domingo, 26 de fevereiro de 2023

Entre a autarcia e a hiperglobalização total

 

A guerra na Ucrânia é uma guerra por procuração entre os Estados Unidos (EUA) e a Rússia, mas não é apenas sobre a Ucrânia, é também sobre a China e Taiwan. Di-lo Nouriel Roubini, autor de Mega-Ameaças, livro editado em Portugal pela Planeta.

O também autor do bestseller internacional Crisis Economics, que mora em Nova Iorque, é um dos analistas económicos mais influentes do mundo. É professor emérito de economia na Stern School of Business da Universidade de Nova Iorque e fundador e presidente da Roubini Macro Associates. É economista-chefe da Atlas Capital Team. Serviu na Casa Branca e no Departamento do Tesouro dos EUA. Foi apelidado de Dr. Catástrofe até que as suas previsões sobre a crise imobiliária de 2008 e a Grande Crise Financeira se tornaram realidade, mas era demasiado tarde.

No Mega-Ameaças, apresenta uma análise lúcida e realista da situação atual, análise a não ignorar. As ameaças estão interligadas, sobrepõem-se, reforçam-se e potenciam-se mutuamente. São tão prementes que o autor as encara como mega-ameaças e vão da pior crise da dívida que o mundo viu à inflação, ao crescimento do populismo, à ascensão de nova competição de superpotências entre a China e os EUA, à normalização das pandemias, à crise climática, ao impacto da inteligência artificial (IA) no emprego, ao colapso demográfico, à desglobalização da economia.

Diz o analista – não querendo assustar ninguém, apenas vincando termos de estar preparados – que há uma pequena hipótese de evitar o desastre e garantir um futuro mais pacífico e próspero, se começarmos a trabalhar em conjunto e a agir já. Com efeito, as mega-ameaças que identificou vão remodelar o mundo tal como o conhecemos, alterarão “o mundo que pensávamos conhecer”.

Considera o economista que “atualmente, vacilamos à beira do precipício, o chão foge-nos de baixo dos pés”. No entanto, a maioria, num “erro gritante”, pensa que “o futuro será parecido com o passado”, enquanto “os novos sinais de alerta parecem inequívocos e arrebatadores”. E, no atinente ao problema nuclear, vaticina que o risco poderá ser maior entre grandes potências, mas também deixará marcas e mesmo destruição entre potências menores e nos países seus inimigos.

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Em entrevista ao Diário de Notícias (DN), por ocasião do lançamento do Mega-Ameaças, em Portugal, abordou os riscos de uma guerra convencional deixar de ser convencional e temas, como, por exemplo, o impacto da desglobalização e da inteligência artificial (IA).

Depois das restrições causadas pela pandemia, com a invasão da Ucrânia pela Rússia e com as novas fraturas (evidentes ou latentes) entre o Ocidente e outras partes do mundo, Nouriel Roubini crê que “a globalização está sob ameaça, especialmente a hiperglobalização que vimos nas últimas décadas”. A questão não é ente a globalização total e a desglobalização total. Porém, começamos a ter algum grau de desglobalização e restrição no movimento de bens, de serviços, de capital, de trabalho e, sobretudo, no movimento de tecnologia, de dados e de informação.

Estamos entre dois extremos: a total autarcia (autossuficiência da comunidade que não depende de outrem, em nada) e a hiperglobalização total, sendo que a hiperglobalização começou a esmorecer com a crise financeira global, há 15 anos. O comércio global vem abrandando e caminhamos para o protecionismo, que é “desglobalização”. O comércio livre cede o passo ao comércio seguro, a menos deslocalização, a menos dependência das cadeias de fornecimento globais, a várias formas de fragmentação e localização.

A reação à globalização começou há décadas, quando os trabalhadores braçais, numa economia avançada, viram os empregos ameaçados por produtos mais baratos vindos da China, do resto da Ásia e de outras partes do Mundo. Depois, houve preocupações com os impactos da globalização no ambiente. Como economia avançada, dizíamos aos países dos mercados emergentes que nos preocupamos com as normas de trabalho e esses países começaram a ser fontes de nacionalismo, dizendo não quererem que os seus recursos, mas também as marcas campeãs nacionais, fossem adquiridos por empresas estrangeiras. Em França não quiseram que os iogurtes Danone fossem adquiridos por estrangeiros por serem empresa campeã nacional. Depois, a reação à globalização foi reforçada pela crise financeira, que também atingiu os mercados emergentes. E outra evidência desta reação é a depressão geopolítica corporizada pela China, pela Rússia, pelo Irão e pela Coreia do Norte – todos aliados de facto e de jure no desafio à ordem económica, financeira, comercial, de investimento, política, de segurança e geopolítica que os EUA, a Europa e o Ocidente em geral criaram após a II Guerra Mundial. A dimensão EUA-China é importante, mas não é a única.

Os EUA, a Europa e o Ocidente (com a Austrália, a Nova Zelândia, o Japão e a Coreia do Sul) ainda são bastante fortes, mas há potências em ascensão, como a China, a Índia e partes dinâmicas da economia global na Ásia. Em cada um destes países e regiões, há forças, fraquezas e o risco de ganhos, tal como o risco de perdas na dimensão económica, financeira, em termos dos seus próprios sistemas políticos, da sua capacidade de projetar poder globalmente. Assim, a força tem muitas dimensões e nada no Mundo é preto e branco. A China tem os seus desafios, que incluem um regime cada vez mais autoritário e um capitalismo de Estado que funcionou durante um tempo, mas que pode não funcionar no futuro. O Ocidente tem todas essas funcionalidades económicas, financeiras e políticas, mas as coisas têm de mudar no Ocidente também.

O autor de Mega-Ameaças inclui nos riscos internos para o Ocidente a emergência de políticos populistas. Todavia, considera as crispações populistas como manifestações de um mal-estar mais generalizado, que tem a ver com o aumento da desigualdade de rendimentos, com a diminuição dos rendimentos das classes médias e das classes trabalhadoras, espremidas nos últimos anos, e com o facto de a geração mais jovem ter um futuro económico mais débil que os seus pais.

Há muitos fenómenos que são preocupações em economias avançadas e em mercados emergentes, sendo alguns deles as alterações climáticas, os efeitos da pandemia de covid-19, o impacto da IA, a aprendizagem automática nos empregos (nos trabalhos braçais e nos serviços). E, atualmente, na dimensão económica, patenteia-se como reação à globalização a inflação crescente e o problema demográfico (com o envelhecimento da população). Ou seja, estes problemas económicos, financeiros, sociais, políticos e geopolíticos geram a reação contra os mercados liberalizados e a ascensão da extrema-direita que se torna mais popular nas economias avançadas e nos mercados emergentes, em sintonia com as preocupações subjacentes de muitas pessoas.

No atinente à guerra nuclear, que dizem ser o maior perigo do Mundo, recorda que, depois de crescer, nos anos 1960 e 1970, na Europa, em Itália, após a détente entre os EUA e a União Soviética e, depois, a China, a ameaça passou a ser muito baixa. A partir da crise dos mísseis de Cuba, havia rivalidade, mas só havia guerras por procuração entre o Ocidente e a União Soviética.

O problema nuclear é que, agora, o risco pode ser maior entre grandes potências, mas também entre potências menores, as que têm armamento nuclear. A guerra da Rússia na Ucrânia é “uma guerra por procuração entre os Estados Unidos, o Ocidente, e a Rússia, que não é apenas sobre a Ucrânia, é também sobre a China e Taiwan”. E pode tornar-se não convencional e estender-se à Organização do Tratado do Atlântico Norte (NATO). Henry Kissinger disse que a III Guerra Mundial podia começar com a Rússia e a Ucrânia. O Irão está a passos de ter a bomba nuclear e Israel tem de estudar os prós e os contras de atacar o Irão. Se o Irão conseguir a bomba dentro de poucos anos, a Arábia Saudita comprará a bomba ao Paquistão, o que faz com que tenham a bomba meia dúzia de países instáveis numa região instável.

Depois, na Ásia, há, entre os EUA e a China, uma guerra fria em relação a Taiwan, que pode vir a aquecer. Uma guerra que comece convencional pode escalar para outra não convencional.

No concernente à IA, Nouriel Roubini pensa que esta inovação fará crescer a produtividade e fará crescer a economia de 1% ou 2%, na Europa, e 4% ou 5%, ou mesmo 6%, nos EUA. É, pois, uma oportunidade. Todavia, comporta o risco de levar a um desemprego tecnológico permanente entre trabalhadores dos serviços braçais. E poderão ser afetados os trabalhos criativos e outros, como os dos economistas e os dos jornalistas, que podem vir a ficar obsoletos em algumas dimensões.

Porque a inovação tecnológica significa capital intensivo, maiores competências e poupança no trabalho, em algum tempo, a IA tornar-nos-á mais produtivos, mas ameaçará, crescentemente, os empregos. Quem dominar a IA, a aprendizagem da máquina e a automação robótica, dominará a interconexão no futuro e tornar-se-á na maior potência geopolítica, militar e de segurança.

Em 2022, o antigo CEO da Google, Eric Schmidt e Henry Kissinger (estratego político americano) escreveram um livro onde dizem que a questão entre os EUA e a China não tem a ver apenas com qual é a parte dominante economicamente, mas também com qual é a potência dominante a nível geopolítico e militar, o qual terá cada vez mais a dimensão cibernética e de IA.

Colocado perante o problema da demografia, o autor de Mega-Ameaças respondeu ao cenário da diminuição da população da China, menor do que a da Índia já neste ano, ao problema demográfico por que passa a Rússia, depois da queda da União Soviética, e ao fenómeno do aumento da população dos EUA, muito mais atrativos do que outras potências para a imigração, mercê do tipo de sociedade e da língua inglesa.

Observando que o número de pessoas é importante, considera que podemos ter muita gente que sem habilitações, sem educação, sem saúde, etc. Podemos aumentar o potencial de crescimento ou não, mas teremos milhões de pessoas ainda muito pobres. Assim, a dimensão da população é só uma medida do potencial para se ser grande potência. A China, que tinha a maior população do Mundo, era muito pobre e, agora, tem tido bom crescimento económico. E, sem crescimento demográfico, podemos ter boa produtividade e crescer na inovação, na tecnologia, no conhecimento e na informação. Ou seja, pode compensar-se a queda demográfica com o aumento da produtividade. A África é um continente com 54 países e com uma população de 1400 milhões de pessoas e, no fim do século, pode chegar aos 2000 milhões, o que não constitui uma boa oportunidade económica (até pode ser um perigo), pois tem falta de habilitações, de educação, de saúde. Portanto, a demografia – que é importante por muitas razões, mas não é a única coisa que importa – “poderá não ser tão importante como outras medidas com força económica”.

À questão de o crescimento demográfico ser uma vantagem para os EUA, pois o país tem capacidade para oferecer educação e produtividade, além de atrair imigrantes, Nouriel Roubini responde que “não é certo que a população dos Estados Unidos não comece também a decrescer, além de que começa a haver também uma reação significativa contra a imigração”. Nesse campo, sublinha, a administração Joe Biden não é muito diferente da de Donald Trump. Não é verdade que os imigrantes estejam a roubar postos de trabalho, como se diz. Porém, em certas zonas dos EUA a reação anti-imigração é muito violenta, embora o que tornou grandes os EUA tenha sido atrair “tanta gente de tantos países, com tantos níveis diferentes de educação e de cultura”.

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Os desafios são muitos e os problemas são complexos, sobretudo quando criados pelos decisores.

2023.02.26 – Louro de Carvalho

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