segunda-feira, 4 de abril de 2016

Não está iminente o presidencialismo constitucional

A propósito das ditas inovações do Presidente da República, alguns intervenientes na opinião pública agitam o espantalho do presidencialismo. Não me parece que esse plano esteja na mente de Marcelo, embora não descarte que esse sistema lhe agradasse mais. Por outro lado, o sistema presidencialista teria de ser consagrado em revisão constitucional ou poderia advir de golpe de Estado palaciano. E nem um caminho nem outro se me afigura viável.
Embora o artigo 288.º da nossa CRP (Constituição da República Portuguesa) não o proíba diretamente no âmbito dos limites materiais da revisão, a correlação de forças na AR (Assembleia da República) resultante do sistema de representação proporcional, cuja abolição é proibida nos termos da alínea h), não o torna provável. Acresce que essa quase improbabilidade é ainda sustentada pela exigência estabelecida no n.º 1 do artigo 286.º da CRP: “As alterações da Constituição são aprovadas por maioria de dois terços dos Deputados em efetividade de funções”. Ora, dentro do pluralismo que se tem conseguido na AR, tem sido difícil conseguir a maioria de dois terços dos deputados em efetividade de funções (não basta a maioria de dois terços dos presentes, nem mesmo essa maioria desde que seja a maioria dos deputados em efetividade de funções). A mesma correlação de forças impediria qualquer tentativa de golpe de Estado palaciano. Por seu turno, a UE, apesar de deliberadamente criar problemas enormes ao decurso democrático dos países mais frágeis, viria hipocritamente a acusar o regime de não democrático. Ademais, não se vislumbra – e ainda bem – o aparecimento de uma figura carismática capaz de concitar em torno de si as FA (forças armadas), as forças políticas e a sociedade civil.
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O presidencialismo é o sistema de governação em que o Chefe de Estado, o Presidente, lidera o poder executivo, ou seja, é também o Chefe do Governo. O Presidente, substituído nas suas faltas e impedimentos pelo Vice-Presidente, apresenta-se ao eleitorado com um programa de governo independentemente da correlação de forças que venha estabelecer-se no órgão ou nos órgãos do poder legislativo. E é eleito em sufrágio universal, por voto direto ou por voto indireto através do colégio eleitoral constituído pelos grandes eleitores, por sua vez eleitos para a câmara de representantes, estes sempre eleitos por sufrágio universal e direto.
Se o Presidente for destituído ou falecer, em princípio, não haverá novas eleições porque o Vice-Presidente assume as funções presidenciais, pois fora a votos com o Presidente. 
O poder legislativo e o poder executivo (este é unipessoal, pois os ministros ou secretários de Estado são colaboradores de confiança pessoal e/ou política) são efetivamente separados, sem interferência recíproca. E, em circunstâncias que não sejam de crise aguda, o Presidente não pode dissolver os órgãos do poder legislativo.
Por outro lado, o Governo não depende da confiança do pode legislativo nem responde perante este. O Presidente escolhe livremente os seus colaboradores, que pode exonerar a todo o momento, e a que chama ministros ou secretários de Estado, conforme a nomenclatura consignada na Constituição. Os órgãos do poder legislativo podem ter o direito de, em casos extremos, demitir o executivo em caso de crime de responsabilidade, através do processo de impeachment (destituição), organizado com todas as garantias de defesa e nos demais termos do direito. Todavia, este procedimento é tão raro e excecional que não contradiz o princípio elementar de que o poder legislativo não destitui o executivo. 
Os diversos sistemas presidencialistas observam alguns procedimentos comuns. O chefe do órgão executivo pode vetar atos do poder legislativo e uma maioria de elementos dos órgãos do poder legislativo pode anular o veto. O Presidente tem um mandato por tempo determinado, fixado constitucionalmente, e as eleições presidenciais são realizadas em períodos regulares e não podem ser desencadeadas por votos de confiança ou moções de censura parlamentares.  
Não obstante, os sistemas presidencialistas precisam, não raro, da aprovação legislativa para indicações e opções do executivo, para o poder judiciário e para alguns postos governamentais de níveis inferiores. E ao seu Presidente é possível dirigir superiormente trabalhos dos membros do seu Gabinete, das forças armadas e até de funcionários e empregados e pode indultar ou comutar penas de arguidos condenados, mas não pode apresentar diretrizes a juízes nem os pode demitir. Tem de saber conviver quando a maioria do poder legislativo não for consonante com as opções presidenciais.
Porém, a função de Presidente não é exclusiva do sistema presidencialista. Também o ditador ou líder de Estados unipartidários pode ser denominado de presidente, tenha ou não sido popularmente eleito ou legitimado. E as repúblicas parlamentares têm o seu presidente, que exerce funções simbólicas, formais e de representação. O título é também usado em repúblicas parlamentaristas cujo sistema prevê uma presidência executiva, bem como nos regimes semipresidenciais. 
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Ao presidencialismo contrapõe-se o parlamentarismo, sistema parlamentarista ou sistema parlamentar. Este sistema de governação é definido pela concentração do poder no Parlamento bicamaral ou monocamaral. O Governo, enquanto órgão do poder executivo, emana do poder legislativo cujos órgãos resultam do voto popular universal e direto (se bem que a câmara alta ou senado possa não resultar do voto universal). Além disso, o poder executivo responde perante o poder legislativo. Caso o Governo não execute as determinações do poder legislativo, a maioria dos deputados destituirá o Governo. Por seu turno, a Justiça não se opõe ao Parlamento, até porque num sistema parlamentarista puro a Constituição não é rígida e, se uma lei for considerada inconstitucional, o Parlamento pode, assumindo poderes constituintes, alterar a Constituição.
As principais funções parlamentares são desempenhadas em plenitude por uma casa legislativa denominada, por exemplo, de Câmara dos Deputados, Assembleia Nacional, Câmara dos Comuns ou Parlamento. E, nalguns regimes, as principais leis são submetidas a uma câmara alta ou senado e algumas decisões são tomadas em sessão conjunta das duas câmaras, que podem em conjunto ser designadas por Congresso ou mesmo Parlamento.
Em suma, as caraterísticas do parlamentarismo podem sistematizar-se nos seguintes itens: divisão orgânica dos poderes (legislativo, executivo e judiciário); repartição de funções da Chefia de Estado e da Chefia de Governo; interdependência entre o executivo e o legislativo, sendo que o executivo espelha a maioria parlamentar; governo dirigido por um chanceler ou primeiro-ministro, a quem são atribuídas as funções de Chefe do Governo; queda do Governo por voto de censura ou por falta de voto de confiança do Parlamento; dissolução do Parlamento por injunção do Presidente, com a subsequente convocação de eleições gerais; autonomia do Banco Central; profissionalização da burocracia; e estabilidade da política monetária e cambial.
O parlamentarismo pode se apresentar de duas formas:
- Na república constitucional parlamentar, o Presidente ou chefe de Estado não tem usualmente reais poderes executivos. O Presidente da República pode ser eleito diretamente pelo povo ou pelo Parlamento, por tempo determinado. Quem governa de facto, ou seja, com poderes executivos, é o chefe de governo.
- Nas monarquias parlamentaristas, o Chefe de Estado é o monarca (duque, príncipe, rei ou imperador), que assume o poder por via hereditária, não possuindo poderes executivos. O chefe de governo (que efetivamente governa) é um primeiro-ministro, também designado por chanceler, que é escolhido pelo Parlamento.
Em ambos os casos, os parlamentares, titulares do poder legislativo, são escolhidos pelo povo através de eleições diretas.
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O semipresidencialismo é o sistema de governação em que o chefe de governo, geralmente designado por primeiro-ministro, e o Chefe de Estado, geralmente designado por Presidente da República, compartilham o poder executivo, participando ambos do essencial do quotidiano da administração do Estado. Difere do parlamentarismo por dispor de um Chefe de Estado não eleito exclusivamente pelo Parlamento, mas geralmente por voto universal e direto, e a quem são atribuídas prerrogativas que o tornam mais do que simples figura protocolar, simbólica e representativa; e difere do presidencialismo por ter um chefe de governo que, embora nomeado pelo Chefe de Estado, emana do Parlamento, perante quem responde.
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O sistema constitucional português consagra o semipresidencialismo, sendo que, na prática, ora sobressai mais a componente parlamentar, ora a presidencial, mas sem se excluírem.
Assim, o Presidente é eleito periodicamente por sufrágio universal e direto para um mandato de 5 anos, podendo recandidatar-se para um mandato seguinte; o parlamento é eleito também por sufrágio universal e direto para um mandato de quatro anos, não havendo limitação de mandatos, mas o Parlamento tem de garantir a representação proporcional. O Presidente só pode ser destituído excecionalmente em caso de se ausentar sem assentimento do Parlamento, mas pode renunciar livremente ao cargo através de mensagem endereçada ao Parlamento, que não carece de anuência. O Parlamento pode ser dissolvido por iniciativa do Chefe de Estado, ouvido o Conselho de Estado, com a subsequente convocação de eleições gerais, exceto nos últimos seis meses do mandato presidencial e nos seis meses subsequentes às eleições legislativas.
É o Presidente quem nomeia o primeiro-ministro, mas depois de ouvir os partidos com assento parlamentar e tendo em conta os resultados eleitorais. Embora não estejam excluídos governos de iniciativa presidencial, estes, aliás como os demais, têm de sujeitar o programa de governo à apreciação do Parlamento, que o pode rejeitar através da aprovação de moção de rejeição.
O governo responde perante o Parlamento e este pode demiti-lo aprovando uma moção de censura ou recusando a aprovação de uma moção de confiança. Por outro lado, o primeiro-ministro deve manter informado o Presidente sobre o desenvolvimento da ação governativa.
O Presidente nomeia o primeiro-ministro, mas não escolhe os ministros e secretários de Estado, e só pode demitir o chefe do governo quando estiver em causa o regular funcionamento das instituições democráticas. E pode vetar diplomas do Parlamento, que este pode confirmar, e diplomas do Governo, que esse não pode confirmar, a não ser através de proposta de lei ao Parlamento. E pode, em caso de dúvida, o Presidente submeter à apreciação do Tribunal Constitucional a fiscalização abstrata (prévia ou sucessiva) da constitucionalidade dos diplomas legais.
Ademais, o Presidente tem o direito de designar elementos para vários órgãos políticos, pode presidir ao conselho de ministros, quando o chefe do governo lho solicitar, e é o comandante supremo das forças armadas. E o Parlamento não pode assumir poderes constituintes ao seu bel-prazer, mas cinco anos após a mais recente revisão ou quando quatro quintos dos deputados em efetividade de funções tomarem essa iniciativa.
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Como se pode ver, o semipresidencialismo está constitucionalmente blindado. Tal não significa que o Presidente não possa dispor de amplos poderes formais e muitos poderes informais, sobressaindo destes a magistratura de influência, muito mais poderosa do que a de qualquer outro interveniente político. E não vale a pena pensar no Conselho de Estado como sucedâneo do senado, já que órgão político de consulta do Presidente não tem qualquer interferência em matéria legislativa nem executiva e administrativa.
Além disso, a primavera marcelista pode não ter frutos de verão, mas apenas folhas cadentes de outono.

2016.04.04 – Louro de Carvalho

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