segunda-feira, 31 de julho de 2023

Busca, descoberta, alegria, acolhimento e discrição – marcam o Reino

 

No Evangelho do 17.º domingo do Tempo Comum no Ano A (Mt 13,44-52), recorrendo à linguagem das parábolas, Jesus exorta os discípulos que façam do Reino de Deus a sua prioridade fundamental, devendo todos os outros valores e interesses passar para segundo plano, face a esse tesouro supremo que é o Reino. E isto leva-nos a repensar as nossas prioridades de vida e os valores sobre os quais a fundamentamos, na certeza de que o cristão deve construir a vida sobre os valores assumidos por Jesus.

Com esta perícopa evangélica, conclui-se a leitura do capítulo dedicado às “parábolas do Reino” (cf Mt 13), em que, recorrendo a imagens e comparações simples, sugestivas e questionantes, Jesus apresenta o mundo novo de vida e de liberdade que oferece aos homens, sob o signo de Reino de Deus ou Reino dos Céus.

Em concreto, o trecho em apreço apresenta-nos três parábolas exclusivas de Mateus, pois não constam dos outros três evangelhos canónicos, embora apareçam num texto não canónico – o Evangelho de Tomé – mas com variantes em relação à versão mateana. São elas a do tesouro que um homem encontrou, a do negociante que, procurando pérolas preciosas, encontrou uma de grande valor e a da rede que, lançada ao mar, apanha toda a espécie de peixes.

Para melhor entendimento da mensagem de Mateus, é de ter em conta o contexto da comunidade destinatária deste Evangelho: arrefecimento do entusiasmo inicial e iminência dos tempos difíceis de perseguição e de hostilidade. Por isso, Mateus sente que é preciso renovar o compromisso cristão e chamar a atenção dos crentes para o Reino, para as suas exigências, para os seus valores.

O trecho evangélico desta dominga pode ser dividido em três partes, convindo relevar, em cada uma, aspetos e questões que são marcas do Reino, que não é de pompa e de poderosos exércitos, com cavalos e carros de combate (tanques, aviões, fragatas, submarinos, mísseis, bombas e drones), mas do rei que entra, manso e pacífico, na sua cidade montado num jumentinho obediente, aclamado por crianças e pessoas simples.

Na primeira parte, as parábolas do tesouro e da parábola da pérola (vv. 44-46) desenvolvem o mesmo tema e apresentam ensinamentos semelhantes. O núcleo ideativo é, aqui, o da busca e da descoberta do essencial do Reino de Deus e do seu valor e importância. Ambas as parábolas sugerem que o Reino pregado por Jesus (mundo de paz, de amor, de fraternidade, de serviço, de reconciliação) é um tesouro precioso, que os seguidores de Jesus abraçam, acima de qualquer outro valor. Andando à procura, encontram o tesouro, acolhem-no, reservam-no zelosamente, desfazam-se de tudo o que se lhe oponha e adquirem-no. Daí, a alegria que se sente e se partilha! 

Os cristãos são, antes de mais, os que encontraram algo de único, de fundamental, de decisivo: o Reino. E, encontrando um tesouro como este, elegem-no como a riqueza mais preciosa, o fim último da própria existência, o valor fundamental pelo qual se renuncia a tudo o resto e pelo qual se está disposto a pagar qualquer preço. Mateus sugere, pois aos cristãos a quem destina o Evangelho (adormecidos na fé morna, inconsequente) que é preciso redescobrir esse valor mais alto, que dá sentido às suas vidas, e optar decisivamente por ele. O cristão, confrontado, “pari passu”, com muitos valores e opções, deve sentir que o Reino é o valor mais importante.

Na segunda parte, surge a imagem da rede que, lançada ao mar, apanha diversos tipos de peixes (vv. 47-50). Na versão mateana, a parábola apresenta um ensinamento semelhante ao da parábola do homem que semeou do trigo no seu campo e do inimigo que lá semeou joio, pela calada da noite. O Reino não é condomínio fechado, onde só há gente escolhida e santa, mas realidade onde as pessoas são acolhidas com alegria, correndo-se o risco de o mal e o bem crescerem a par. Deus não tem pressa de condenar e de destruir. Porque não quer a morte do pecador, dá-lhe o tempo necessário e suficiente para amadurecer as suas opções e para fazer as suas escolhas.

O Evangelho de Tomé dá à parábola uma coloração diferente: um pescador sábio que pesca vários peixes fica só com o maior e lança ao mar os demais. Aí a parábola contém mensagem alinhada com as duas parábolas da primeira parte, pelo que alguns estudiosos sustentam que a versão do Evangelho de Tomé é a versão primeva da parábola da rede e dos peixes. Porém, a nova referência mateana ao juízo final constitui uma forma de exortação aos irmãos da sua comunidade, no sentido de escolherem decididamente o Reino e porem em prática a Palavra de Jesus.

A parábola na versão mateana distingue peixes maus e bons que se apanham simultaneamente. E, enquanto se recolhem para os cestos os bons, jogam-se fora os que não prestam. Porém, tiveram de se recolher todos na rede, caso contrário muitos dos bons ficariam a pairar no mar. E essa operação de discernimento (avaliação, decisão de exclusão), que se seguiu à operação de inclusão, não se faz “de ânimo leve”, à pressa, mas “sentando-se”.

Paralelamente, transportando a parábola para as pessoas, é de advertir que não cabe aos homens fazer a destrinça de bons e maus, mas aos anjos; não agora, mas no fim do Mundo.  

Na terceira parte, Mateus apresenta um breve diálogo entre Jesus e os discípulos (vv. 51-52), no qual temos a conclusão de todo o capítulo. Assim, o discípulo é aquele sábio ou escriba instruído no Reino dos Céus, comparável ao pai de família que tira do seu tesouro coisas novas e velhas. Assim, o discípulo compreende, acolhe o ensinamento de Jesus, presta-lhe atenção e compromete-se com ele. Os cristãos são, pois, convidados a descobrir o Reino, a entender as suas exigências, a comprometerem-se com os seus valores. A referência ao escriba, que “tira do seu tesouro coisas novas e velhas”, refere-se aos Judeus, conhecedores do Antigo Testamento (AT), o “velho”, que são convidados a refletir essas velhas promessas à luz da Palavra de Jesus, o “novo”. É nessa dialética exigente e questionante que o discípulo encontra o caminho para o Reino; e, depois de o encontrar, deve comprometer-se com ele, de forma decisiva, exigente, empenhada.

***

A 1.ª leitura (1 Rs 3,5.7-12) apresenta-nos o exemplo de Salomão, rei de Israel. Ele é o protótipo do homem sábio – testemunha da sabedoria de Deus, em que participa por concessão, e precursor do discípulo que saboreia o mistério do Reino de Deus –, pois consegue perceber e escolher o que é importante, não se deixando seduzir por valores efémeros. Na verdade, o Senhor apareceu em sonhos a Salomão e disse-lhe: “Pede o que quiseres”. E Salomão, orante, confessando que fora colocado no lugar do pai, no meio do povo escolhido, e não sabendo como proceder, pediu um coração inteligente, para saber distinguir o bem do mal.

A súplica agradou ao Senhor, que lhe disse: “Já que não pediste longa vida, nem riqueza, nem a morte dos teus inimigos, mas sabedoria para praticar a justiça, satisfarei o teu desejo. Dou-te um coração sábio e esclarecido, como não houve antes de ti, nem haverá depois de ti.”

O rei David morreu por volta de 972 a.C., após longo e fecundo reinado, ocupado a expandir as fronteiras do reino, a consolidar a união entre as tribos do Norte e do Sul e a conquistar a paz e a tranquilidade para o Povo de Deus. Sucedeu-lhe o filho, Salomão, com trabalho meritório na estruturação do reino. Organizou a divisão administrativa do território, dotou-o de grandes construções (a mais emblemática é o Templo de Jerusalém), fortificou as cidades importantes, potenciou o intercâmbio cultural e comercial com os países da zona, incentivou e apoiou a cultura e as artes. Preocupado com a constituição de uma classe política preparada para as tarefas da governação, recrutou sábios estrangeiros, sobretudo egípcios, para a corte e rodeou-se de homens que se distinguiam pelo saber, pela justiça e pela prudência, e que, além de aconselharem o rei, preparavam os futuros funcionários para desempenharem funções no aparelho governativo.

A corte tornou-se, pois, um viveiro de sabedoria. Os sábios coligiram provérbios, redigiram máximas de caráter sapiencial, deram instruções sobre as virtudes que deviam ser cultivadas para ter êxito e para ser feliz. Redigiram-se crónicas sobre os reinados anteriores e publicaram-se textos sobre as tradições dos antepassados. Terá sido então que a escola javista deu à luz algumas das tradições que terão lugar fundamental no Pentateuco. Não admira que Salomão tenha ficado na memória histórica de Israel como o protótipo do rei sábio, “cuja sabedoria excedia a todos os orientais e egípcios” (1Rs 4,30).

Salomão é, historicamente, o primeiro rei que herda o trono. Os seus predecessores não chegaram ao trono por herança, mas receberam-no das mãos de Deus, segundo a visão dos catequistas bíblicos. Os teólogos de Israel sacralizam o poder de Salomão e demonstram que, se governou o Povo de Deus, não foi só por direito hereditário (contestável), mas pela vontade de Deus.

O trecho em referência pressupõe este contexto. O “sonho de Gabaon” (cf 1Rs 3,5) é ficção literária dos teólogos deuteronomistas (grupo que reflete a vida e a história na linha das grandes ideias teológicas do Deuteronómio) com dupla finalidade: apresentar Salomão como o escolhido de Javé e justificar a sua proverbial “sabedoria”.

No AT, o sonho aparece, com frequência, como a forma privilegiada de Deus comunicar com os homens e de lhes indicar os seus caminhos. Aqui, há também um sonho: os catequistas deuteronomistas usam este recurso literário para apresentar Salomão como o escolhido de Deus, a quem Javé comunica o seu desígnio e a quem confia a condução do seu Povo. Este sonho está estruturado na forma de diálogo entre Deus e Salomão. Começa por uma interpelação de Deus, a que se segue a resposta de Salomão: consciente da grandeza da sua tarefa e das suas limitações, o rei pede a Deus um coração sábio para governar com justiça. A prece é atendida e Deus concede a Salomão uma sabedoria inigualável, a que alia os dons da riqueza, da glória e da longa vida (estes não constam da perícopa em referência).

Antes de mais, o texto deixa claro que, em Israel, o rei é o instrumento de Deus, o intermediário entre Deus e o seu Povo. É através da pessoa do rei que Deus governa, que intervém na vida do seu Povo e o conduz pela História. Mais esclarece que Salomão não concebeu o seu papel como um privilégio pessoal que podia usar em benefício próprio, mas como um ministério que lhe foi confiado por Deus, à maneira dos carismas neotestamentários, que Paulo entende como dons concedidos a uma pessoa para o bem da comunidade. Salomão estava cônscio de que a autoridade é um serviço a exercer com sabedoria e cujo objetivo final é a realização do bem comum.

Além disso, os autores deuteronomistas sublinham a qualidade da resposta de Salomão: não pede riqueza nem glória, mas as aptidões necessárias e a capacidade para cumprir bem a missão que Deus lhe confiou, surgindo como o arquétipo do homem que sabe escolher as coisas importantes e que não se deixa distrair por valores efémeros. E dizer que a súplica de Salomão “agradou ao Senhor” é exortar os israelitas a optarem por valores eternos, duradouros e essenciais.

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A 2.ª leitura (Rm 8,28-30) convida-nos a seguir o caminho de Jesus. Esse é o valor mais alto, que deve sobrepor-se a todos os outros. O projeto de Jesus não é acontecimento casual, mas algo que, desde sempre, está previsto no plano de Deus. É o Reino de Deus presente no meio de nós, apesar de não ser deste Mundo.

Aos que o acolhem, Deus chama-os a identificarem-se com o seu filho Jesus, liberta-os do egoísmo e do pecado e fá-los, com Jesus, chegar à vida nova e plena (justificação).

Neste sentido, o apóstolo fala “daqueles” que Deus “conheceu” de antemão, que “predestinou” para viverem à imagem de Jesus, que “chamou”, “justificou” e “glorificou”. Não obstante, estes versículos não devem ser entendidos no sentido de que a salvação que Deus oferece se destina só a um grupo de predestinados, que Deus escolheu de entre os homens de acordo com critérios que nos escapam. A teologia paulina é clara: o desígnio salvador de Deus está aberto a todos aqueles que O querem acolher. O que Paulo sublinha aqui é que se trata de dom gratuito de Deus, previsto desde toda a eternidade.

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Assim, urge que acolhamos o Reino que está disponível para nós, não fechado e exclusivista, mas campo aberto, universal, disponível para a descoberta, para a procura, para o acolhimento, para a alegria e para discrição sábia.

2023.07.30 – Louro de Carvalho

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