O
Papa Francisco visitou, no dia 15 de novembro, a Igreja Evangélica e Luterana
de Roma. Para o efeito preparou um discurso, que não chegou a pronunciar,
porque na ocasião optou por ouvir as perguntas de alguns participantes no
encontro e dar-lhes resposta de índole pessoal. E, a concluir, fez um
comentário homilético a várias passagens dos Evangelhos e com referência
especial à perícopa do tema do Juízo Final (Mt 25,31-46). De tudo se faz menção e
leitura livre.
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As
respostas às perguntas formuladas: o que o Papa mais gosta de fazer e o que
sugere
Ao
menino de 9 anos – afeiçoado à participação no culto das crianças praticado na
comunidade e fascinado pelas histórias de Jesus e pelo modo como Ele atua – que
perguntou ao Santo Padre o que é que mais lhe agrada mais enquanto Papa,
Francisco responde que é ser pastor. E parte do gosto da
criança por esta ou aquela iguaria, mas que precisa de comer de tudo. Assim,
também o Papa confessa que o que mais lhe agrada é desempenhar o ofício de
pároco, de pastor. Diz que não gosta muito das entrevistas protocolares, mas
deve proceder a elas. E fez um parêntesis para esclarecer que esta entrevista é
familiar e destas gosta.
Mesmo
quando exerceu outras funções como a de reitor da faculdade de teologia, era
pároco e agradava-lhe ensinar o catecismo às crianças, dialogar com elas e
celebrar a Missa com elas ao domingo. Sentia-se bem a visitar doentes, a falar
com pessoas tristes e desesperadas ou a visitar encarcerados. E gosta do
exercício de Papa como se fosse pároco, servindo, sendo pastor, pároco e bispo
com condição para, mais do que intervir na sociedade, ter um coração feliz.
***
A
uma luterana casada com um católico italiano – vivendo em comum e com muita
felicidade há muitos anos e compartilhando alegrias e sofrimentos, mas não
podendo participar em comum na Ceia do
Senhor – que lhe perguntou o que poderemos fazer para alcançar a comunhão
neste ponto, o Papa disse não ser fácil responder em virtude das questões
teológicas subjacentes à celebração da Ceia do Senhor. No entanto, recorda que
o fundamental está salvaguardado. Com efeito, o Senhor sobre o pão e sobre o
vinho disse “isto é o meu corpo”, “este é o meu sangue”, deu-os aos discípulos
e mandou que o fizéssemos em Sua memória.
Depois,
compartilhar a Ceia do Senhor é recordar e imitar o Senhor fazendo exatamente o
que Ele fez. E hoje a celebração da Ceia, por um lado, é viático consolador na
viagem de nossas vidas, por outro, prefigura o banquete final de todos com e em
Cristo. Ora, para participar na celebração da Ceia é preciso ter recebido o
Batismo e crer na presença de Cristo no Pão e no Vinho. Ora, o
Batismo que recebemos é o mesmo num único Senhor; e a presença de Cristo é
assumida por católicos e evangélicos. Porém, há uma diferença na
perceção desta presença.
Ora,
se temos o mesmo Batismo, devemos caminhar em conjunto. No caso vertente, estes
cônjuges, além do Batismo, testemunham um caminho profundo – o caminho
conjugal, próprio da família, do amor humano e da fé partilhada. E, quando um e
outro se sentem pecadores, um diz o seu pecado a Deus e pede perdão; o outro
abeira-se do sacerdote e pede a absolvição. São remédios iguais e diferentes para
manter vivo o Batismo. Mas rezam em conjunto e o Batismo cresce e torna-se
forte; e ensinam aos filhos quem é Jesus, porque veio ao mundo e o que fez –
acabam por fazer o mesmo, seja em linguagem católica seja em linguagem
luterana.
Quanto
à Ceia, o Papa entende que tem de se avançar mais no diálogo teológico. No entanto,
diz que é possível o casal encontrar forma de a Ceia ou a Missa servirem de
acompanhamento de ambos os cônjuges e os filhos na vida do dia a dia. E aduziu
o exemplo do pastor luterano cuja esposa era católica. Acompanhava-a a ela e
aos filhos à Missa; e, depois, celebrava a Ceia com a comunidade que servia. É
preciso falar em conjunto com o Senhor e avançar.
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À
pergunta de uma suíça – tesoureira da comunidade e empenhada no projeto de
acolhimento aos refugiados – que pergunta o que podemos fazer como cristãos
para que as pessoas não se resignem ou não ergam novos muros, Francisco
gracejou que, sendo suíça e tesoureira, tem todo o poder na mão. Mas adiantou
logo: serviço, miséria, muros.
O Papa verifica que desde o início o homem se armou em
construtor de muros, que nos separam de Deus. Mais: há uma fantasia por trás
dos muros humanos – tornar-se como Deus. Depois, os muros que separam de Deus
também separam os homens e mulheres uns dos outros, quando a postura é “nós é
que temos o poder, vós ficais de fora”. É a soberba do poder, é a exclusão.
Contra a tentação de erigir muros ou de os manter
levantados, o Papa propõe o serviço à maneira de Jesus: fazer de último, lavar
os pés; prestar serviço aos irmãos e irmãs, aos mais necessitados. Servir faz
derrubar os muros que a miséria levanta.
Recusar o serviço equivale a defender o próprio poder,
o egoísmo. Os muros do egoísmo são como o suicídio: fecham-nos. Mais: invoca-se
o nome de Deus para fechar os corações e mesmo para matar.
Enfim, o que podemos fazer como cristãos para que as
pessoas não se resignem ou não ergam novos muros é falar claro, rezar
e servir.
E isto, por pouco que se afigure, vale a pena. O Papa recorda que Madre Teresa
de Calcutá se interrogava um dia sobre o que significa todo o esforço para
fazer morrer com dignidade esta gente que está a três ou quatro dias da morte.
E concluiu que, embora seja uma gota de água no mar, depois disto, o mar já não
é o mesmo.
Mas a postura de derrubar muros deve ser constante,
pois, como adverte Francisco, “com o serviço, os muros cairão por si, mas o
nosso egoísmo, o nosso desejo de poder procura sempre construí-los”.
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Homilia do
Santo Padre: as escolhas de Jesus
Durante a sua vida foram múltiplas as escolhas de
Jesus: os primeiros discípulos; os doentes que sarava, a multidão que o seguia,
o serviço, a cruz.
O que levava as multidões a segui-Lo? A autenticidade,
falando como quem tem autoridade e não como os doutores da lei, que se
pavoneavam. Com amor o Senhor escolhia e corrigia. E, se os discípulos falhavam
nos métodos, como pôr a hipótese de fazer que desça fogo do céu, Ele os
corrigia advertindo-os de que não sabiam que espírito era o deles.
Depois, o Bispo de Roma cita o caso da mãe dos filhos
de Zebedeu (João e Tiago), que pedia
ao Mestre que no seu Reino colocasse um dos filhos à direita e o outro à
esquerda; e o dos discípulos de Emaús, que saíram de Jerusalém, após a morte de
Jesus por medo. Sempre o Senhor faz as suas escolhas. No primeiro caso, não
concede aqueles ligares cimeiros, mas convida ao serviço como em último; no
segundo, acompanha, explica, apresenta-se e anima.
Mas, na opinião de Francisco, a grande escolha de
Jesus vem alinhada com a do Rei que para as bodas do filho mandou que os servos
fossem às encruzilhadas dos caminhos e trouxessem para o banquete todos,
nomeadamente os cegos, os surdos, os coxos… – bons e cativos.
Depois, escolheu entre as 99 ovelhas que andavam
juntas para ir à procura da ovelha perdida, não se refugiando no cálculo aritmético.
E a escolha de Cristo para os últimos dias – a
definitiva – não é aferir se fomos à missa, se fizemos uma boa catequese, mas a
questão tem a ver com os pobres, porque a pobreza está no coração do Evangelho
(cf Mt, 25,
31-46). Ele é o exemplo acabado da
pobreza: sendo rico, fez-se pobre para nos enriquecer com a sua pobreza. É o
Senhor, mas é o servo. Despiu-se da sua condição de Deus, aniquilou-se,
humilhou-se na obediência até à morte. É a escolha do serviço.
Não será, pois, viável a pretensão de discutir entre
luteranos e católicos quais ficarão à direita ou à esquerda de Cristo no Seu
Reino. Mas o que importa é enfrentarmos em conjunto os tempos de tribulação que
nos desafiam: em razão do mesmo Batismo
os cristãos são perseguidos, queimados vivos, temos enfim a mesma sorte. Deveríamos,
pois, implorar perdão por isto, pelo escândalo da divisão, agora que todos
enveredamos pela opção do serviço, como Jesus mandou.
Por fim, o Papa intuiu que devia pedir ao Senhor que
serve, que Se digne ser hoje “o servo da
unidade, que nos ajude a caminhar em conjunto”. Isto quer dizer que nós
temos de rezar em conjunto; trabalhar em conjunto “pelos pobres, pelos
necessitados”; e “amar-nos uns aos outros com amor de irmãos”.
Falta ainda uma coisa: superar a diversidade dos
livros dogmáticos entre luteranos e católicos. Aqui Francisco aduz a asserção
de um teólogo luterano de que “agora é o tempo da diversidade reconciliada no
Senhor como Servo de Javé, daquele Deus que veio até nós para servir e não para
ser servido”. É a pertinência do diálogo teológico.
***
Do discurso que o Santo Padre tinha preparado: os
pilares de um ecumenismo sólido
É óbvio que o discurso escrito não diverge do exposto,
quer nas respostas às três questões levantadas pelos participantes no encontro,
quer no comentário homilético. Será fácil de sistematizar os conteúdos (os materiais
de que se fazem) os pilares
do ecumenismo: oração, trabalho pelos pobres e diálogo doutrinal – mas tudo em conjunto,
ou seja, em dinamismo sinodal. É um discurso naturalmente mais sistemático e
menos conversacional.
Francisco começa por salientar o ensejo de
compartilhar a oração fraterna e a oportunidade de refletir sobre as relações
mútuas entre as duas Igrejas e sobre a situação ecuménica em geral. Ao mesmo
tempo, sublinha os numerosos passos dados rumo à unidade, embora com a consciência
de que muito está por fazer.
Tornando-se hoje o movimento ecuménico um elemento fundamental
para as nossas comunidades, o progresso neste campo configura-se como o objetivo
que mobiliza o empenho estável de muitas pessoas de diversas gerações – o que
dá como resultado que, a nível local, regional e mundial, se experimente “um
ecumenismo muito vivo”, de modo que, “mesmo fora das nossas comunidades, os homens
e as mulheres de hoje estão na procura” da vivência da fé de modo autêntico,
procura que “constitui o motivo principal do progresso ecuménico”.
Mais do que nas preocupações do homem, o ecumenismo
deve reconhecer-se no sistema de reciprocidade como apanágio das comunidades de
crentes que buscam o Reino de Deus e a sua justiça, vindo o resto por acréscimo.
Ora, nesta caminhada comum, podemos aprender uns com os outros a vivência comum
de uma fé sustentada, encorajada, experimentada e encarada como riqueza e fonte
de força.
A parábola do Juízo Final (cf Mt 25,31-46) ensina que seremos julgados consoante “a nossa proximidade
concreta” junto do irmão na sua condição real, o que postula a “capacidade
de atenção, compaixão, partilha e serviço”. A este respeito, Francisco
cita do Concílio Vaticano II as palavras iniciais da Constituição Pastoral Gaudium et Spes – “as alegrias e as esperanças, as tristezas e as
angústias dos homens de hoje, sobretudo dos pobres e de todos aqueles que
sofrem, são também as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos
discípulos de Cristo” (GS, 1) – dizendo que se trata de “um modo de ser
Igreja”.
Ora, sendo um modo de ser Igreja, “é também a vocação e
missão ecuménica” de todos os cristãos, que se espelha no empenho comum no
serviço da caridade (sobretudo para com os mais pequenos e os mais pobres), que torna credível a nossa fé e a nossa pertença a
Cristo. Caso contrário, ficamos comprometidos pela divisão e conflito.
A todos se abre, na cooperação ecuménica, a
possibilidade de assumir conjuntamente a alegria e a tarefa da caridade, a
exercer com as crianças e os idosos (sobretudo os mais desprotegidos), os refugiados e com os demais necessitados de
cuidado e sustento. Por outro lado, é urgente “reencontrar a riqueza da oração
comum” (e a leitura
comum da bíblia), dos textos
litúrgicos e das várias formas de culto” (por exemplo, as celebrações ecuménicas
da Palavra e a liturgia ecuménica das horas). E Francisco alude, em especial, à semana de oração pela unidade dos
cristãos e à jornada de oração pelo cuidado da criação, bem como a diversas iniciativas
da Igreja Luterana.
Além disso, movidos pelo Batismo, somos chamados ao aprofundamento
do diálogo teológico em busca da verdade divina e na descoberta de novos
aspetos da revelação, salientando que os esforços destes 50 anos (depois da
promulgação do decreto conciliar sobre o ecumenismo) mostram mais o que nos une que aquilo que nos separa.
Com a inabalável confiança no diálogo ecuménico podemos aprofundar em especial
os temas da Igreja, da Eucaristia e do Ministério.
Depois, Francisco disponibiliza a Igreja Católica para
reapreciar as intenções da Reforma e a figura de Martinho Lutero no quadro do
postulado “Ecclesia semper reformanda”, de acordo com o esboçado no recente
documento da Comissão luterano-católica para a unidade, “Do conflito à comunhão – Comemoração luterano-católica comum da Reforma
no ano de 2017”, que “encarou e realizou esta reflexão de modo promissor”.
Assim, o ecumenismo católico-luterano – condição fundamental
do testemunho convincente da nossa fé em Cristo face aos homens do nosso tempo –
assenta nos seguintes pilares: a oração comum, a partilha
diaconal (de serviço) aos pobres
e o diálogo
teológico. O Jubileu da Misericórdia, segundo o Papa, ajudará ao
reforço do ecumenismo pela “redescoberta da misericórdia de Deus e da beleza do
amor pelos irmãos”.
***
Prosit!
2015.11.16 –
Louro de Carvalho
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