda os atingidos e não dignifica quem lança as pretensas
investigações. Nem tudo é vendável.
E quem não tem pecado, que atire a primeira pedra e que ela não lhe
bata de ricochete!
2015.11.08
– Louro de Carvalho
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