Ninguém levanta sobre a Rainha Santa a questão da nacionalidade
como para o caso de António, o santo de Pádua ou o santo de Lisboa. A aura
popular que a emoldura, afaga a cidade de Estremoz, onde se finou; fica no
património imaterial da Humanidade com o fado “Rainha Santa”, de Alfredo
Marceneiro; e brilha no máximo do seu expoente na cidade de Coimbra. Nesta
cidade do Mondego, onde terá vivido considerável espaço de tempo e que a elegeu
como padroeira, recebe as maiores homenagens devocionais e o preito oficial com
a guarda do feriado municipal, a 4 de julho, dia da celebração litúrgica da sua
memória, e esplendorosas festas de dois em dois anos. Quem vem de longe a
visitar a lusa Atenas não deixa de notar o singular carinho dos conimbricenses
por vulto tão insigne na santidade: o anjo de bondade, o apóstolo da paz que o
Senhor enviara para o reino de Portugal.
***
Isabel de Aragão nasceu no ano de
1271 (segundo alguns no ano de 1269), no Paço de Aljaferia, cidade de Saragoça,
à época capital do reino de Aragão (não é, assim, portuguesa de nascença). Filha
mais velha de Pedro III, o Grande, rei de Aragão, e de D. Constância de
Navarra, antes Constância de Hohenstauffen, princesa da Sicília, teve cinco irmãos, entre os quais Afonso III e Jaime
II, reis aragoneses, e Frederico II, rei da Sicília.
Por via materna,
era descendente de Frederico II, Sacro Imperador Romano-Germânico, pois o seu
avô materno era Manfredo de Hohenstauffen,
rei da Sicília, filho de Frederico II. Precedeu-a
em nobreza e santidade sua tia-avó, Isabel da Hungria, também considerada santa pela Igreja
Católica, de quem herdou, além do nome, os mais excelentes predicados.
D. Isabel, dotada de uma enorme
beleza, atraía as atenções de muitos príncipes, que se apresentavam ao pai como
pretendentes à mão da infanta, mas os progenitores escolheram o mais próximo e
mais prendado de todos, D. Dinis, herdeiro do trono de Portugal, após a sua
novel subida ao trono. E, assim, em 1282, ficou noiva, com a celebração do
contrato matrimonial por procuração na catedral de Barcelona, pelo que, já
rainha consorte, vem para Portugal a celebrar o casamento com o culto rei
“Lavrador”, sendo as bodas nupciais celebradas com pompa e circunstância na vila
beirã de Trancoso, entre 24 e 26 de junho desse mesmo ano, por ocasião,
conforme seu desejo, da solenidade litúrgica de Santa Isabel, a mãe do Batista,
precursor do Messias. Estabelecendo-se em Coimbra, passou a acompanhar o real marido
nas suas deslocações pelo País, conquistando a simpatia generalizada do povo.
Do seu casamento nasceram dois
filhos: D. Constância (futura Rainha de Castela) e D. Afonso (herdeiro do trono
de Portugal). Porém, o rei tinha inúmeras aventuras extraconjugais, das quais
D. Isabel sempre lhe perdoava, criando também com extremoso desvelo os filhos
ilegítimos de D. Dinis.
Reza o imaginário popular que,
sabendo a rainha das suas clandestinas visitas noturnas ao mosteiro que ele fundara
nas proximidades de Lisboa, o surpreendera numa das suas saídas do Paço, acompanhada
de suas aias que empunhavam luminárias e lhe disse: “Ide vê-las, que nós
ficamos a alumiar”. E populares que de longe observaram a constelação de
luminárias, terão exclamado: “Que luz!”. E outros, de mais aguda esperteza,
terão explicado: “de Velas”. Daí, a etimologia (meramente popular e espúria) de
“Odivelas”, “Lumiar”, “Queluz” e “Belas” (não sendo, assim, a região do Porto a
única a trocar o “v” pelo “b”).
Dama repleta de devoção, bondade
e humildade, buscou sempre a reconciliação e a paz entre as pessoas, as famílias
e as nações. Costumava dizer: “Deus
tornou-me rainha para me dar meios de fazer esmolas”. Pelas suas qualidades
de mãe e rainha – bondosa e decidida, corajosa e firme, tolerante e
pacificadora – foi amada com paixão
pelos súbditos, consistindo o segredo da sua peculiar modéstia e generosidade a
devoção, acima de tudo, ao Crucificado e à Conceição Imaculada de Maria. Esta via
devocional levou-a à prática da vida cristã nas duas vertentes fundamentais –
oração intensa e obras de misericórdia, bem como à consecução da necessária robustez
espiritual para enfrentar infortúnios, dificuldades e desavenças familiares ou
de Estado.
Após o falecimento de seu marido,
em 1325, D. Isabel repartiu o remanescente de seus bens pelos pobres (sem
qualquer prejuízo para familiares ou para o Reino), recolheu-se ao Convento de
Santa Clara-a-Velha, em Coimbra, onde fixou residência e passou a envergar o
hábito da Ordem das Clarissas (não emitindo formalmente os votos das
religiosas), no regime e estilo de ordem terceira do ramo franciscano.
Em Junho de 1336, com 65 anos de
idade, parte para Estremoz, com o intento de conversar com o filho, Afonso IV,
que entrara em conflito com o genro, Pedro I, de Castela, em razão dos maus
tratos que infligia à esposa D. Maria, filha de Afonso IV, de que se previa
eclodir nova guerra. Porém, ao chegar ao Castelo de Estremoz, é obrigada a
recolher-se no seu leito, cansada e cheia de febre. Morre dias depois, a 4 de
julho. Em conformidade com o disposto testamentariamente por si de desejo de
haver sepultura no Mosteiro de Santa Clara-a-Velha, foi trasladada para Coimbra
e, segundo a lenda, nunca seu corpo defunto exalou qualquer odor desagradável
na rota de Estremoz a Coimbra, antes, no ar se sentia um perfumado olor de
rosas.
Criada em torno de sua pessoa a
aura de santidade, devido aos diversos milagres que lhe eram atribuídos,
mereceu o generoso ato de beatificação da parte do Papa Leão X, em 1516, e o misterioso
de canonização canonizada pelo Papa Urbano VIII, em 1625, ficando popularmente
conhecida como “a Rainha Santa Isabel” ou antonomasticamente “a Rainha Santa”.
***
Segundo consta a tradição, a
Capela de Santa Isabel em Estremoz, edificada no tempo de D. João V, situa-se
visivelmente no lugar onde teria falecido a Rainha, a 4 de Julho de 1336, mas é
difícil determinar os seus aposentos primitivos por via do incêndio de 1698. No
entanto, sabe-se que foi mandado construir nesse local um oratório por D. Luísa
de Gusmão, esposa de D. João IV, como promessa pela vitória das Linhas de
Elvas.
***
Expõem-se, a seguir, alguns dos predicados
marcantes de sua personalidade.
Pacificadora de corações
Pacificou ânimos e guerras
desde o berço até à hora da morte, não havendo, entre o primeiro nobre e o
último doente alguém que se furtasse à sua benéfica influência. Todos saíam de
sua contagiante presença dispostos a reconciliar-se com Deus e a perdoar o
próximo.
Quando Isabel nasceu em Aragão,
havia uma forte desavença entre o pai e o avô, Jaime I, o Conquistador. Há muito
tempo que não se falavam, porque Jaime não aprovava o casamento de seu filho
Pedro com D. Constança da Sicília. Com o nascimento da santa menina, esbatendo as
brigas domésticas, a harmonia regressou vigorosa à casa real. O destemido avô não ocultava a grande predileção que nutria por
esta criança e fez questão de que ela fosse primorosamente educada em seu
palácio, para poder desfrutar de sua companhia. A razão mais profunda por que
não queria separar-se dela era o sensível influxo de bênçãos e a suavidade que
emanavam de sua bondosa pessoa. Num ambiente carregado de tensões e pesados
encargos, aquele tão precioso tesouro humano dulcificava os corações. A seguir
ao pranteado óbito de Jaime I, a infanta permaneceu ainda alguns anos com os
pais, até se tornar rainha de Portugal.
No reino de Portugal e sua corte
Os súbditos ficaram deslumbrados
com a presença da nova rainha. Nunca tinham visto soberana de tamanha modéstia
e amabilidade. O seu recolhimento e união com Deus cedo começaram a cativar o
povo, que retribuía espontaneamente o amor de que estava a ser objeto. Para aumentar
a confiança de todos na jovem soberana, concorreu a paz que ela obteve, logo ao
chegar, entre o rei e seu irmão, o filho bastardo de D. Afonso IV, que lhe
disputava a coroa.
A sua vida na corte foi constante
busca do sobrenatural. Sem omitir nenhuma das obrigações impostas pela sua
condição régia, o seu coração não se prendeu a esta ou àquela terra. Estava
presente em todas as festividades do reino e sinceramente regozijava-se com o
povo, embora cingisse a coroa e trajasse os mais ricos vestidos para, ao lado
do rei, receber as autoridades ilustres que vinham honrá-la e colocar-se a seu
serviço. Entretanto, nem por isso se envaideceu e desejou aquelas glórias para
si. Julgava-se pecadora e teria preferido mil vezes ser pobre a possuir todos
os tesouros reais.
Precursora da devoção à Imaculada
Conceição
A oração e vida piedosa exerceram
papel primordial na sua vida, sendo a causa das conquistas que obteve pelo bem
do reino e das almas. Pela manhã assistia à Missa no seu oratório com o
espírito recolhido e absorto. Desde tenra idade recitava diariamente o Ofício
Divino, a que adicionou a reza dos salmos penitenciais e outras devoções em
honra de Maria e dos Santos.
A sua devoção a Maria Santíssima
foi terna e fecunda, legando à posteridade um dos traços indeléveis da
espiritualidade luso-brasileira: o patrocínio da Imaculada Conceição. De facto,
foi Santa Isabel quem a elegeu padroeira de Portugal e fez com que se
celebrasse pela primeira vez a sua festividade, a 8 de dezembro de 1320, quando
a irradiação das disputas teológicas em prol da Conceição Imaculada de Maria
espargia os seus primeiros fulgores.
Sofrimentos de esposa e rainha
Amparada pelas forças divinas, preparou-se
para os grandes dissabores que a
aguardavam. Após o nascimento dos dois filhos, Constança e Afonso, suportou
heroicamente a vida dissoluta que o rei passou a levar. Não murmurando nem se impacientando,
levada pelo sentido profundo da “comunicação dos santos”, do símbolo dos apóstolos, rezou muito e
penitenciou-se pela conversão do soberano.
Assistiu com enorme dor às
inimizades entre governantes cristãos seus parentes, que por ambição,
disputavam terras e honrarias e, em consequência de suas pretensões, não tinham
escrúpulos em causar derramamento de sangue. Corajosamente, Isabel erguida em
toda a sua estatura, impediu grande quantidade de pelejas que, mercê da
situação ao rubro, estavam a ponto de estalar: Dom Dinis e Dom Afonso, irmãos,
estavam em pé de guerra pela coroa de Portugal; O rei de Portugal, seu esposo,
tinha com o monarca de Castela, Sancho IX, sérias contendas mercê da marcação
das fronteiras entre os reinos; Anos mais tarde, Dom Fernando IV de Castela,
seu genro, e Dom Jaime II de Aragão, seu irmão, alimentavam mútua e feroz
rivalidade, que tendia para um terrível confronto armado; Frederico da Sicília,
seu irmão, e Roberto de Nápoles defrontavam-se violentamente por razões
políticas... Por entre as lágrimas que este quadro desolador provocava a seu
magnânimo coração, a sua longanimidade espiritual levava-a a levantar
perseverantes preces a Deus e a implorar a cada um dos soberanos em discórdia que
ouvisse a voz da justiça divina, saindo, assim, vitoriosa em todas as contendas
em que interveio. A Rainha Santa mostrou, por palavras, orações e postura, que
a paz não se deve tanto a tratados e a considerações de caráter político e
económico, como a denodadas almas santas que aplaquem a ira e o ódio por meio
da lucidez, da mansidão e da clemência.
Coragem e intrepidez de mãe
A mais pungente atuação de
Isabel, a que lhe custou mais sofrimentos e angústias, foi a de enfrentar a
rebeldia do filho contra o pai. Desejoso de mando e julgando que a coroa tardava
em excesso, o invejoso herdeiro quis proclamar-se rei e declarou guerra a Dom
Dinis. Desprezando todo o bom exemplo materno, mobilizou as suas hostes e
enfrentou militarmente o seu real progenitor. De um lado, o rei marcha diante
de seus homens, disposto a tudo para manter o cargo que lhe cabe por direito;
do outro, o filho posta-se, na sua insolência, desprezando o mandato divino que
obriga a honrar pai e mãe. No momento em que o silêncio nos campos inimigos
marca o início da batalha, surge a figura intrépida da rainha: em sua veloz
montaria (uma mulinha, segundo a lenda), rasga a arena da discórdia e,
interpondo-se entre as criaturas que mais ama neste mundo, implora o perdão e a
paz. Às palavras de senso e pacificação, que Isabel profere, a luta chega ao
fim: o rei perdoa; e o filho jura obediência e fidelidade.
A
solícita caridade e o amor dedicado aos pobres
A par de seu espírito
pacificador, foi na prática da caridade e no amor aos pobres que o seu amor a
Deus se projetou inteiramente. Tanto se dedicou aos fracos e indigentes, cuidou
dos enfermos, fundou hospitais e protegeu toda categoria de desvalidos, que não
é possível encontrar explicação humana para a fecundidade assombrosa das suas iniciativas.
Quando a rainha saía do paço, uma
multidão de infelizes a seguia, pedindo socorro, e nunca algum deles se
retirava sem ser generosamente atendido. Conta-se que a Rainha D. Isabel, sendo
muito bondosa e humilde, costumava distribuir esmolas pelos pobres às ocultas
do rei; e, um dia, ao ser apanhada pelo monarca quando ia na sua faina esmoler,
à interpelação régia “Que levais, Senhora
no regaço?” terá respondido que “São
rosas, Senhor, são rosas!” e o milagre não a deixou infringir a verdade,
pois o pão e o dinheiro que levava no regaço, transformou-os miraculosamente em
rosas.
No seu carinho desvelado, gostava
de cuidar pessoalmente dos leprosos mais repugnantes, tratar-lhes as chagas e
lavar-lhes as roupas; encaminhava para uma vida digna os órfãos, as viúvas e as
mulheres de mau porte; e até na hora da morte não abandonava os infelizes, aos
quais providenciava sepultura digna e mandava celebrar Missas em sufrágio de
suas almas. Como corolário de sua fé inabalável, não poucos eram os doentes que
saíam de sua presença inteiramente curados. Reza a história, ainda que um pouco
lendária, que, na peregrinação que fazia a Santiago de Compostela, após a morte
de D. Dinis, na passagem por Arrifana de Santa Maria (diocese do Porto), a
esperava na estrada uma mulher cuja filha nascera cega. A mãe ajoelhou-se
diante de D. Isabel e pediu-lhe que colocasse a mão nos olhos da sua filha para
que ela pudesse ver. A Rainha recusou o pedido, ensinando à desgostosa mãe que
esse pedido deveria ser feito a Deus, pois só ele faz milagres. Como a triste
mulher persistisse nos seus rogos, a Taumaturga acabou por ser vencida ao ver
tanta devoção e acabou por ceder ao pedido. Colocou as mãos nos olhos da
criança, a qual, passados alguns dias, recuperou a visão.
Uma canonização singular
O modo singular como Isabel foi
canonizada bem serve para mostrar como, sendo da vontade Deus a glorificação de
algum de seus filhos ilustres, nenhum obstáculo humano é capaz de o impedir. Inumeráveis
foram os milagres obtidos junto do seu corpo sepulcral, que permanecia
surpreendentemente incorrupto e exalava um bálsamo agradável ao odor. Em
Portugal e na Espanha os devotos ansiavam por vê-la nos altares e dedicar-lhe
igrejas. Os soberanos que dela descendiam insistiam junto das autoridades
eclesiásticas na aceleração do processo canónico.
Nos primórdios do século XVII, a
canonização era o corolário de várias autorizações concedidas pela Cátedra de São
Pedro para venerar os santos. Assim, era comum que apenas em algumas dioceses
ou regiões se celebrasse um bem-aventurado, mas saindo daquela jurisdição o
culto já não fosse reconhecido como oficial. Esse sistema, que levara a um
excesso de canonizações naquele período, induziu o Papa Urbano VIII a instituir
um sistema cauteloso de inscrição de novos bem-aventurados no catálogo dos
santos.
Neste intuito reformador, mal
subiu ao sólio pontifício, logo declarou não haver de canonizar nenhum santo. Agora
que tudo o mais propiciava a glorificação definitiva da Rainha Isabel, os
devotos agradecidos, encomendando aos céus o filial intento, obtiveram pela
oração o que pelos meios humanos não conseguiriam. Após ter enviado várias
cartas reforçando o pedido e um representante que muito insistiu junto de
Urbano VIII, tudo o que o soberano reinante, Filipe IV de Espanha e III de
Portugal, conseguiu foi que o Papa, por cortesia, aceitasse uma imagem da
veneranda rainha. Ora, tendo o Papa Urbano caído gravemente enfermo, com febres
malignas e já quase sem esperança de vida, lembrou-se da rainha de Portugal e
encomendou-se também a ela, esquecendo-se de sua prudente reserva para com os
justos de Deus.
No dia seguinte, amanheceu são e
escorreito, sem nenhum risco de vida. Tão comovido ficou por ver a excelsa bondade
de sua protetora que mudou o seu parecer. Canonizaria, a título muito
excecional, a rainha de Portugal; e fá-lo-ia com o “coração grande”, alistando-se
ele também nas fileiras dos devotos. Assim se explica a magnífica cerimónia que
teve lugar na Basílica de São Pedro em Roma, a 25 de maio de 1625. Nem antes
nem depois, nos 21 anos de seu pontificado, Urbano VIII canonizou qualquer
outro santo.
É bem verdadeira a máxima latina Finis coronat opus!
Referências
Conde de Moucheron (1987). Isabel de Aragão – Biografia da Rainha
Santa. Lisboa: Ésquilo Edições & multimédia
Vasconcelos, A. (1993).
Dona Isabel de Aragão (A Rainha Santa).
2 Vol. Coimbra: Arquivo da Universidade de Coimbra
Oliveira, M. (1994). História Eclesiástica de Portugal. Edição
revista e aumentada. Mem Martins: Publicações Europa-América
http://www.cm-estremoz.pt/ad_conteudos//anexos/fls6_240211112356.pdf, ac.2014.05.07
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