Ainda no dia 22 de julho, a
Comunicação Social dava conta de que o acervo do arquiteto Siza Vieira poderia
sair de Portugal e ser depositado no Canadá, na sequência da “falta de atenção”
que o artista vem sentindo em relação a alguns dos seus projetos.
Embora sem confirmação, aventava-se
a hipótese, dada quase como certa, de o Centro Canadiano de Arquitetura, em
Montreal, no Canadá, poder vir a receber o arquivo do Prémio Pritzker Álvaro
Siza Vieira, correspondente a mais de 60 anos de trabalho.
Na origem das diligências
conducentes à realização daquela hipótese (o Jornal Digital chama-lhes “indagação”), como corolário de
negociações entabuladas pelo arquiteto português com instituições de renome de
diversos países, está a alegada “falta de atenção” que o panorama artístico
nacional tem demonstrado pelo seu arquivo, nomeadamente a Casa da Arquitetura, em Matosinhos, pensada para acolher o acervo
de arquitetos do Norte, mas que ficou em suspenso.
Em reação quase imediata à
informação, o Secretário de Estado da Cultura, Jorge Barreto Xavier, assegura –
crê-se que em nome do Estado – que o trabalho de Siza Vieira é um “tesouro
vivo” e que merece “todo o respeito e atenção”. Bonita declaração, se inserida
num curso de retórica, com o qual não se pugne pela eficácia, ou de oratória
para alimento da sensibilidade de líricos ou entretém de incautos e/ou
distraídos.
Porém, o dia 23 de julho, segundo
a agência Lusa e os periódicos que
dela colhem informação, regista com notável agrado que o famoso arquiteto
anunciou a decisão relativa ao seu acervo, tendo optado por doar uma parte a
duas instituições portuguesas, a Fundação Calouste Gulbenkian e a Fundação de
Serralves, e outra ao Centro Canadiano de Arquitetura.
Álvaro Siza, designação por que
assina muitas das suas peças, esclarece as suas intenções num comunicado à
predita agência Lusa: “É meu desejo
que o trabalho de tantos anos seja de algum modo útil, como contribuição para o
estudo e debate sobre a arquitetura, particularmente em Portugal, numa
perspetiva oposta ao isolamento, (como já hoje sucede e é imprescindível)”.
A razão da opção por doar uma
parte do acervo àquelas instituições portuguesas tem a ver com a “experiência,
qualidade e capacidade para desenvolver ou alargar os respetivos arquivos
(Fundação Gulbenkian e Fundação de Serralves), numa perspetiva de abertura à
consulta, divulgação e participação num debate que já não é simplesmente nacional,
nem centrado no individual”.
A outra opção de Siza Vieira, ou
seja, a de doar outra parte ao Centro Canadiano de Arquitetura (CCA) em
Montreal é justificada por se tratar de uma “instituição de experiência e
prestígio ímpares e com intensa e contínua atividade”, um centro que é “reconhecido
pela sua experiência na preservação e apresentação de arquivos internacionais”.
Esta decisão do prémio Pritzker 1992
foi conhecida hoje, e contraria a perspetivada na semana passada pela revista Visão e pelo jornal Público, segundo a qual o arquivo de Siza Vieira poderia ir para o
Centro Canadiano de Arquitetura, em Montreal, o que gerou uma onda de reações da
parte de agentes ligados à política e à cultura. A notícia de que o arquiteto
estaria a negociar a transferência do seu arquivo com aquela instituição
canadiana, e também com outras instituições portuguesas, motivara justa
apreensão nos meios nacionais da arquitetura. Se era inquestionável o direito
que o arquiteto do Museu de Serralves tem de dispor, como bem entender, dos
testemunhos do seu trabalho, havia também a preocupação de que o seu arquivo
saísse de Portugal, um país em que os espólios culturais e artísticos não se
podem dizer abundantes, muito menos excessivos.
***
Do lado da política, veio à liça
o próprio secretário-geral do PS, António José Seguro, que, no pressuposto de
que “o arquiteto é património de Portugal”, manifestou, no passado dia 18, em
Gondomar, enorme preocupação com a possibilidade de o espólio de Siza Vieira
sair de Portugal, alvitrando, para evitar essa saída, a movimentação de todas
as disponibilidades entre Governo e autarquias. Entretanto, confessa ter ficado
contente por ouvir o autarca-mor de Gondomar dizer que tem espaço no concelho
para que parte desse espólio possa ficar no nosso país, designadamente o
pavilhão multiusos – que foi, aliás, obra de Siza Vieira – que tem espaço disponibilizável
e é, portanto, fautor de uma hipótese de solução.
“Não podemos é cruzar os braços” –
o líder do PS foi peremptório – “quando há uma notícia a dizer que o espólio
pode sair do nosso país e ir para o Canadá".
No mesmo sentido se manifestou,
no mesmo dia, a Federação Distrital do Porto do Partido Socialista, que
considera a hipotética perda do arquivo de Siza uma informação arrepiante para
o nosso património coletivo” e não compreende como pode o Governo permitir “a
saída de um património que é de todos” e, “por inação, inabilidade ou omissão
assistir a um processo de alienação de parte da nossa identidade”.
Por outro lado, esta estrutura
socialista compreende ainda que, “isoladamente, a Câmara de Matosinhos terá
muitas dificuldades em conseguir levar para a frente o desafio da construção da
Casa da Arquitetura”, mas não deixa de lembrar que a salvaguarda dos acervos de
Siza e de outros arquitetos de obra renomada, como Eduardo Souto de Moura, “é
um assunto de relevância nacional”.
Do lado das artes e da cultura,
regista-se a posição do mencionado arquiteto Souto Moura, nos termos seguintes:
Eduardo Souto de Moura, o outro
Prémio Pritzker da arquitetura portuguesa, colaborador e amigo de Álvaro Siza,
confessa que se trata de um processo longo e que no início se insurgiu contra a
possibilidade da saída do arquivo de Siza: “Há um lado patriótico e romântico e
perguntei mesmo ao Siza como é que tinha coragem de mandar as coisas para fora.
Tentámos vários sítios em Portugal sem ele saber, depósitos, arquivos, mas
depois de muitas tentativas e de muita conversa, reuniões e telefonemas, ainda
não aconteceu nada de concreto.”
Souto Moura aventou a hipótese de
o arquivo seguir para o Canadá, mas as peças ficarem depositadas em Portugal,
através de protocolo com Serralves ou com Gulbenkian, entidades interessadas.
Mas a crassa falta de dinheiro poderá ser o grande óbice.
E fornece indicações preciosas,
quando explica: “Isto não é só guardar, porque há muitos arquivos, do
Athouguia, do Távora, do Teotónio Pereira, mas depois não acontece nada. Por
muito que me custe, estas instituições [como o Centro Canadiano de Arquitetura]
têm regras, têm um protocolo: primeiro tratam os documentos, limpam-nos,
arquivam-nos e depois divulgam-nos através de exposições.”
Já o destino do seu próprio
arquivo, a longo prazo – Souto Moura é autor do Estádio Municipal de Braga e da Casa
das Histórias em Cascais, ainda não preocupa o arquiteto. Pensa no que está
a fazer no presente. Mas vai adiantando que, em princípio, preferia que ficasse
cá o seu arquivo. Por outro lado, manifesta algumas apreensões, pois o tratamento
dado no estrangeiro às peças é totalmente diferente do dispensado em Portugal.
Recentemente, mandou 40 croquis e
umas maquetas para o Centro Pompidou de
Paris, “porque eles insistiram muito” e, passados 15 dias, estavam expostos
na galeria superior das novas aquisições; porém, tem um arquivo na Câmara de
Matosinhos a apodrecer e a sua exposição do CCB está cheia de bolor.
E percebe a opção do Siza,
assegurando que alguém trate da sua memória. Reconhece que, “enquanto não
houver uma Casa da Arquitetura com meia dúzia de arquivistas, uma instituição
segura e firme”, não vê uma solução eficiente, estável e credível: “Portugal,
praticamente, não tem nada de importante. A não ser futebol e atletismo. Os outros
dizem que a nossa arquitetura é importante.”
***
Siza agora parece ter optado por
contentar a todos, escolhendo, entre nós, depositar partes do acervo em
Serralves e na Gulbenkian, mas também fazendo-o representar no CCA, naquela que
é uma das grandes instituições internacionais no campo da arquitetura.
Na sequência de conversações
oportunamente levadas a cabo, o CCA estará disponível para colaborar com a
Fundação Gulbenkian e com a Fundação de Serralves na catalogação consistente do
material e na partilha da pesquisa e programação relacionadas. No já mencionado
comunicado enviado à Lusa, o
arquiteto explica que o CCA vai tratar de “uma grande parte” do arquivo, onde
ficará “acessível, em conjunto com o trabalho de outros arquitetos modernos e
contemporâneos”. É a exposição internacional (mundial) de peças da arquitetura
portuguesa.
Por seu turno, o vereador da
Cultura da Câmara Municipal do Porto, Paulo Cunha e Silva, manifestou a Siza
Vieira a intenção de instalar uma galeria de exposição sobre a arquitetura da
cidade, constituída em particular por maquetas. “Comuniquei-lhe o meu apoio a
esse propósito, considerando a relevância do projeto para pública informação e
debate sobre a arquitetura”, enfatizou. Será a partir das duas instituições
portuguesas acima indicadas e da autarquia portuense que os portugueses, os
turistas estrangeiros e as escolas (nomeadamente as que ministrem ensino
profissional) acederão a valiosos espécimes de catálogos, esquissos e relíquias
das artes figurativas portuguesas e/ou de portugueses e de residentes em
Portugal
O arquiteto premiado, de larga
nomeada, esclarece que nos últimos tempos sentiu a necessidade de organizar o
arquivo do seu trabalho, tentando encontrar “uma solução que considerasse
fundamentada” e verificando “existir um interesse evidente, por parte de
pessoas e instituições”.
Não é a primeira vez que
instituições internacionais têm revelado apetência pelas peças do insigne
arquiteto, como ele próprio lembra: “Desenhos e maquetas do meu arquivo
encontram-se já, alguns desde há anos, em Paris (Beaubourg), em Nova Iorque
(MOMA) e em Londres (Niall Hobhouse Collection), nos respetivos arquivos de
arquitetura”.
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