domingo, 17 de abril de 2016

Evocando o 107.º aniversário de Soeiro Pereira Gomes

Passou, a 14 de abril, o 107.º aniversário do nascimento de Soeiro Pereira Gomes. Porque mudam os tempos, mudam as vontades políticas que enformam os conteúdos do sistema de ensino. Lembro-me de que, ainda em 1977, este escritor neorrealista estava na berra. E o meu exame de Literatura Portuguesa II, na FL da UL, com o inefável professor Urbano Tavares Rodrigues, versou exclusivamente sobre Esteiros, de Soeiro Pereira Gomes. 
Já na ocasião se dizia que esta era a obra-prima do escritor e a mais conseguida, sobretudo comparativamente com Engrenagem, do mesmo autor, dado que esta não chegou a passar pela correção que o autor prometeu, mas que não conseguiu fazer. Por outro lado, o senso de classe revelado pelos cinco meninos que protagonizam Esteiros era incipiente, pouco se distanciando do instinto de classe, muito comparável a Capitães da Areia, de Jorge Amado, do neorrealismo do Brasil. Ao Invés, Engrenagem oferece personagens já com uma quase apurada consciência de classe.
Porém, os cinco meninos, de Esteiros, que trabalhavam, em vez de ir à escola, fazem com que, na verdade, a miséria retratada no romance seja mais do que ficção: é a realidade do país pobre, onde a maioria da população, analfabeta, ia sobrevivendo no dia a dia sem esperança no futuro.
Da janela de quarto, Pereira Gomes como que observava a luta dramática dos operários pela sobrevivência. Entre os adultos, havia muitas crianças em tenra idade escolar, que sucumbiam à exploração do trabalho infantil: recolhiam o barro dos estreitos canais do Tejo (os esteiros), para dele fazerem telha e tijolo; auferiam um salário miserável, que os condenava à mendicidade (de que é exemplo o pedido de pão por Deus a um de novembro), ao roubo e à prostituição infantil.
O narrador, tudo observando da janela de sua casa, refletia sobre a injustiça da sociedade opressora e exploradora, organizada em função dos mais poderosos e ricos. E, através do romance, utilizado como forma de intervenção social e política, denunciava o regime.
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Joaquim Soeiro Pereira Gomes nasceu em 14 de abril de 1909 (um ano antes da implantação da República) em Gestaçô, concelho de Baião, onde passou a infância. Tendo estudado em Coimbra, trabalhou um ano em África como regente agrícola, vindo, depois, a fixar-se em Alhandra como empregado de escritório duma fábrica de cimento. A dureza da reta final da sua vida de funcionário comunista clandestino contribuiu para o seu fim prematuro (morreu de tuberculose em 1949). A publicação do seu primeiro conto O Capataz, denunciador da miséria, foi vetada pela Censura. Além de empregado de escritório, que via a opressão e exploração dos operários e trabalhadores rurais, colaborava em jornais e revistas,  desenvolvia atividades culturais, criava bibliotecas, ensinava ginástica aos filhos dos operários e empenhava-se na construção duma piscina pública. Depois de liderar o movimento grevista da fábrica Cimento Tejo de Alhandra, passou à clandestinidade afastando-se para sempre da mulher, entretanto presa pela PIDE para o obrigar a entregar-se.
O romancista deixa significativa e marcante obra, não tão breve como dizem alguns (exceto pelo breve tempo de produção), que emoldura legado literário mais que suficiente para fazer de Pereira Gomes (1909-1949) um dos nomes maiores do neorrealismo português, como se pode ver:

O Capataz, em 1935, um conto remetido ao semanário O Diabo e cuja publicação a censura cortou; “Crónicas”: As crianças da minha Rua, O meu Vizinho do Lado, Companheiros de um Dia, publicadas em O Diabo, em 1939 e 1940; Pesadelo, conto publicado em 1940; O Pàstiure, publicado, em 26 de outubro de 1940, em O Diabo; Esteiros, romance cuja 1.ª edição é de 1941, com ilustrações de Álvaro Cunhal; Coisas quase inacreditáveis, conto publicado, em 1942, na coletânea “Contos e Poemas”, organizada por Carlos Alberto Lança e Francisco José Tenreiro;

Alguém, crónica publicada, em 1942 no jornal República; Breve história de um sábio, conto publicado, em 1943, no jornal regional O Castanheirense; Engrenagem, um romance, de 1944, inacabado (Soeiro interrompe a escrita ao passar à clandestinidade; escrevendo no rascunho “Para eu corrigir um dia”, o que não chegou a fazer); “Contos Vermelhos”: O Pio dos Mochos (1945), Refúgio Perdido (1948), Mais um Herói (1949); Contos (s/d): Estrada do meu Destino, Um Caso sem Importância; e Última Carta (s/d), crónica, dedicada a Alfredo Dinis (Alex), pensada como parte de um futuro volume, Diário dum Foragido.

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A vida do escritor é atravessada por diversas situações e acontecimentos críticos.
A nível internacional, a I Guerra Mundial, a Revolução de Outubro de 1917, o advento do fascismo italiano, a crise económica que culmina no crack da bolsa de Wall Street, em 1929, a chegada do nazismo ao poder e a guerra civil espanhola marcam profundamente este período.

Em Portugal, acentuam-se as migrações das zonas rurais para a cidade. Muitos tentam a sorte no estrangeiro, sobretudo na América, mas muitos mais acabam por ficar em Lisboa e arredores. A partir de 1920, a emigração para o estrangeiro diminui imenso. E, em 1930, mais de metade da população da capital é oriunda do resto do país. As condições de vida dessa população são muito precárias, sendo frequentes a promiscuidade, o trabalho infantil, a falta de higiene, as carências alimentares e todo o tipo de vícios e abusos.

Entretanto, 1926 oferecera o golpe de Estado a 28 de maio. Salazar assume o poder dois anos depois e, em 1930, pronuncia no Arsenal da Marinha o discurso fundante do Estado Novo. O Ato Colonial, em 1930, as leis do condicionamento industrial, a Constituição de 1933 definem o caminho da ditadura nacional, que vai durar até 1974 sob a marca de Estado Novo. A burguesia industrial e financeira e os grandes proprietários rurais dominam o país. Começam a aparecer as grandes indústrias de grande peso em Vila Franca de Xira, Alhandra e na área da Grande Lisboa, em geral. Existem relevantes concentrações operárias nas margens do Tejo. Em 1936, são criadas a Mocidade Portuguesa, a Legião Portuguesa (desde 1940, Defesa Civil).

Entre 1930 e 1940 a população aumenta 13 %, o maior aumento num decénio até então. Em 1940, cerca de metade da população com mais de dez anos é analfabeta. Um terço do total tem menos de 15 anos. A percentagem da população ativa que trabalha no setor primário (agricultura, pesca e afins) é de mais de 50 %, muito superior ao verificado nos países avançados.

Soeiro Pereira Gomes, nascido numa família rural razoavelmente abastada, não conhece a miséria na sua vida familiar, ao invés do que se chegou a afirmar, provavelmente devido ao impacto causado pela sua obra, sobretudo Esteiros. É o mais velho de seis irmãos. A todos eles é proporcionada a oportunidade de estudar. Uma das irmãs, Alice Gomes, para além de professora e pedagoga, é escritora de reconhecido talento. Outro dos irmãos é o matemático Alfredo Pereira Gomes. Portanto, a dedicação à causa dos explorados é sobretudo fruto da observação solidária.

Os amigos referem que já em Coimbra é amante de literatura. Lá conhece, na festa de formatura, a futura esposa, Manuela Câncio Reis, irmã dum colega de curso. Entretanto, a situação familiar degrada-se do ponto de vista económico. Pretendendo casar-se e não conseguindo obter uma posição profissional compatível com as habilitações, de modo a proporcionar-lhe uma situação desafogada, Soeiro pensa tentar a vida em África. Responde a um anúncio e vai trabalhar para Angola numa companhia que explora o cultivo do açúcar. Contra as suas expectativas, é colocado num armazém. Para além da desilusão com o trabalho e do choque que sofre com o tratamento que vê ser dado aos nativos, vem a contrair paludismo, doença que o vai acompanhar para o resto da vida. E regressa sem meios a Portugal.

Joaquim e Manuela resolvem não adiar mais o casamento. A família da esposa apoia-o e o casal fixa-se em Alhandra. O sogro, Francisco Filipe dos Reis, pessoa muito prestigiada na vila, chefe de escritórios na Fábrica dos Cimentos Tejo, arranja-lhe emprego como escriturário na firma.

Joaquim integra-se rapidamente na vida da vila. Começa a ir ao futebol aos domingos, no Alhandra Sporting Clube. Aí conhece muitos habitantes da terra, incluindo pessoas dos estratos sociais mais modestos. O casal começa a colaborar com o sogro, que participa em numerosas atividades comunitárias, é um amante de teatro com formação musical e participa na vida de coletividades desportivas e artísticas, tendo mesmo chegado a abrir um cinema ao ar livre. Trabalham na preparação de revistas a levar à cena no Teatro Salvador Marques. Manuela torna-se numa compositora de música popular de mérito, chegando as suas músicas a adquirir fama nacional. Joaquim, apesar de não ser amante de teatro, colabora na preparação dos espetáculos e elaboração dos textos. Frequenta as tertúlias lisboetas do Café Portugal e do Chiado. Mais tarde, diz a O Primeiro de Janeiro, em 1943, que sempre ambicionou escrever, mas só em 1935 se abalançou a enviar um conto a um concurso aberto por O Diabo.

Familiarizando-se com os hábitos das crianças e jovens da terra, observa o trabalho infantil nos telhais, pequenas fábricas que utilizavam o barro dos esteiros para fabricar telhas, tijolos e outros artigos. Vê as crianças nadarem nos esteiros e nas charcas, muitas vezes cheios de lodo e de imundícies e onde chegam a ocorrer afogamentos. E é a partir desse ambiente que surge a sua escrita neorrealista e o envolvimento no partido comunista.

Quando morreu em Lisboa, a família decidiu levar o corpo para o jazigo de família, em Espinho. Porém, uma manifestação de solidariedade organizada pelo comité local do PCP fez que o carro funerário fosse desviado da estrada do Norte e percorresse as ruas de Alhandra. Muitos anos depois, ainda ali viviam muitas pessoas que testemunharam o choque que a notícia da sua morte causou na vila e a adesão geral a prestarem-lhe a última homenagem. Apesar do afastamento causado pela perseguição que o levou à clandestinidade, não o tinham esquecido. 

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Não tendo de alinhar com a sua ideologia nem sendo necessária a clandestinidade, importa seguir-lhe o exemplo na atenta observação da realidade e na luta pelas grandes causas, que passa pela tentativa de promover a mudança de mentalidades, atitudes e comportamentos, mudando a pobreza em bem-estar pela satisfação económica, social, cultural e imaterial. Talvez possa começar-se pela releitura da obra.


2016.04.17 – Louro de Carvalho

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