domingo, 6 de julho de 2014

Isabel de Aragão e Isabel de Portugal

Ninguém levanta sobre a Rainha Santa a questão da nacionalidade como para o caso de António, o santo de Pádua ou o santo de Lisboa. A aura popular que a emoldura, afaga a cidade de Estremoz, onde se finou; fica no património imaterial da Humanidade com o fado “Rainha Santa”, de Alfredo Marceneiro; e brilha no máximo do seu expoente na cidade de Coimbra. Nesta cidade do Mondego, onde terá vivido considerável espaço de tempo e que a elegeu como padroeira, recebe as maiores homenagens devocionais e o preito oficial com a guarda do feriado municipal, a 4 de julho, dia da celebração litúrgica da sua memória, e esplendorosas festas de dois em dois anos. Quem vem de longe a visitar a lusa Atenas não deixa de notar o singular carinho dos conimbricenses por vulto tão insigne na santidade: o anjo de bondade, o apóstolo da paz que o Senhor enviara para o reino de Portugal.
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Isabel de Aragão nasceu no ano de 1271 (segundo alguns no ano de 1269), no Paço de Aljaferia, cidade de Saragoça, à época capital do reino de Aragão (não é, assim, portuguesa de nascença). Filha mais velha de Pedro III, o Grande, rei de Aragão, e de D. Constância de Navarra, antes Constância de Hohenstauffen, princesa da Sicília, teve cinco irmãos, entre os quais Afonso III e Jaime II, reis aragoneses, e Frederico II, rei da Sicília.
Por via materna, era descendente de Frederico II, Sacro Imperador Romano-Germânico, pois o seu avô materno era Manfredo de Hohenstauffen, rei da Sicília, filho de Frederico II. Precedeu-a em nobreza e santidade sua tia-avó, Isabel da Hungria, também considerada santa pela Igreja Católica, de quem herdou, além do nome, os mais excelentes predicados.
D. Isabel, dotada de uma enorme beleza, atraía as atenções de muitos príncipes, que se apresentavam ao pai como pretendentes à mão da infanta, mas os progenitores escolheram o mais próximo e mais prendado de todos, D. Dinis, herdeiro do trono de Portugal, após a sua novel subida ao trono. E, assim, em 1282, ficou noiva, com a celebração do contrato matrimonial por procuração na catedral de Barcelona, pelo que, já rainha consorte, vem para Portugal a celebrar o casamento com o culto rei “Lavrador”, sendo as bodas nupciais celebradas com pompa e circunstância na vila beirã de Trancoso, entre 24 e 26 de junho desse mesmo ano, por ocasião, conforme seu desejo, da solenidade litúrgica de Santa Isabel, a mãe do Batista, precursor do Messias. Estabelecendo-se em Coimbra, passou a acompanhar o real marido nas suas deslocações pelo País, conquistando a simpatia generalizada do povo.
Do seu casamento nasceram dois filhos: D. Constância (futura Rainha de Castela) e D. Afonso (herdeiro do trono de Portugal). Porém, o rei tinha inúmeras aventuras extraconjugais, das quais D. Isabel sempre lhe perdoava, criando também com extremoso desvelo os filhos ilegítimos de D. Dinis.
Reza o imaginário popular que, sabendo a rainha das suas clandestinas visitas noturnas ao mosteiro que ele fundara nas proximidades de Lisboa, o surpreendera numa das suas saídas do Paço, acompanhada de suas aias que empunhavam luminárias e lhe disse: “Ide vê-las, que nós ficamos a alumiar”. E populares que de longe observaram a constelação de luminárias, terão exclamado: “Que luz!”. E outros, de mais aguda esperteza, terão explicado: “de Velas”. Daí, a etimologia (meramente popular e espúria) de “Odivelas”, “Lumiar”, “Queluz” e “Belas” (não sendo, assim, a região do Porto a única a trocar o “v” pelo “b”).
Dama repleta de devoção, bondade e humildade, buscou sempre a reconciliação e a paz entre as pessoas, as famílias e as nações. Costumava dizer: “Deus tornou-me rainha para me dar meios de fazer esmolas”. Pelas suas qualidades de mãe e rainha – bondosa e decidida, corajosa e firme, tolerante e pacificadora – foi amada com paixão pelos súbditos, consistindo o segredo da sua peculiar modéstia e generosidade a devoção, acima de tudo, ao Crucificado e à Conceição Imaculada de Maria. Esta via devocional levou-a à prática da vida cristã nas duas vertentes fundamentais – oração intensa e obras de misericórdia, bem como à consecução da necessária robustez espiritual para enfrentar infortúnios, dificuldades e desavenças familiares ou de Estado.
Após o falecimento de seu marido, em 1325, D. Isabel repartiu o remanescente de seus bens pelos pobres (sem qualquer prejuízo para familiares ou para o Reino), recolheu-se ao Convento de Santa Clara-a-Velha, em Coimbra, onde fixou residência e passou a envergar o hábito da Ordem das Clarissas (não emitindo formalmente os votos das religiosas), no regime e estilo de ordem terceira do ramo franciscano.
Em Junho de 1336, com 65 anos de idade, parte para Estremoz, com o intento de conversar com o filho, Afonso IV, que entrara em conflito com o genro, Pedro I, de Castela, em razão dos maus tratos que infligia à esposa D. Maria, filha de Afonso IV, de que se previa eclodir nova guerra. Porém, ao chegar ao Castelo de Estremoz, é obrigada a recolher-se no seu leito, cansada e cheia de febre. Morre dias depois, a 4 de julho. Em conformidade com o disposto testamentariamente por si de desejo de haver sepultura no Mosteiro de Santa Clara-a-Velha, foi trasladada para Coimbra e, segundo a lenda, nunca seu corpo defunto exalou qualquer odor desagradável na rota de Estremoz a Coimbra, antes, no ar se sentia um perfumado olor de rosas. 
Criada em torno de sua pessoa a aura de santidade, devido aos diversos milagres que lhe eram atribuídos, mereceu o generoso ato de beatificação da parte do Papa Leão X, em 1516, e o misterioso de canonização canonizada pelo Papa Urbano VIII, em 1625, ficando popularmente conhecida como “a Rainha Santa Isabel” ou antonomasticamente “a Rainha Santa”.
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Segundo consta a tradição, a Capela de Santa Isabel em Estremoz, edificada no tempo de D. João V, situa-se visivelmente no lugar onde teria falecido a Rainha, a 4 de Julho de 1336, mas é difícil determinar os seus aposentos primitivos por via do incêndio de 1698. No entanto, sabe-se que foi mandado construir nesse local um oratório por D. Luísa de Gusmão, esposa de D. João IV, como promessa pela vitória das Linhas de Elvas.
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Expõem-se, a seguir, alguns dos predicados marcantes de sua personalidade.
Pacificadora de corações
Pacificou ânimos e guerras desde o berço até à hora da morte, não havendo, entre o primeiro nobre e o último doente alguém que se furtasse à sua benéfica influência. Todos saíam de sua contagiante presença dispostos a reconciliar-se com Deus e a perdoar o próximo.
Quando Isabel nasceu em Aragão, havia uma forte desavença entre o pai e o avô, Jaime I, o Conquistador. Há muito tempo que não se falavam, porque Jaime não aprovava o casamento de seu filho Pedro com D. Constança da Sicília. Com o nascimento da santa menina, esbatendo as brigas domésticas, a harmonia regressou vigorosa à casa real. O destemido avô não ocultava a grande predileção que nutria por esta criança e fez questão de que ela fosse primorosamente educada em seu palácio, para poder desfrutar de sua companhia. A razão mais profunda por que não queria separar-se dela era o sensível influxo de bênçãos e a suavidade que emanavam de sua bondosa pessoa. Num ambiente carregado de tensões e pesados encargos, aquele tão precioso tesouro humano dulcificava os corações. A seguir ao pranteado óbito de Jaime I, a infanta permaneceu ainda alguns anos com os pais, até se tornar rainha de Portugal.
No reino de Portugal e sua corte
Os súbditos ficaram deslumbrados com a presença da nova rainha. Nunca tinham visto soberana de tamanha modéstia e amabilidade. O seu recolhimento e união com Deus cedo começaram a cativar o povo, que retribuía espontaneamente o amor de que estava a ser objeto. Para aumentar a confiança de todos na jovem soberana, concorreu a paz que ela obteve, logo ao chegar, entre o rei e seu irmão, o filho bastardo de D. Afonso IV, que lhe disputava a coroa.
A sua vida na corte foi constante busca do sobrenatural. Sem omitir nenhuma das obrigações impostas pela sua condição régia, o seu coração não se prendeu a esta ou àquela terra. Estava presente em todas as festividades do reino e sinceramente regozijava-se com o povo, embora cingisse a coroa e trajasse os mais ricos vestidos para, ao lado do rei, receber as autoridades ilustres que vinham honrá-la e colocar-se a seu serviço. Entretanto, nem por isso se envaideceu e desejou aquelas glórias para si. Julgava-se pecadora e teria preferido mil vezes ser pobre a possuir todos os tesouros reais.
Precursora da devoção à Imaculada Conceição
A oração e vida piedosa exerceram papel primordial na sua vida, sendo a causa das conquistas que obteve pelo bem do reino e das almas. Pela manhã assistia à Missa no seu oratório com o espírito recolhido e absorto. Desde tenra idade recitava diariamente o Ofício Divino, a que adicionou a reza dos salmos penitenciais e outras devoções em honra de Maria e dos Santos.
A sua devoção a Maria Santíssima foi terna e fecunda, legando à posteridade um dos traços indeléveis da espiritualidade luso-brasileira: o patrocínio da Imaculada Conceição. De facto, foi Santa Isabel quem a elegeu padroeira de Portugal e fez com que se celebrasse pela primeira vez a sua festividade, a 8 de dezembro de 1320, quando a irradiação das disputas teológicas em prol da Conceição Imaculada de Maria espargia os seus primeiros fulgores.
Sofrimentos de esposa e rainha
Amparada pelas forças divinas, preparou-se para os grandes dissabores que a aguardavam. Após o nascimento dos dois filhos, Constança e Afonso, suportou heroicamente a vida dissoluta que o rei passou a levar. Não murmurando nem se impacientando, levada pelo sentido profundo da “comunicação dos santos”, do símbolo dos apóstolos, rezou muito e penitenciou-se pela conversão do soberano.
Assistiu com enorme dor às inimizades entre governantes cristãos seus parentes, que por ambição, disputavam terras e honrarias e, em consequência de suas pretensões, não tinham escrúpulos em causar derramamento de sangue. Corajosamente, Isabel erguida em toda a sua estatura, impediu grande quantidade de pelejas que, mercê da situação ao rubro, estavam a ponto de estalar: Dom Dinis e Dom Afonso, irmãos, estavam em pé de guerra pela coroa de Portugal; O rei de Portugal, seu esposo, tinha com o monarca de Castela, Sancho IX, sérias contendas mercê da marcação das fronteiras entre os reinos; Anos mais tarde, Dom Fernando IV de Castela, seu genro, e Dom Jaime II de Aragão, seu irmão, alimentavam mútua e feroz rivalidade, que tendia para um terrível confronto armado; Frederico da Sicília, seu irmão, e Roberto de Nápoles defrontavam-se violentamente por razões políticas... Por entre as lágrimas que este quadro desolador provocava a seu magnânimo coração, a sua longanimidade espiritual levava-a a levantar perseverantes preces a Deus e a implorar a cada um dos soberanos em discórdia que ouvisse a voz da justiça divina, saindo, assim, vitoriosa em todas as contendas em que interveio. A Rainha Santa mostrou, por palavras, orações e postura, que a paz não se deve tanto a tratados e a considerações de caráter político e económico, como a denodadas almas santas que aplaquem a ira e o ódio por meio da lucidez, da mansidão e da clemência.
Coragem e intrepidez de mãe
A mais pungente atuação de Isabel, a que lhe custou mais sofrimentos e angústias, foi a de enfrentar a rebeldia do filho contra o pai. Desejoso de mando e julgando que a coroa tardava em excesso, o invejoso herdeiro quis proclamar-se rei e declarou guerra a Dom Dinis. Desprezando todo o bom exemplo materno, mobilizou as suas hostes e enfrentou militarmente o seu real progenitor. De um lado, o rei marcha diante de seus homens, disposto a tudo para manter o cargo que lhe cabe por direito; do outro, o filho posta-se, na sua insolência, desprezando o mandato divino que obriga a honrar pai e mãe. No momento em que o silêncio nos campos inimigos marca o início da batalha, surge a figura intrépida da rainha: em sua veloz montaria (uma mulinha, segundo a lenda), rasga a arena da discórdia e, interpondo-se entre as criaturas que mais ama neste mundo, implora o perdão e a paz. Às palavras de senso e pacificação, que Isabel profere, a luta chega ao fim: o rei perdoa; e o filho jura obediência e fidelidade.
A solícita caridade e o amor dedicado aos pobres
A par de seu espírito pacificador, foi na prática da caridade e no amor aos pobres que o seu amor a Deus se projetou inteiramente. Tanto se dedicou aos fracos e indigentes, cuidou dos enfermos, fundou hospitais e protegeu toda categoria de desvalidos, que não é possível encontrar explicação humana para a fecundidade assombrosa das suas iniciativas.
Quando a rainha saía do paço, uma multidão de infelizes a seguia, pedindo socorro, e nunca algum deles se retirava sem ser generosamente atendido. Conta-se que a Rainha D. Isabel, sendo muito bondosa e humilde, costumava distribuir esmolas pelos pobres às ocultas do rei; e, um dia, ao ser apanhada pelo monarca quando ia na sua faina esmoler, à interpelação régia “Que levais, Senhora no regaço?” terá respondido que “São rosas, Senhor, são rosas!” e o milagre não a deixou infringir a verdade, pois o pão e o dinheiro que levava no regaço, transformou-os miraculosamente em rosas.
No seu carinho desvelado, gostava de cuidar pessoalmente dos leprosos mais repugnantes, tratar-lhes as chagas e lavar-lhes as roupas; encaminhava para uma vida digna os órfãos, as viúvas e as mulheres de mau porte; e até na hora da morte não abandonava os infelizes, aos quais providenciava sepultura digna e mandava celebrar Missas em sufrágio de suas almas. Como corolário de sua fé inabalável, não poucos eram os doentes que saíam de sua presença inteiramente curados. Reza a história, ainda que um pouco lendária, que, na peregrinação que fazia a Santiago de Compostela, após a morte de D. Dinis, na passagem por Arrifana de Santa Maria (diocese do Porto), a esperava na estrada uma mulher cuja filha nascera cega. A mãe ajoelhou-se diante de D. Isabel e pediu-lhe que colocasse a mão nos olhos da sua filha para que ela pudesse ver. A Rainha recusou o pedido, ensinando à desgostosa mãe que esse pedido deveria ser feito a Deus, pois só ele faz milagres. Como a triste mulher persistisse nos seus rogos, a Taumaturga acabou por ser vencida ao ver tanta devoção e acabou por ceder ao pedido. Colocou as mãos nos olhos da criança, a qual, passados alguns dias, recuperou a visão.
Uma canonização singular
O modo singular como Isabel foi canonizada bem serve para mostrar como, sendo da vontade Deus a glorificação de algum de seus filhos ilustres, nenhum obstáculo humano é capaz de o impedir. Inumeráveis foram os milagres obtidos junto do seu corpo sepulcral, que permanecia surpreendentemente incorrupto e exalava um bálsamo agradável ao odor. Em Portugal e na Espanha os devotos ansiavam por vê-la nos altares e dedicar-lhe igrejas. Os soberanos que dela descendiam insistiam junto das autoridades eclesiásticas na aceleração do processo canónico.
Nos primórdios do século XVII, a canonização era o corolário de várias autorizações concedidas pela Cátedra de São Pedro para venerar os santos. Assim, era comum que apenas em algumas dioceses ou regiões se celebrasse um bem-aventurado, mas saindo daquela jurisdição o culto já não fosse reconhecido como oficial. Esse sistema, que levara a um excesso de canonizações naquele período, induziu o Papa Urbano VIII a instituir um sistema cauteloso de inscrição de novos bem-aventurados no catálogo dos santos.
Neste intuito reformador, mal subiu ao sólio pontifício, logo declarou não haver de canonizar nenhum santo. Agora que tudo o mais propiciava a glorificação definitiva da Rainha Isabel, os devotos agradecidos, encomendando aos céus o filial intento, obtiveram pela oração o que pelos meios humanos não conseguiriam. Após ter enviado várias cartas reforçando o pedido e um representante que muito insistiu junto de Urbano VIII, tudo o que o soberano reinante, Filipe IV de Espanha e III de Portugal, conseguiu foi que o Papa, por cortesia, aceitasse uma imagem da veneranda rainha. Ora, tendo o Papa Urbano caído gravemente enfermo, com febres malignas e já quase sem esperança de vida, lembrou-se da rainha de Portugal e encomendou-se também a ela, esquecendo-se de sua prudente reserva para com os justos de Deus.
No dia seguinte, amanheceu são e escorreito, sem nenhum risco de vida. Tão comovido ficou por ver a excelsa bondade de sua protetora que mudou o seu parecer. Canonizaria, a título muito excecional, a rainha de Portugal; e fá-lo-ia com o “coração grande”, alistando-se ele também nas fileiras dos devotos. Assim se explica a magnífica cerimónia que teve lugar na Basílica de São Pedro em Roma, a 25 de maio de 1625. Nem antes nem depois, nos 21 anos de seu pontificado, Urbano VIII canonizou qualquer outro santo.

É bem verdadeira a máxima latina Finis coronat opus!
Referências
Conde de Moucheron (1987). Isabel de Aragão – Biografia da Rainha Santa. Lisboa: Ésquilo Edições & multimédia
Vasconcelos, A. (1993). Dona Isabel de Aragão (A Rainha Santa). 2 Vol. Coimbra: Arquivo da Universidade de Coimbra
Oliveira, M. (1994). História Eclesiástica de Portugal. Edição revista e aumentada. Mem Martins: Publicações Europa-América
http://www.cm-estremoz.pt/ad_conteudos//anexos/fls6_240211112356.pdf, ac.2014.05.07

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