Decorrem
com força e tranquilidade os dias do mês de novembro. Este é o mês do ano
marcado por vários aspetos que nos devem fazer meditar.
De
um lado, surge como uma trintena de dias que assinala a grande passagem entre o
calor do verão e os rigores do inverno. E este mês está no coração do outono. Por
um lado, diz-se adeus aos dias grandes, à madureza dos frutos e às suas
colheitas e antevê-se o deserto do frio e da hibernação geral e, em especial a
dos répteis. Cai a folha e vem a desolação e a desnudez geral.
O
11.º mês do ano acaba por ser uma imagem da vida que atingiu o máximo da maturidade.
O outono da vida insinua caminhada pessoal para a decrepitude e para o tempo da
sensação do dever cumprido e do sentimento de que o nosso percurso vital mostra
que vale a pena viver passando em trânsito por este mundo de Cristo e preparar “a
vida do mundo que há de vir”.
O
mês de novembro é o mês em que se faz o culto aos mortos e o culto pelos mortos.
Não foi o cristianismo que inventou este culto, mas assumiu-o dando-lhe um
sentido peculiar. Também este é o mês em que este culto faz mais sentido, muito
embora o culto dos finados (porque chegaram ao fim) ou defuntos (porque
já cumpriram os deveres para com o mundo)
deva ser feito sempre que alguém parte do meio de nós para a vida do Além e
possa e deva mesmo ser feito diariamente, sobretudo quando o dia, à imagem do
ano e da vida, parece aproximar-se e aproximar-nos do ocaso.
As
diversas civilizações, desde as mais antigas às mais recentes, celebram a
memória daqueles que viveram visivelmente entre “nós”. Os monumentos deste
memorial, coletivo e individual, mais explícito ou mais discreto, superabundam
um pouco por toda a parte. Quem não se lembra das pirâmides do Egito, dos diversos
mausoléus, das antas, dos alinhamentos, dos cromlechts,
das igrejas e capelas com túmulos, dos panteões, das estátuas, dos cemitérios,
das estelas funerárias, dos cruzeiros, das praças, avenidas e ruas, dos estádios,
escolas, pontes, museus…?
Todos
se lembram de que os romanos honravam os seus Manes (as
almas dos antepassados)
e Lares (os deuses protetores das famílias). E, como os Romanos, outros
povos manifestavam cultos semelhantes e proviam à vida futura do falecido (colocavam
os gregos a moeda na boca do defunto para que pudesse pagar o óbolo a Caronte
para a travessia do Lago).
É efetivamente o reconhecimento da dívida individual e coletiva para com as
nossas origens e para com aqueles e aquelas que nos ligam a elas. É a
perpetuação para o futuro da vida daqueles e daquelas que modelaram esta Casa
Comum e que no-la deixaram como herança a estimar, consolidar e legar às
gerações futuras. É tão importante a celebração desta memória como a preparação
do futuro para os outros, que são como que um prolongamento de nós – o que se
consegue pela reprodução da espécie humana e/ou pelo empenhamento na construção
de uma sociedade justa e fraterna que habite um Planeta onde dê gosto viver.
***
Ora,
o cristianismo – quer enquanto herdeiro da espiritualidade judaica que não
fazia o culto aos mortos, a quem não reconhecia o estatuto de deuses, mas rezava
a Deus por eles e honrava a sua memória, quer professando uma fé reforçada na
imortalidade da alma e na ressurreição dos mortos – assumiu este culto e
reperspetivou-o. Faz o culto aos mortos e faz o culto pelos mortos.
O
culto pelos mortos consiste em rezar a Deus pelos mortos. E faz-se celebrando
os santos (canonizados, beatificados, veneráveis e todos os que
morreram na graça de Deus),
manifestando alegria por eles, tentando imitá-los naqueles aspetos em que eles foram
propostos como modelos de vida e bendizendo, glorificando e agradecendo a Deus
por estas criaturas constituírem assim o espelho da grandeza e misericórdia divinas.
Tal desígnio realiza-se com as Solenidades, Festas, Memorias litúrgicas e culto
privado destes homens e mulheres e, em novembro, com as Solenidade de Todos os Santos, que abre o mês dito das almas.
Mas
o culto pelos mortos faz-se honrando a memória dos familiares e amigos,
vizinhos, concidadãos, conterrâneos e até os demais membros da família humana (sobretudo
os que morrem em circunstâncias de impacto público), proporcionando-lhes exéquias
condignas, rezando por eles, fazendo o que lhes agradaria que fosse feito,
lembrando-os em liturgias específicas, perpetuando a sua visibilidade em monumentos
(simples
ou grandiosos) e
apresentando lhes gestos simbólicos (flores, velas, homenagens
públicas ou familiares…).
E fazemos a Comemoração dos Defuntos
a 2 de novembro, logo a seguir à Solenidade
de Todos os Santos. Enquanto esta constitui, em especial, a celebração da
Igreja triunfante (o fruto definitivo, no Céu, da
ressurreição de Cristo),
aquela constitui a homenagem e a prece em relação à Igreja purgante (que
ainda precisa de purificação no purgatório para se unir à Igreja triunfante).
Por
outro lado, multiplicam-se no Mês das Almas as celebrações dos jubileus – Confissão
Sacramental, canto de uma hora canónica do Ofício dos Defuntos e Missa com sermão
– as visitas ao cemitério e o clamor popular pelas almas (eram bem conhecidos
os Cramóis da Gralheira ou o Grito
das Almas, de Pendilhe).
Entretanto,
não podemos deixar de perceber que, ao assumir a nossa Natureza humana, o Filho
de Deus fez-nos participantes da Natureza divina, a ponto de o hagiógrafo dizer
Vós sois deuses (Sl
82/81,6; Jo 10,34)
e todos sois filhos de Deus em Jesus Cristo (Gl 3,26). Neste sentido, os cristãos, que só adoram a Deus, prestam aos seus irmãos
que morreram em Cristo e já estão no Céu (os santos) ou ainda estão no Purgatório (numa fase última de purificação) um culto de veneração ou dulia (como prestam à Virgem Maria uma culto de veneração especial ou hiperdulia). Assim, se reza aos santos, para que intercedam junto de Deus pelos
vivos, e às almas de
purgatório, para que o seu sofrimento de purificação e a sua presença futura
junto de Deus também resultem em intercessão pelos vivos. É um verdadeiro culto
aos
mortos, mas que não resulta destes, mas de Deus, fonte de vida e origem
de toda a santidade, que Se dignou associar a Si na glória e na ação pela humanidade
todos e cada um dos seres humanos que estejam disponíveis.
***
Porém,
o culto dos mortos (aos e pelos
mortos) não se reduz
à homenagem, à celebração ou ao monumento; implica necessariamente a partilha
para com os outros, os vivos deste mundo. São João ensina que “Nós
sabemos que passámos da morte para a vida, porque amamos os irmãos. Quem não
ama, permanece na morte.” (1Jo 3,14) e
pergunta: “Se alguém possuir bens deste
mundo e, vendo o seu irmão com necessidade, lhe fechar o seu coração, como é
que o amor de Deus pode permanecer nele?” (1Jo 3,17).
Por outro lado, São Tiago adverte questionando-nos:
“De que aproveita, irmãos, que alguém
diga que tem fé, se não tiver obras de fé?” (Tg 2,14).
Ora esta partilha postulada pela fé e pelo amor
fraterno – amar o próximo como a nós mesmos e como Cristo fez – deve realizar-se
diariamente. Todavia, há momentos em que os gestos de partilha enformam a
cultura dos povos. E a celebração de Todos os Santos agregou a si “o pão por
Deus”, como hoje fica assinalada pelo peditório da Liga contra o Cancro; em
algumas comunidades, ao 7.º dia do falecimento de um familiar, os enlutados
distribuem o pão (ou o equivalente em dinheiro) pelos circunstantes.
É também em novembro que se partilha a alegria em
torno do magusto das castanhas regado com o vinho novo ou com a jeropiga, sob a
égide de São Matinho de Tours, o evangelizador da Europa Ocidental e o santo da
partilha com os pobres. E o vinho e a castanha são produtos típicos do outono do
ano a robustecer os homens com a força do alimento e a animá-los com o vinho da
alegria. Depois, vem outro momento de colmatação de necessidades e de expressão
de convivência – a matança do porco, que provia à base de sustento da família
por uma boa parte do ano.
Finalmente, diga-se que celebrar a fé e honrar os
santos e, em geral os defuntos, postula um empenhamento na militância de Igreja
neste mundo, a Igreja que está em saída a pregar Evangelho, a trabalhar na
dignificação do ser humano, a participar o amor fraterno e a fazer a Liturgia. A
isto vem, como especial marco litúrgico, a Solenidade de Cristo Rei, no último
Domingo do Tempo Comum – a qual, mais do que a Festa de Cristo, representa o
compromisso de labuta pelo Reino de Deus e sua Justiça, com referência explícita
e assídua ao Cristo da Fé.
Dito de outro modo, honrar os defuntos é uma atitude
de fé e de cultura: um ato de gratidão para com o passado para ter o direito de
hoje legar um futuro de gente às gentes vindouras!
2015.11.04 – Louro de Carvalho
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