quarta-feira, 4 de novembro de 2015

Sobre o culto dos mortos

Decorrem com força e tranquilidade os dias do mês de novembro. Este é o mês do ano marcado por vários aspetos que nos devem fazer meditar.
De um lado, surge como uma trintena de dias que assinala a grande passagem entre o calor do verão e os rigores do inverno. E este mês está no coração do outono. Por um lado, diz-se adeus aos dias grandes, à madureza dos frutos e às suas colheitas e antevê-se o deserto do frio e da hibernação geral e, em especial a dos répteis. Cai a folha e vem a desolação e a desnudez geral.
O 11.º mês do ano acaba por ser uma imagem da vida que atingiu o máximo da maturidade. O outono da vida insinua caminhada pessoal para a decrepitude e para o tempo da sensação do dever cumprido e do sentimento de que o nosso percurso vital mostra que vale a pena viver passando em trânsito por este mundo de Cristo e preparar “a vida do mundo que há de vir”.
O mês de novembro é o mês em que se faz o culto aos mortos e o culto pelos mortos. Não foi o cristianismo que inventou este culto, mas assumiu-o dando-lhe um sentido peculiar. Também este é o mês em que este culto faz mais sentido, muito embora o culto dos finados (porque chegaram ao fim) ou defuntos (porque já cumpriram os deveres para com o mundo) deva ser feito sempre que alguém parte do meio de nós para a vida do Além e possa e deva mesmo ser feito diariamente, sobretudo quando o dia, à imagem do ano e da vida, parece aproximar-se e aproximar-nos do ocaso.
As diversas civilizações, desde as mais antigas às mais recentes, celebram a memória daqueles que viveram visivelmente entre “nós”. Os monumentos deste memorial, coletivo e individual, mais explícito ou mais discreto, superabundam um pouco por toda a parte. Quem não se lembra das pirâmides do Egito, dos diversos mausoléus, das antas, dos alinhamentos, dos cromlechts, das igrejas e capelas com túmulos, dos panteões, das estátuas, dos cemitérios, das estelas funerárias, dos cruzeiros, das praças, avenidas e ruas, dos estádios, escolas, pontes, museus…?
Todos se lembram de que os romanos honravam os seus Manes (as almas dos antepassados) e Lares (os deuses protetores das famílias). E, como os Romanos, outros povos manifestavam cultos semelhantes e proviam à vida futura do falecido (colocavam os gregos a moeda na boca do defunto para que pudesse pagar o óbolo a Caronte para a travessia do Lago). É efetivamente o reconhecimento da dívida individual e coletiva para com as nossas origens e para com aqueles e aquelas que nos ligam a elas. É a perpetuação para o futuro da vida daqueles e daquelas que modelaram esta Casa Comum e que no-la deixaram como herança a estimar, consolidar e legar às gerações futuras. É tão importante a celebração desta memória como a preparação do futuro para os outros, que são como que um prolongamento de nós – o que se consegue pela reprodução da espécie humana e/ou pelo empenhamento na construção de uma sociedade justa e fraterna que habite um Planeta onde dê gosto viver.
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Ora, o cristianismo – quer enquanto herdeiro da espiritualidade judaica que não fazia o culto aos mortos, a quem não reconhecia o estatuto de deuses, mas rezava a Deus por eles e honrava a sua memória, quer professando uma fé reforçada na imortalidade da alma e na ressurreição dos mortos – assumiu este culto e reperspetivou-o. Faz o culto aos mortos e faz o culto pelos mortos.
O culto pelos mortos consiste em rezar a Deus pelos mortos. E faz-se celebrando os santos (canonizados, beatificados, veneráveis e todos os que morreram na graça de Deus), manifestando alegria por eles, tentando imitá-los naqueles aspetos em que eles foram propostos como modelos de vida e bendizendo, glorificando e agradecendo a Deus por estas criaturas constituírem assim o espelho da grandeza e misericórdia divinas. Tal desígnio realiza-se com as Solenidades, Festas, Memorias litúrgicas e culto privado destes homens e mulheres e, em novembro, com as Solenidade de Todos os Santos, que abre o mês dito das almas.
Mas o culto pelos mortos faz-se honrando a memória dos familiares e amigos, vizinhos, concidadãos, conterrâneos e até os demais membros da família humana (sobretudo os que morrem em circunstâncias de impacto público), proporcionando-lhes exéquias condignas, rezando por eles, fazendo o que lhes agradaria que fosse feito, lembrando-os em liturgias específicas, perpetuando a sua visibilidade em monumentos (simples ou grandiosos) e apresentando lhes gestos simbólicos (flores, velas, homenagens públicas ou familiares…). E fazemos a Comemoração dos Defuntos a 2 de novembro, logo a seguir à Solenidade de Todos os Santos. Enquanto esta constitui, em especial, a celebração da Igreja triunfante (o fruto definitivo, no Céu, da ressurreição de Cristo), aquela constitui a homenagem e a prece em relação à Igreja purgante (que ainda precisa de purificação no purgatório para se unir à Igreja triunfante).
Por outro lado, multiplicam-se no Mês das Almas as celebrações dos jubileus – Confissão Sacramental, canto de uma hora canónica do Ofício dos Defuntos e Missa com sermão – as visitas ao cemitério e o clamor popular pelas almas (eram bem conhecidos os Cramóis da Gralheira ou o Grito das Almas, de Pendilhe).
Entretanto, não podemos deixar de perceber que, ao assumir a nossa Natureza humana, o Filho de Deus fez-nos participantes da Natureza divina, a ponto de o hagiógrafo dizer Vós sois deuses (Sl 82/81,6; Jo 10,34) e todos sois filhos de Deus em Jesus Cristo (Gl 3,26). Neste sentido, os cristãos, que só adoram a Deus, prestam aos seus irmãos que morreram em Cristo e já estão no Céu (os santos) ou ainda estão no Purgatório (numa fase última de purificação) um culto de veneração ou dulia (como prestam à Virgem Maria uma culto de veneração especial ou hiperdulia). Assim, se reza aos santos, para que intercedam junto de Deus pelos vivos, e às almas de purgatório, para que o seu sofrimento de purificação e a sua presença futura junto de Deus também resultem em intercessão pelos vivos. É um verdadeiro culto aos mortos, mas que não resulta destes, mas de Deus, fonte de vida e origem de toda a santidade, que Se dignou associar a Si na glória e na ação pela humanidade todos e cada um dos seres humanos que estejam disponíveis.
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Porém, o culto dos mortos (aos e pelos mortos) não se reduz à homenagem, à celebração ou ao monumento; implica necessariamente a partilha para com os outros, os vivos deste mundo. São João ensina que “Nós sabemos que passámos da morte para a vida, porque amamos os irmãos. Quem não ama, permanece na morte.” (1Jo 3,14) e pergunta: “Se alguém possuir bens deste mundo e, vendo o seu irmão com necessidade, lhe fechar o seu coração, como é que o amor de Deus pode permanecer nele?” (1Jo 3,17).
Por outro lado, São Tiago adverte questionando-nos: “De que aproveita, irmãos, que alguém diga que tem fé, se não tiver obras de fé?” (Tg 2,14).
Ora esta partilha postulada pela fé e pelo amor fraterno – amar o próximo como a nós mesmos e como Cristo fez – deve realizar-se diariamente. Todavia, há momentos em que os gestos de partilha enformam a cultura dos povos. E a celebração de Todos os Santos agregou a si “o pão por Deus”, como hoje fica assinalada pelo peditório da Liga contra o Cancro; em algumas comunidades, ao 7.º dia do falecimento de um familiar, os enlutados distribuem o pão (ou o equivalente em dinheiro) pelos circunstantes.
É também em novembro que se partilha a alegria em torno do magusto das castanhas regado com o vinho novo ou com a jeropiga, sob a égide de São Matinho de Tours, o evangelizador da Europa Ocidental e o santo da partilha com os pobres. E o vinho e a castanha são produtos típicos do outono do ano a robustecer os homens com a força do alimento e a animá-los com o vinho da alegria. Depois, vem outro momento de colmatação de necessidades e de expressão de convivência – a matança do porco, que provia à base de sustento da família por uma boa parte do ano.
Finalmente, diga-se que celebrar a fé e honrar os santos e, em geral os defuntos, postula um empenhamento na militância de Igreja neste mundo, a Igreja que está em saída a pregar Evangelho, a trabalhar na dignificação do ser humano, a participar o amor fraterno e a fazer a Liturgia. A isto vem, como especial marco litúrgico, a Solenidade de Cristo Rei, no último Domingo do Tempo Comum – a qual, mais do que a Festa de Cristo, representa o compromisso de labuta pelo Reino de Deus e sua Justiça, com referência explícita e assídua ao Cristo da Fé.
Dito de outro modo, honrar os defuntos é uma atitude de fé e de cultura: um ato de gratidão para com o passado para ter o direito de hoje legar um futuro de gente às gentes vindouras!

2015.11.04 – Louro de Carvalho

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