segunda-feira, 14 de julho de 2014

O papel cultural dos mosteiros

A leitura da homilia do bispo do Porto na Celebração Eucarística da festa de São Bento, a 11 de julho, no Mosteiro Beneditino de Singeverga, em Santo Tirso, suscita-me uma reflexão sobre o papel cultural dos mosteiros. O prelado diocesano, ao abarcar os conteúdos das leituras bíblicas que enformam a Liturgia da Palavra, releva a espiritualidade beneditina enquanto correspondente a um caminho de Igreja. Mas não esquece o papel cultural do mosteiro quando salienta a importância da regra de São Bento, a integração dos “valores do humanismo pagão numa nova síntese cristã”, e quando chama a atenção para a necessidade de conhecer este monge fundador. 
Sobre a regra, Dom António explicita:
“O êxito da Regra de S. Bento deve-se à sua forma criativa de harmonizar o ideal anacoreta da ascese, solidão e oração, expressão da procura apaixonada de Deus, com o ideal de comunhão, fraternidade e ajuda recíproca, que é sempre o necessário e o mais perfeito caminho para Deus”.
No atinente ao papel cultural do mosteiro, exprime-se nos termos seguintes:
Lado a lado com a vida espiritual, os mosteiros tornaram-se centros de irradiação cultural, integrando os valores do humanismo pagão numa nova síntese cristã e foram simultaneamente escolas de artes e ofícios. Assim se foi delineando uma nova cultura europeia inspirada nos valores da Regra de S. Bento e na espiritualidade beneditina, que encontra no lema ora et labora a sua síntese mais perfeita e programática.”.
E, quanto à necessidade de hoje se conhecer São Bento, patriarca do monaquismo ocidental e patrono da Europa:
“A Igreja precisa de celebrar S. Bento e o Mundo precisa de o conhecer! A Igreja e o Mundo encontrarão sempre em S. Bento um farol a iluminar o caminho da história da Humanidade!”.
Se, como afirma Hugo Lopes, a tarefa do homem medievo de “construir um edifício” de saber, a partir da herança escrita que lhe chegou, tem paralelo com a construção das bases de dados de informação e de conhecimento que se está a gerar com o surgimento das hodiernas tecnologias da informação e comunicação, é necessário dar especial atenção o papel cultural do mosteiro ao tempo e perceber se esse papel ainda pode ter lugar no hoje dos séculos das tecnologias.
Os mosteiros medievais foram efetivamente espaços de recolha, depósito, desenvolvimento e difusão do saber medieval, pelo que surgem como evidências fundamentais da constituição de um sistema unificante e diversificado do saber (nas suas dimensões de “saber”, “saber ser e estar”, “saber fazer” e “saber ensinar/aprender”). O seu papel na reconfiguração do território, a expansão e significado das suas fundações na rede geográfica europeia são consensualmente reconhecidos, quer no domínio teórico quer na realização prática quer na passagem quase mecânica do documento escrito a material mais consistente e naturalmente mais duradouro. Este seu papel ficou mais diluído na época moderna com a invenção da imprensa e contemporaneamente com os sucessivos inventos na área dos transportes, das comunicações e, sobretudo, no tempo da digitalização e da comunicação digital e da comunicação em rede.
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É crucial o papel dos monges no desenvolvimento civilizacional da Europa, não o dos alvores do monaquismo, mas o do monaquismo que se começou a aperceber de que o velho Continente vinha a perder-se na degradação moral e social, na astenia política, no esvaziamento cultural e na onda avassaladora do vandalismo.
As primitivas formas de vida monástica, no seio do cristianismo, consistem na existência de mulheres que se consagravam a Deus numa vida de oração e sacrifício, de assistência aos doentes e de solicitude pelos pobres – e a que a Igreja dedicava especial apreço, já que constituíam uma espécie de floração na arquitetura eclesial e na intensificação do labor apostólico. Por outro lado, outra experiência fundacional de monaquismo foi a de São Paulo de Tebas e a de Santo Antão do Deserto ou do Egito, cujas vidas decorreram no final do século III e na primeira metade do século IV. Tornados eremitas, no que foram seguidos por muitos, para fugirem do mundo e se concentrarem na vida espiritual, viviam isolados ou em grupos de dois ou três e alimentavam-se de nada ou da pobreza alimentar que iam encontrando.
Em reação à vida eremítica e na convicção de que o homem deve viver em comunidade, surgiu o cenobitismo, com São Basílio Magno, o qual, com o seu saber e ação, deu notável incremento ao monaquismo oriental.
Apesar da influência no Ocidente da vivência religiosa oriental, é em São Bento de Núrsia (fins do século V e primeira metade do século VI) que radica o modelo sustentável do monaquismo ocidental, que, embora com base na regra original, passou por diversas reformas e vicissitudes até aos nossos dias. Embora, o monge se recolhesse ao mosteiro para o cultivo de uma vida espiritual mais exigente e disciplinada, a regra orientava para um estilo pautado por uma perspetiva de síntese entre a vida de relação com Deus, com os irmãos de regra e com o mundo das pessoas e das coisas.
Sob a égide do sapiente lema ora et labora, cada mosteiro tem um triplo estatuto: independência, autossuficiência e abertura ao meio físico e social. E, se bem que os mosteiros, a princípio, não almejassem a promoção de significativas atividades de natureza civilizacional e cultural, cedo, porém, se aperceberam da missão temporal de que os tempos os estavam a encarregar e a interiorizaram. Tanto assim foi que os mosteiros, afirmando-se como genuínos e privilegiados oásis de espiritualidade e ação (material e cultural), igualdade na diferença, ordem e paz, proliferaram por toda a Europa e atraíram pessoas de todos os estratos étnicos e sociais, incluindo o Carlomano dos francos e o Rochis dos lombardos.
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Muitos, ao sublinharem o contributo estritamente cultural, esquecem o grande trabalho de promoção da agricultura decorrente da ação enérgica, persistente e inovadora das comunidades monasteriais, as quais, instalando-se em sítio habitualmente recolhido, por vezes inóspito, o transformavam em unidade de intensa, vasta e variada produção agrícola. Com os monges, os populares conseguiam forma de sustento pelo trabalho, aprendizagem de novas técnicas e ordenamento do espaço – agrário, pecuário, piscícola e florestal – e incentivo a mais extensivos arroteamentos do solo.
Era o contributo das artes práticas em ação a estender-se e a consolidar-se em prol da causa civilizacional. Os monges salvaram a agricultura, praticando-a e levando-a a praticar em condições de inovação e intensificação: convertiam o deserto em terreno cultivado, secavam pântanos e desmatavam florestas. Não podemos esquecer que esta era uma modalidade de “cultura” (cuja semântica sobrevive em termos como agricultura, silvicultura, floricultura, suinicultura…), embora acessível ao comum dos mortais, dado que requeria aprendizagem, atenção aos sinais do tempo atmosférico e exercício ajustado. Entre as práticas inovadoras, regista-se a drenagem de charcos e terrenos demasiado esponjosos, a construção de diques e barragens nos rios, a reorientação das linhas de água (evitando a erosão ou a saturação e possibilitando a fertilidade de mais solos), a canalização de águas, a diversidade de culturas, mesmo novas na região em que se instalavam (em consonância com as apetências do solo e as necessidades da comunidade), a melhoria das raças de gado, a apicultura, o fabrico de cerveja e de queijo, os viveiros e a replantação de árvores para compensar algumas das manchas florestais abatidas.
Ademais, ainda neste campo, os mosteiros foram pioneiros na vinificação para uso corrente, expressamente autorizado na Regra, e utilização na Missa. Foram eles que inventaram a forma de fabrico do vinho espumante, cujos princípios fundamentais, estabelecidos por Dom Pérignon, monge encarregado da adega da Abadia de São Pedro em Hautvilliers-sur-le Marne, em 1688, ainda hoje são aplicados à manufatura do champanhe (cf Woods Jr, 2009).
Os cistercienses, ramo reformista da Ordem Beneditina (estabelecida em 1098 em Citeaux), segundo Woods Jr (op cit), são especialmente famosos pela sofisticação dos instrumentos tecnológicos, os quais, graças à vasta e funcional rede de comunicação estabelecida entre os diversos mosteiros, se difundiam muito rapidamente, logo que descobertos. Assim, se encontra o mesmo tipo de exploração e abastecimento de água em diversos mosteiros, não importando a distância que mediasse entre eles. O mosteiro cisterciense de Claraval, no século XII, regista a difusão das máquinas de propulsão de água, que se generalizaram na Europa, mercê da influência monástica. Por seu turno, cada mosteiro cisterciense tinha uma fábrica, e “os monges utilizavam a energia hidráulica para moer o trigo, peneirar a farinha, pisoar os tecidos e curtir” as peles (op cit).
Também as competências metalúrgicas foram marca dos cistercienses, que volta e meia recebiam oferta de depósitos de minério de ferro, acompanhados das forjas necessárias para a extração e transformação; negociavam a venda dos excedentes; e aplicavam as escórias como fertilizantes.
Tiveram lugar no seio dos mosteiros as primeiras experiências de planação aérea, o fabrico dos primeiros relógios sofisticados, os estudos de trigonometria no Ocidente e o pioneirismo das máquinas que antecipariam a revolução industrial (sobretudo do lado do ferro fundido), se Henrique VIII não tivesse abolido os mosteiros no seu reino (cf McDonnell, apud Woods Jr, op cit). Não é por acaso que os monges eram “os conselheiros técnicos, competentes e não remunerados, do Terceiro Mundo daquela época – que o mesmo é dizer, da Europa na sequência da invasão dos bárbaros” (Gimpel, apud Woods Jr, op cit).
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Porém, é notável o trabalho dos monges na vertente cultural, como ela vem sendo entendida no seu sentido estrito. Costuma mencionar-se o trabalho de cópia dos escritos da antiguidade clássica, mormente dos escritores latinos, a multiplicidade das cópias dos escritos bíblicos, sem o que que se teria perdido, na confusão instalada pelas sucessivas ondas da barbárie histórica, a maior parte do património científico, tecnológico, filológico, filosófico e literário – à semelhança do que sucedera, outrora, com o declínio da civilização micénica por força da invasão dórica. Mas não pode olvidar-se, a coberto da presumível incultura de alguns copistas, que alegadamente realizavam um trabalho mecânico, a dureza e a minuciosidade do trabalho de cópia, bem como o trabalho de arte com que os monges emolduravam alguns dos textos, nomeadamente os textos bíblicos, litúrgicos e hagiológicos. Quem é que nunca contemplou a beleza e o pormenor de algumas das muitas iluminuras medievais?
Por outro lado, os mosteiros criavam escolas para os monges (onde, além da lógica e da teologia, das várias ciências e das artes, se ensinavam as línguas e literaturas latina, grega, hebraica e árabe), sobretudo para os que viriam a ingressar na clerezia, mas também para os leigos que se disponibilizavam a aprender. Alguns monges eram mesmo convidados para precetores de filhos de gente de elevada condição. E proliferavam as bibliotecas monacais, cujo património aumentava a olhos vistos.
Como fautores desta atividade, contam-se: o senador romano reformado Cassiodoro, que fundou o mosteiro de Vivarium, que dotou de excelente biblioteca, ora integrada na Biblioteca Lateranense; o teólogo poliglota Alcuíno, que juntamente com Carlos Magno muito contribuiu para o restabelecimento do estudo e da investigação na Europa Ocidental e Central (o dito renascimento carolíngio); Desidério, o mais importante dos abades de Monte Cassino, logo a seguir a São Bento; Santo Anselmo e Gerberto de Aurillac; os monges de São Benigno e de São Gall; e, a partir do século XI, o próprio mosteiro-mãe da Ordem Beneditina, no Monte Cassino.
Os monges não se limitavam, pois, a preservar a literacia. Estudavam também as canções dos poetas pagãos e os cantares cristãos, bem como os escritos dos hagiógrafos, historiadores, geógrafos e pensadores. Seus mosteiros e escolas iam-se desenvolvendo e afirmando como centros de vida religiosa e de instrução. Mas não se lhes afigurou suficiente a criação de escolas, em que se podiam dedicar ao ensino; foram também eles que prepararam o terreno e lançaram os fundamentos para a criação das universidades, cuja direção veio a ser assumida por religiosos de convento, em concreto e em especial os dominicanos, pelo menos até à criação e consolidação da Companhia de Jesus.
Foram os monges os artesãos, os tecnólogos, os pensadores, os filósofos do seu tempo, moldando o pensamento político e religioso da época. Foram eles que estabeleceram as pontes entre a civilização e cultura antigas e a Idade Média e entre esta e o mundo da modernidade. É junto deles que ainda hoje vale a pena haurir inspiração para o ordenamento dos espaços, a matriz da estrutura urbana, a policultura ajustada às apetências e necessidades, a veia artística, a construção engenhosa e a verdadeira dimensão do humano em diálogo com o divino. Foi com eles e na sua esteira que outros religiosos e religiosas incrementaram, a par da espiritualidade segundo o carisma de cada instituto, o desígnio da ação e da cultura.
Honra, pois, ao mosteiro como arquétipo de organização e centro de aprofundamento, diversificação e irradiação; honra aos seus servidores e beneficiários, simples ou ilustres!

Referências
Almeida, C. A. F. (2001). História da Arte em Portugal - O Românico. Lisboa: Editorial Presença.
Lauand, L. J. – Org. (1998). Cultura e Educação na Idade Média. Organização dos originais de Mónica Stahel. São Paulo: Livraria Martins Fontes Editora, Lda.
Lopes, Hugo (s/d) Os mosteiros medievais como edifícios de sabe. [Em linha]. http://www.ipv.pt/millenium/millenium27/20.htm. Ac.2014.07.12.
Saraiva, A. J. (1988). O Crepúsculo da Idade Média em Portugal. Lisboa: Gradiva.

Woods JR, Thomas (2009). O que a civilização ocidental deve à Igreja Católica. Lisboa: Alêtheia Editores.

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