Decididamente
o Papa Francisco está apostado no testemunho e no apostolado da misericórdia. Além
de o tema da misericórdia e da ternura de Deus ser recorrente nas suas
intervenções, o Papa lançou a Igreja no Jubileu
Extraordinário da Misericórdia, a que acoplou a iniciativa de espalhar pelo
mundo os missionários da misericórdia e deu à XXXI Jornada Mundial da Juventude
(JMJ) o tema da misericórdia em torno
da V bem-aventurança do Sermão da Montanha: Bem-aventurados
os misericordiosos, porque alcançarão misericórdia (Mt
5,7).
Na
sua prévia mensagem por vídeo à viagem apostólica ao Quénia, Uganda e República
Centro-Africana, o Papa diz aos quenianos e ugandeses que vai até ao meio deles
como “ministro do Evangelho para proclamar o amor de
Jesus Cristo e a sua mensagem de reconciliação, perdão e paz”. Este amor de
Cristo é misericórdia expressa na mensagem de reconciliação e perdão rumo à paz,
dom de Deus e produto do esforço dos homens.
Mais adiante, afirma o seu objetivo de “confirmar a comunidade
católica no seu culto a Deus e no seu testemunho do Evangelho”. Ora, sem o
testemunho claro e empenhado dos crentes, a misericórdia de Deus ficaria
obnubilada e o mundo, não a conhecendo, não tiraria qualquer benefício dela. É
certo que Deus pode mudar, por Si próprio, o coração dos homens, contudo, o tornar
necessária a mediação de homens junto dos homens e junto de Deus é uma outra
forma de expressão da misericórdia divina.
Entretanto, o testemunho da misericórdia não se circunscreve a uma
exposição de motivos da fé, por maior que seja o pode da palavra, ou a um
exemplo de vida bondosa e orante, por mais necessário que seja para a
edificação da Igreja. Implica necessariamente o ensino teórico-prático da “dignidade
de cada homem e de cada mulher” e a exigência de abertura do nosso “coração aos
outros, especialmente aos pobres e necessitados”.
Depois,
o Bispo de Roma, na sua primeira visita a terras de África pretende “oferecer
uma palavra de encorajamento” ao diálogo ecuménico e inter-religioso, convicto
de que “vivemos uma época em que os fiéis das religiões e as pessoas de boa
vontade em toda a parte são chamados a promover a compreensão e o respeito
recíprocos e a ajudar-se uns aos outros como membros da nossa única família
humana”. Ou seja, na firme crença de que todos somos filhos do único Deus
misericordioso, Francisco prega a fraternidade universal e quer que todos
embarquem nesta onda da ternura de Deus, o Pai comum. E, na esteira da
paternidade divina, o paizinho da Igreja (papa, papá ou papai), tal como acaricia uma criança, também
quer puxar pela juventude em qualquer lugar por onde passe – também no Quénia e
Uganda – porque os jovens “são o vosso maior recurso e a nossa esperança mais
promissora para um futuro de solidariedade, paz e progresso”. É a abertura do
coração e do olhar a todos com a caridade evangélica e a justiça bíblica, como
resposta à dicotomia aspiração-conflituosidade do mundo, sem discriminar
ninguém, mas a começar pelos que mais precisam.
***
Em
mensagem similar, o Papa, apresentando-se como “mensageiro da paz, dirige-se
aos habitantes da República Centro-Africana. E o seu propósito é também o testemunho
explícito da misericórdia. Verificando a continuada e nefasta situação de
“violência e insegurança” por que vem passando o país, causando “inúmeras
vítimas inocentes”, tem em vista levar, “em nome de
Jesus, o alívio da consolação e da esperança” e “contribuir, de um modo ou de
outro, para curar as vossas feridas e abrir um futuro mais sereno para a África
Central e para todos os seus habitantes”. Como os profetas, os evangelistas e
os apóstolos, no meio da miséria, da fome, da guerra e da iniquidade puderam anunciar
a esperança e a salvação, também Francisco no meio dos povos, que reconhece como
de Deus e seus, conforta, testemunha e faz esperar.
A
seguir, revela ao povo centro-africano o tema da sua viagem: passemos para a outra margem (Mc 4,35). A simbólica do
Evangelho de passar de uma para a outra margem do lago sugere o convite, o
apelo a deixar a situação de insegurança e de violência, que, no caso vertente,
não são provocadas pelos elementos tempestuosos da natureza, como em Marcos ou
hoje em muitas partes do Globo, mas pela ambição desmedida de riqueza e poder
de alguns e pela impaciência de uns e submissão de outros. Porém, o Senhor que
acalma o mar tem capacidade para, longe de anular a liberdade e a vontade dos
homens, encorajar a mudança e a conversão.
Assim, Francisco apela às “comunidades cristãs” para que olhem “em
frente com decisão” e a “cada um” para que renove “a sua relação com Deus e com
os irmãos para edificar um mundo mais justo e fraterno”. Ao mesmo tempo,
reitera o propósito de “fomentar o diálogo inter-religioso para encorajar a
convivência pacífica” no país, afirmando “que isto é possível, em razão da
fraternidade universal face à filiação comum em relação ao mesmo Deus.
E, para selar simbolicamente este apelo e testemunhar
eloquentemente esta possibilidade de abertura ao “perdão genuíno”, à atitude de
“dar” e “receber” e à “renovação no amor”, o Papa anunciou que iria abrir, por
antecipação, em Bangui, o Ano Jubilar da Misericórdia, que vai ser
inaugurado para toda a Igreja a 8 de dezembro.
Com efeito, a 29 de novembro, início do novo ano litúrgico e I
Domingo do Advento, que significa o começo da caminhada de Deus ao encontro
misericordioso com os homens por meio de Jesus Cristo, o romano Pontífice, no
início da celebração eucarística na catedral de Bangui, depois do Ato Penitencial, procederá
ao rito da Abertura da Porta da
Misericórdia, rezando:
Senhor Deus, Pai de misericórdia, Vós concedeis à vossa
Igreja este tempo de penitência e de perdão para que ela tenha a alegria de se
renovar interiormente por obra do Espírito Santo e andar cada vez mais
fielmente nos vossos caminhos, permanecendo no meio do mundo como sinal de
salvação e de redenção; dignai-vos responder às nossas súplicas, abri-nos
completamente a porta da vossa misericórdia, para se nos abrirem um dia as
portas da vossa morada no céu, onde está Jesus, o primeiro da estirpe dos
homens que nos precederam, para podermos todos em conjunto cantar-vos
eternamente. Por Cristo Nosso Senhor. Ámen.
Depois, aproxima-se da Porta da Misericórdia e, enquanto bate à porta, estabelece diálogo
orante:
Abri-me as portas da Justiça
R/ E entrarei e darei graças ao Senhor.
Esta é porta do senhor,
R/ Que entrem os justos
Eu entro na vossa casa, Senhor
R/ Voltado para o vosso templo, eu me prostrarei.
A seguir, o Santo Padre apoiado na Porta da
Misericórdia reza em silêncio, após o que entra seguido pelos demais.
***
Embora pudesse ter maior impacto a abertura
oficial do Ano Santo este rito de misericórdia desenvolvido num dos países de
África esperançosa para o futuro da Igreja e da Humanidade, porém, de momento,
uma das periferias existenciais, todavia este gesto simbólico de Francisco não
deixa de ter um enorme significado. Prega-se e reza-se a misericórdia onde é
necessário, independentemente do lugar ou do momento, sendo apenas necessário
que os homens sintam que precisam dela e acreditem nela. E as ações eclesiais
valem por si mesmas quer sejam lançadas em Roma e a partir de Roma quer em e a
partir de qualquer outra parte do mundo. Não estamos perante um fenómeno de
descentralização ou desconcentração política ou económica, mas do pulsar da
Igreja sob o impulso do Espírito com Pedro e com os demais membros da família
universal.
Pelos vistos, Francisco deseja que em todo o mundo
– e não só em Roma – se abram as portas santas da misericórdia. Ele próprio pensa
passar pela Porta da Misericórdia por ocasião da Jornada Mundial da Juventude
2016. Com efeito, segundo informação do cardeal
Stanislaw Rylko, será instalada a simbólica Porta Santa no Campus Misericordiae, onde decorrerá a vigília e a missa de
encerramento da JMJ – ambas sob a presidência do Papa.
O purpurado afirmou que o Santo Padre, seguido de
alguns jovens, passará pela Porta Santa logo no início da vigília de oração, a 30
de julho. E, no dia 31, último domingo de julho após a celebração da eucaristia,
“entregará a cinco casais de jovens, vindos dos cinco continentes, lâmpadas
acesas, símbolo do fogo que trouxe a misericórdia de Cristo, além de enviar os
jovens de todo o mundo como testemunhas e missionários da Divina Misericórdia”.
É de recordar que a JMJ Cracóvia 2016 decorrerá em pleno
Jubileu Extraordinário, sendo que os temas de ambos os eventos se
interpenetram, segundo o cardeal, “de modo muito oportuno”. Tanto assim é que, tornando-se
a JMJ de 2016 um verdadeiro Jubileu dos jovens a nível mundial, o seu epicentro
espiritual será o Santuário da Divina Misericórdia e de Santa Faustina Kowalska
– conhecida como a ‘Apóstola da Misericórdia’ – inaugurado em 2002 pelo insigne
promotor deste intenso testemunho orante e missionário: São João Paulo II, o
Papa polaco.
Os participantes na JMJ de Cracóvia poderão visitar
aquele santuário e integrar-se no desenvolvimento de um programa especial, que
inclui a meditação das parábolas do Evangelho da Misericórdia Divina (sobretudo o
cap. 15 de Lucas) e do
Rosário da Divina Misericórdia, podendo, no final, passar pela Porta Santa do
Jubileu e ganhar a indulgência jubilar. Para o efeito, será instalado, neste
lugar, o grande “Centro da Misericórdia”, que disponibilizará muitos
confessionários para que os jovens se aproximem do Sacramento da Reconciliação.
***
O Papa Francisco prega incessantemente a
misericórdia, mas não se refugia nela como que num cantinho abrigado. Ao invés,
segue Urbi et Orbi as consequências
desta bem-aventurança: desde logo, a limpidez de coração para olhar para o homem
e para o mundo; depois e ao mesmo tempo, a construção da paz, para podemos ser
chamados filhos de Deus e, como corolário imperativo, a luta oportuna e
importuna pela justiça (cf Mt
5,8-10; Lc 6,20-26).
Francisco não se cingiu à leitura dos livros
teológicos, mas passou ao múnus de pastor. E foi, não na leitura dos escritos
de Rousseau ou de Marx e fãs, mas no Evangelho, lido e meditado, no âmbito de
todo o contexto bíblico e a olhar o mundo de opressão e repressão, que aprendeu
a força da razão dos pobres, dos explorados, dos enjeitados. E aí ganhou ânimo para
clamar:
Levantai a cabeça, porque a vossa redenção está próxima (Lc 21,28)!
2015.11.28 – Louro de Carvalho
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